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TC > Jurisprudência > Acordãos > Acórdão 172/2021

ACÓRDÃO N.º 172/2021

 

 

Processo n.º 541/2020

Plenário

Relator: Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro

 

 

Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional:

 

I.   Relatório

 

1. O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional veio requerer, em conformidade com o disposto no artigo 82.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (“Lei do Tribunal Constitucional”), a organização de um processo, a tramitar nos termos do processo de fiscalização abstrata sucessiva da constitucionalidade, com vista à apreciação da inconstitucionalidade da «norma contida no n.º 6 do artigo 10.º da Lei n.º 25/2006, de 30 de junho, quando interpretada no sentido de estabelecer uma presunção inilidível em relação ao autor da contraordenação, independentemente da prova que sobre a autoria for feita em processo judicial».

Como fundamento, o requerente alega que tal norma já foi julgada inconstitucional em três casos concretos pelo Tribunal Constitucional, nomeadamente pelo Acórdão n.º 338/2018, já transitado em julgado, e bem assim, pelas Decisões Sumárias n.ºs 75/2020 e 76/2020, igualmente transitadas em julgado.

 

2. Notificado para, querendo, se pronunciar sobre o pedido, nos termos dos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, o Presidente da Assembleia da República ofereceu o merecimento dos autos.

 

3. Discutido o memorando elaborado pelo Presidente, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 63.º, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional, e fixada a orientação do Tribunal, cumpre agora decidir em conformidade com o que então se estabeleceu.

 

II. Fundamentação

 

4. De acordo com o disposto no n.º 3 do artigo 281.º da Constituição da República Portuguesa, o Tribunal Constitucional aprecia e declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade de qualquer norma, desde que tenha sido por ele julgada inconstitucional em três casos concretos. Este preceito é reproduzido, no essencial, pelo artigo 82.º da Lei do Tribunal Constitucional, que determina pertencer a iniciativa a qualquer dos juízes do Tribunal ou ao Ministério Público, devendo promover-se a organização de um processo com as cópias das correspondentes decisões, o qual é concluso ao Presidente, seguindo-se os termos do processo de fiscalização abstrata sucessiva da constitucionalidade, previsto naquela Lei. 

O presente pedido de fiscalização abstrata sucessiva da constitucionalidade formulado pelo Ministério Público tem por base em três decisões proferidas em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade.

Com efeito, o Acórdão n.º 338/2018 julgou inconstitucional a «norma contida no n.º 6 do artigo 10.º da Lei n.º 25/2006, de 30 de junho, quando interpretada no sentido de estabelecer uma presunção inilidível em relação ao autor da contraordenação, independentemente da prova que sobre a autoria for feita em processo judicial». Tal julgamento foi reafirmado pelas Decisões Sumárias n.º 75/2020 e 76/2020.

Encontram-se, por conseguinte, reunidas as condições indispensáveis à apreciação da citada norma em sede de fiscalização abstrata sucessiva da constitucionalidade, nos termos da Constituição e da Lei do Tribunal Constitucional.

 

5. A norma que constitui o objeto do pedido de generalização do juízo de inconstitucionalidade integra o n.º 6 do artigo 10.º da Lei n.º 25/2006, de 30 de junho, que aprova o regime sancionatório aplicável às contraordenações ocorridas em matéria de infraestruturas rodoviárias onde seja devido o pagamento de taxas de portagem, cuja redação é a seguinte:

 

Artigo 10.º

Responsabilidade pelo pagamento

 

1 - Sempre que não for possível identificar o condutor do veículo no momento da prática da contraordenação, as concessionárias, as subconcessionárias, as entidades de cobrança das taxas de portagem ou as entidades gestoras de sistemas eletrónicos de cobrança de portagens, consoante os casos, notificam o titular do documento de identificação do veículo para que este, no prazo de 30 dias úteis, proceda a essa identificação ou pague voluntariamente o valor da taxa de portagem e os custos administrativos associados.

2 - A identificação referida no número anterior deve, sob pena de não produzir efeitos, indicar, cumulativamente:

a) Nome completo;

b) Residência completa;

c) Número de identificação fiscal, salvo se se tratar de cidadão estrangeiro que o não tenha, caso em que deverá ser indicado o número da carta de condução.

3 - Na falta de cumprimento do disposto nos números anteriores, é responsável pelo pagamento das coimas a aplicar, das taxas de portagem e dos custos administrativos em dívida, consoante os casos, o proprietário, o adquirente com reserva de propriedade, o usufrutuário, o locatário em regime de locação financeira ou o detentor do veículo.

4 - Quando, nos termos do n.º 1, seja identificado o agente da contraordenação, é este notificado para, no prazo de 30 dias úteis, proceder ao pagamento da taxa de portagem e dos custos administrativos associados.

5 - Caso o agente da contraordenação não proceda ao pagamento referido no número anterior, é lavrado auto de notícia, aplicando-se o disposto no artigo 9.º da presente lei e extraída, pelas entidades referidas no n.º 1 do artigo 11.º, a certidão de dívida composta pelas taxas de portagem e custos administrativos associados correspondentes a cada mês, que são remetidos à entidade competente.

6 - O direito de ilidir a presunção de responsabilidade prevista no n.º 3, considera-se definitivamente precludido caso não seja exercido no prazo referido no n.º 1.

 

Nos três casos concretos que suportam o pedido de generalização, a norma extraída do n.º 6 do artigo 10.º da Lei n.º 25/2006, de 30 de junho, foi julgada inconstitucional com o específico sentido normativo com que foi desaplicada nas sentenças recorridas, isto é, no sentido de estabelecer uma presunção inilidível em relação ao autor da contraordenação, independentemente da prova que sobre a autoria for feita em processo judicial.

Ou seja, nas sentenças recorridas não se julgou inconstitucional a referida norma no sentido de estabelecer uma presunção inilidível anterior ou concomitante ao levantamento de auto de notícia, cuja validade nem sequer é questionada, mas apenas no que toca à atuação da presunção legal em sede de impugnação judicial da decisão administrativa de condenação pela prática da contraordenação. Os tribunais recorridos consideraram que a norma impugnada os impede de relevar qualquer prova sobre a autoria dos factos ou, em caso de dúvida, fazer atuar o princípio in dubio pro reo. É, pois, no contexto de um processo judicial que o tribunal recorrido desaplica a norma por inconstitucionalidade, considerando que nesse processo a arguida deve ser admitida a ilidir a presunção.

 

6. A norma do n.º 6 do artigo 10.º da Lei n.º 25/2006, de 30 de junho, introduzida pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro, foi desaplicada nos casos concretos que legitimam o pedido de generalização do juízo de inconstitucionalidade com fundamento na violação de três parâmetros constitucionais:

 (i) o princípio da culpa, implícito na subordinação da lei à dignidade humana, na medida em que impõe uma responsabilidade objetiva, inilidível, em matéria sancionatória;

 (ii) o princípio do direito de defesa em processo contraordenacional, na medida em que não permite ao arguido provar a autoria efetiva dos factos;

 (iii) e o princípio de presunção de inocência, porque não permite ao Tribunal atuar o princípio in dubio pro reo.

Estando em causa garantias constitucionais em matéria de contraordenações, importa começar por analisar os traços gerais da jurisprudência constitucional sobre o assunto.

Tem sido entendimento do Tribunal Constitucional que as garantias constitucionais previstas no artigo 32.º da CRP se aplicam no domínio das contraordenações com algumas adaptações. Neste sentido, tem-se considerado que o legislador dispõe de uma margem de apreciação mais ampla no âmbito das contraordenações.

 

No preâmbulo do Decreto-Lei n.º 231/79, de 24 de julho, que introduziu o ilícito de mera ordenação social na ordem jurídica portuguesa, começou por se afirmar que «hoje é pacífica a ideia de que entre os dois ramos de direito medeia uma autêntica diferença: não se trata apenas de uma diferença de quantidade ou puramente formal, mas de uma diferença de natureza. A contraordenação “é um aliud que se diferencia qualitativamente do crime na medida em que o respetivo ilícito e as reações que lhe cabem não são diretamente fundamentáveis num plano ético-jurídico, não estando, portanto, sujeitas aos princípios e corolários do direito criminal” [...]. Está em causa um ordenamento sancionatório distinto do direito criminal. Não é, por isso, admissível qualquer forma de prisão preventiva ou sancionatória, nem sequer a pena de multa ou qualquer outra que pressuponha a expiação da censura ético pessoal que aqui não intervém. A sanção normal do direito de ordenação social é a coima, sanção de natureza administrativa, aplicada por autoridade administrativa, com o sentido dissuasor de uma advertência social, pode, consequentemente, admitir-se a sua aplicação às pessoas coletivas e adotar-se um processo extremamente simplificado e aberto aos corolários do princípio da oportunidade».

Para efeitos de distinção entre ambos os ilícitos, a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem seguido fundamentalmente os critérios da ressonância ética e dos diferentes bens jurídicos em causa (Acórdãos n.ºs 158/92, 344/93, 469/97, 461/2011, 537/2011, 45/2014, 180/2014). E com fundamento na diferente natureza do ilícito, da censura e das sanções, tem considerado que os princípios constitucionais com relevo em matéria penal não valem com a mesma extensão e intensidade no domínio contraordenacional. Não obstante estar consolidado na jurisprudência constitucional que o direito sancionatório público, enquanto restrição de direitos fundamentais, participa do essencial das garantias consagradas explicitamente para o direito penal, tem-se decidido reiteradamente que os princípios que orientam o direito penal não são automaticamente aplicáveis ao direito de mera ordenação social (Acórdãos n.ºs 344/93, 278/99, 160/04, 537/2011, 85/2012).

Atenta a diferente natureza dos ilícitos, o Tribunal Constitucional tem vindo a aceitar uma variação do grau de vinculação do regime das contraordenações aos princípios do direito criminal em matérias como as do âmbito da responsabilização das pessoas coletivas, da culpa, do erro, da autoria e do concurso. Assim, afirma-se de forma ilustrativa, no Acórdão 336/2008: “…existem, desde sempre, razões de ordem substancial que impõem a distinção entre crimes e contraordenações, entre as quais avulta a natureza do ilícito e da sanção (…). A diferente natureza do ilícito condiciona, desde logo, a eventual incidência dos princípios da culpa, da proporcionalidade e da sociabilidade." Essa mesma orientação jurisprudencial foi reiterada no Acórdão n.º 110/2012, em que se escreveu que “as diferenças existentes entre a ilicitude de natureza criminal e o ilícito de mera ordenação social obstam a que se proceda a uma simples transposição, sem mais, dos princípios constitucionais aplicáveis em matéria de definição de penas criminais para o espaço sancionatório do ilícito de mera ordenação social”.

E é precisamente em razão dessa diferença, que assume um alcance «jurídico-pragmático» (Acórdão n.º 344/93) e se projeta em diversos aspetos de regime adjetivo e substantivo, que o Tribunal Constitucional tem considerado, de forma algo pacífica, que o legislador dispõe, no âmbito do domínio contraordenacional, de uma margem de apreciação mais ampla.

 

7. Sobre o alcance do princípio da culpa no domínio contraordenacional, o Acórdão n.º 344/07 formulou a síntese que importa transcrever:

 

«(...) não pondo em dúvida que os princípios da proporcionalidade e da igualdade e mesmo o princípio da culpa também vinculem o legislador na configuração dos ilícitos contravencionais (como nos de contraordenação) e respetivas sanções (cfr. acórdão n.º 547/2001, publicado no Diário da República, II Série, de 15 de julho) é diferente o limite que deles decorre para a discricionariedade legislativa na definição do que o legislador pode assumir e o que deve ser deixado ao juiz na determinação concreta da sanção. Designadamente, não ocorre aqui colisão com nenhum dos preceitos constitucionais em que se funda a afirmação de violação do princípio da culpa, que é o nuclear na fundamentação da referida jurisprudência do Tribunal a propósito da ilegitimidade constitucional de penas criminais fixas. Na verdade, não está em causa minimamente o direito à liberdade (artigo 27.º, n.º 1) porque a multa contravencional, diversamente da multa criminal, não tem prisão sucedânea. E só de modo muito remoto – e nunca por causa da sua invariabilidade – uma sanção estritamente pecuniária, num ilícito sem qualquer efeito jurídico estigmatizante, pode contender com o princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1.º), que é de onde o Tribunal tem deduzido o princípio da culpa na "Constituição criminal". Como diz FIGUEIREDO DIAS, O Movimento da Descriminalização…, pág. 29, a propósito da culpa na imputação das contraordenações, também perante uma categoria de infrações, punidas “independentemente de toda a intenção maléfica”, não se trata de uma culpa, como a jurídico-penal baseada numa censura ética dirigida à pessoa do agente, à sua abstrata intenção, mas apenas de uma imputação do ato à responsabilidade social do seu autor”.

 

Por seu turno, o Acórdão n.º 201/14 não deixou de sublinhar que “retira-se da jurisprudência do Tribunal Constitucional que o princípio da culpa se impõe também como limite à liberdade de conformação do legislador do ilícito contraordenacional, ainda que a margem dessa liberdade seja maior relativamente àquela de que este dispõe na configuração do ilícito penal, designadamente no que se refere à definição do que o legislador pode assumir e o que deve ser deixado ao juiz na determinação concreta da sanção”.

Ou seja, apesar de todas as diferenças de conteúdo e significado que o princípio da culpa assume no domínio contraordenacional, sempre se dirá que, ainda assim, o mesmo atua como limite da responsabilidade contraordenacional, assumindo aí, contudo, um diferente sentido e conteúdo. Neste particular, o Acórdão n.º 180/14 afirmou que a culpa, nesse contexto, se traduz na ideia de “imputação do facto à responsabilidade social do seu autor, que serve como especial advertência ou reprimenda relacionada com a observância de certas proibições ou imposições legislativas”.

Postulado que não pode ter-se como inteiramente postergado em matéria contraordenacional é o da pessoalidade da responsabilidade, que se traduz em não poder imputar-se a uma pessoa um crime cometido por outrem (ex injuria tertii). Explicitado para a matéria penal no artigo 30.º, n.º 3, da Constituição, este princípio constitui uma concretização do princípio da culpa, princípio este que, nessa matéria, decorre diretamente do princípio da dignidade da pessoa humana ínsito no artigo 1.º da Constituição, mas que em matéria contraordenacional – onde a censura não encerra “um juízo de desvalor ético-jurídico dirigido à personalidade do agente” nem a sanção “efeitos estigmatizantes” comparáveis aos da pena (Acórdão n.º 481/2010) – encontrará antes o seu assento normativo no artigo 2.º do mesmo texto fundamental, aí onde se consagra o princípio do Estado de Direito Democrático (cf., embora não explicitamente, Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal. Parte Geral. Tomo I, 3.ª ed., 2019, Gestlegal, p. 190 s.; Nuno Brandão, Crimes e Contraordenações. Da Cisão à Convergência Material, Coimbra Editora, 2016, p. 913 ss.). De outro modo, dificilmente poderiam admitir-se situações de transmissibilidade da responsabilidade no âmbito contraordenacional, ainda que a título excecional, como tem vindo a acontecer na jurisprudência deste tribunal, seguidamente recenseada.

 

8. Assumindo o princípio da culpa diferente alcance no domínio das contraordenações, o legislador dispõe, na configuração dos concretos ilícitos, de uma maior margem de conformação. Tal margem de conformação projeta-se, nomeadamente, no contexto dos pressupostos da imputação.

Neste contexto, o Tribunal Constitucional já teve oportunidade de analisar várias normas que imputavam a responsabilidade contraordenacional a quem não tinha sido autor direto do facto. Assim, foi já analisada a constitucionalidade de várias normas que procediam à transferência da responsabilidade pela prática de contraordenações.

O Acórdão n.º 201/2014 pronunciou-se sobre a constitucionalidade da norma ínsita no n.º 3 do artigo 551.º, nos termos da qual, no âmbito de contraordenações laborais, se o infrator for pessoa coletiva ou equiparada, respondem pelo pagamento da coima, solidariamente com aquela, os respetivos administradores, gerentes ou diretores. O referido aresto não rejeitou que o princípio da intransmissibilidade da responsabilidade penal possa assumir valência no domínio contraordenacional, embora “não ‘com o mesmo rigor’ ou ‘com o mesmo grau de exigência’ com que vale para o domínio criminal, mas apenas na sua ‘ideia essencial’”. Este aresto assentou, sobretudo, num juízo de ponderação, que levou à conclusão de que a responsabilização solidária dos gerentes, administradores ou diretores de pessoa coletiva, ou equiparada, pelo pagamento de coima laboral, encontra justificação como medida necessária para conferir adequada efetividade aos direitos dos trabalhadores consagrados na alínea c), do n.º 1, do artigo 59.º, da Constituição.

Referiu-se aí:

«(...) prima facie, também no domínio contraordenacional valerá o princípio da proibição de transmissão da responsabilidade, devendo tal princípio ser tido em conta na ponderação efetuada, desde logo, pelo legislador na configuração do ilícito contraordenacional.

Por sua vez, deve o Tribunal Constitucional, ao apreciar a conformidade constitucional de uma norma em matéria contraordenacional, verificar se, na ponderação efetuada em sede legislativa, o princípio da proibição de transmissão da responsabilidade foi devidamente integrado.

No que respeita ao critério de densidade de controlo, retira-se da jurisprudência do Tribunal Constitucional já referida, que, no domínio contraordenacional, é de reconhecer um maior poder de conformação do legislador, o que vale por dizer que deve o Tribunal limitar-se a um controlo de evidência.

Ora, a norma sub judicio, ao comprimir, é certo, o princípio da proibição de transmissão da responsabilidade, fá-lo em observância de deveres estaduais de proteção ou de prestação de normas, impendentes sobre o legislador ordinário, destinados a proteger bens jusfundamentais face a potenciais agressões provindas de terceiros, que se extraem do artigo 59.º, n.º 1, alínea c) da Constituição.

Com efeito, através da responsabilização dos respetivos administradores, dirigentes ou diretores pelo pagamento de coima aplicada à pessoa coletiva responsável pela contraordenação laboral, o legislador terá pretendido tornar mais eficaz a efetivação do sistema sancionatório num domínio em que a Constituição lhe comete expressamente deveres de proteção, ainda que sacrificando o princípio da proibição de transmissão da responsabilidade.

Qualquer juízo sobre a razoabilidade da ponderação, efetuada pelo legislador ordinário, passa por pesar a intensidade do sacrifício imposto pela norma sub judicio ao princípio da proibição de transmissão da responsabilidade e a vantagem que através dela se obtém para efeitos da proteção dos deveres estaduais que se extraem do artigo 59.º, n.º 1, alínea c).

No que respeita ao primeiro aspeto, verifica-se que a norma sub judicio não sacrifica totalmente o princípio da proibição de transmissão da responsabilidade. Com efeito, os sujeitos ficam apenas responsáveis pelo pagamento da coima, não lhes sendo transmitida a autoria do ilícito contraordenacional em si mesma considerada (v. supra, ponto 6).

A isso acresce que a transmissão da responsabilidade não opera entre indivíduos, mas sim entre uma pessoa coletiva, entidade responsável pela contraordenação laboral, e titulares de órgãos executivos dessa mesma pessoa coletiva. Dada a conexão objetivamente existente entre o sujeito passivo responsável pela contraordenação e os sujeitos que, nos termos da norma sub judicio, ficam responsáveis pelo pagamento da coima, não se afigura que a compressão do princípio da proibição de transmissão da responsabilidade se aproxime sequer do seu núcleo.

Por sua vez, no que se refere à vantagem que através dela se obtém para efeitos da proteção dos deveres estaduais que se extraem do artigo 59.º, n.º 1, alínea c), é admissível o entendimento segundo o qual o envolvimento, através da assunção coerciva da responsabilidade pelo pagamento da coima, dos administradores, gerentes ou diretores da pessoa coletiva responsável pela contraordenação-laboral, garante, diretamente, uma maior eficácia na cobrança efetiva da coima, e, através disso, indiretamente, uma mais elevada probabilidade de que a infração não chegará sequer a ser cometida, assim se protegendo melhor bens jusfundamentais.

Assim, porque não é possível, segundo um critério de evidência, asseverar que é desnecessário para efeitos de cumprimento dos referidos deveres de proteção o mecanismo de corresponsabilização pelo pagamento estabelecido no n.º 3 do artigo 551.º do Código do Trabalho (2009), o Tribunal Constitucional não pode senão deferir perante o juízo formulado pelo legislador sobre a adequação e necessidade do regime legal».

 

Por seu turno, o Acórdão n.º 691/16 não julgou inconstitucional a norma decorrente do n.º 1 do artigo 551.º do Código do Trabalho, que estabelece que «o empregador é o responsável pelas contraordenações laborais, ainda que praticadas pelos seus trabalhadores no exercício das respetivas funções, sem prejuízo da responsabilidade cometida por lei a outros sujeitos». O Tribunal Constitucional considerou que, por impender sobre a entidade patronal o dever legal de garantir as condições de segurança no trabalho, a mesma era contraordenacionalmente responsável, não apenas nas hipóteses em que, por ação sua, tivesse diretamente originado o resultado antijurídico, mas ainda no contexto de uma contribuição omissiva, causal ou cocausalmente promotora do resultado típico presumido, quando a infração fosse cometida por trabalhadores que se encontrassem ao seu serviço. Nesse sentido, considerou-se que a solução contida no n.º 1 do artigo 551.º do CT, de admitir a responsabilidade autónoma do empregador, sempre que um dever legal seja violado pelos seus trabalhadores, no exercício das suas funções e por causa delas, não poderia ser considerada violadora do princípio penal da culpa. A responsabilidade geral referente às condições de segurança no trabalho legalmente atribuída ao empregador foi considerada suficiente para que a transmissibilidade dessa autoria não violasse princípios constitucionais.

 

9. Por outro lado, o Tribunal Constitucional tem já entendido que, no contexto contraordenacional, a imputação de um facto a um agente tem por referente legal e dogmático um conceito extensivo de autoria de matriz causal, conceito este segundo o qual é considerado autor de uma contraordenação todo o agente que tiver contribuído causal ou cocausalmente para a realização do tipo, ou seja, que haja dado origem a uma causa para a sua realização ou que haja promovido, com a sua ação ou omissão, o facto ilícito, podendo isso ocorrer de qualquer forma (cfr. Frederico Lacerda da Costa Pinto, em “O ilícito de mera ordenação social”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 7, Fasc. 1, pág. 25-26).

Em adoção desse conceito, foram vários os acórdãos que não julgaram inconstitucionais normas que imputavam a responsabilidade contraordenacional a quem não era autor direto dos factos. Assim, no acórdão n.º 45/2014, o Tribunal não julgou inconstitucional a norma constante do artigo 13.º, n.º 1 e 2, da Lei n.º 27/2010, de 30 de agosto, aí tendo referido que:

“o relevo da opção legal por um conceito extensivo de autor no âmbito da responsabilidade contraordenacional, por oposição ao conceito restritivo de autoria que vigora, em regra, no domínio do direito penal, é especialmente percetível nos casos em que os factos cometidos envolvem a estrutura orgânica e funcional de uma empresa. Esta construção é uma decorrência lógica da existência no direito de mera ordenação social de normas de dever, cujo incumprimento é sancionado com coimas. Se o sistema impõe deveres a um leque alargado de destinatários é porque lhes reconhece capacidade para os cumprir e também para os violar. Daí que, apurando-se a violação do dever legalmente estabelecido os destinatários do mesmo serão responsáveis por essa violação.

É nesta lógica que, em casos como este, a regra de imputação colocada pelo conceito extensivo de autor conduzirá à responsabilização da entidade dirigente titular do dever de garante sempre que se tenha verificado o resultado (a inobservância do dever) que ela se encontrava legalmente incumbida de evitar. Impendendo sobre a entidade patronal, o dever legal de garantir o cumprimento das regras respeitantes aos tempos de condução, pausas e tempos de repouso e ao controlo da utilização de tacógrafos, na atividade de transporte rodoviário, ela é contraordenacionalmente responsabilizável, nos termos previstos no diploma em análise, não apenas nas hipóteses em que, por ação sua, tiver originado diretamente o resultado antijurídico, mas ainda no contexto de uma contribuição omissiva, causal ou cocausalmente promotora do resultado típico presumida, quando a infração é cometida pelo condutor que se encontra ao seu serviço

Competindo-lhe enquanto entidade patronal organizar o transporte rodoviário de modo a que o condutor ao seu serviço cumpra as normas que regulamentam essa atividade, designadamente as regras laborais, não se revela arbitrária, nem injustificada, a presunção de que a inobservância dessas regras por parte do condutor tem a sua causa na deficiente organização daquela atividade, estando nós perante o funcionamento de uma mera presunção relativa a factos. Se uma construção deste tipo pode ser problemática no domínio do direito penal, já em sede de direito de mera ordenação social em que apenas está em jogo a aplicação de coimas, não suscita qualquer reserva, tanto mais que, neste caso, se permite que a entidade patronal afaste a sua responsabilidade contraordenacional, demonstrando que organizou o serviço de transporte rodoviário de modo a que o seu condutor pudesse ter cumprido a norma que inobservou, ilidindo assim aquela presunção.” (Frederico Lacerda da Costa Pinto na ob. cit., pág.48)”.

 

10. No que toca ao uso de presunções, as presunções são normas criadas pelo legislador que estabelecem uma relação entre um facto conhecido (provado) e um facto desconhecido ou incerto, inferindo este último a partir daquele (isto, tendo presente a noção legal de presunção contida no artigo 349.º do Código Civil: presunções são as ilações que a lei (…) tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido). Ou seja, a presunção assenta numa relação lógica estabelecida pelo legislador entre o facto-base ou facto indiciário e o facto presumido.

A presunção legal opera uma inversão do ónus da prova, desonerando desta, aqueles que têm a presunção a seu favor (Acórdão n.º 211/2017). Por regra, as presunções legais estabelecem uma verdade presumida (não provada) que poderá vir a ser infirmada mediante prova em contrário – presunções ilidíveis ou presunções iuris tantum; já as presunções iuris et de iure não admitem prova em contrário, sendo assim também chamadas de presunções inilidíveis ou absolutas, e tidas como a exceção àquela regra (artigo 350.º, n.ºs 1 e 2 do CCv).

Ora, no que tange às presunções em matéria sancionatória, o Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 276/2004, procedeu a uma interpretação conforme à Constituição do disposto no artigo 152.º, n.º 1 do Código da Estrada (que determina que caso o agente da autoridade não consiga identificar o autor da contraordenação, a responsabilidade recai sobre quem for proprietário, adquirente com reserva de propriedade, usufrutuário, locatário em regime de locação financeira, locatário por prazo superior a um ano ou sobre quem, em virtude de facto sujeito a registo, for possuidor do veículo, sendo instaurado contra ele o correspondente processo), firmando que tal normativo apenas estabelece uma presunção ilidível. Ali se escreveu, além do mais, que:

«De facto, como acontece no presente caso, não é aceitável concluir que uma norma como a do n.º 1 do artigo 152º do Código da Estrada, que estabelece a possibilidade de a responsabilidade contraordenacional, em determinadas circunstâncias, ser atribuída ao proprietário ou possuidor de um veículo, possa ser interpretada no sentido de abranger situações em que está provado nos autos não só que o arguido, à data da infração, já não era proprietário ou possuidor do veículo - embora o seu nome constasse ainda do registo, mas também que foi um terceiro, devidamente identificado, o infrator. Interpretar o mencionado artigo 152º, n.º 1, em termos de considerar responsável quem não é proprietário ou possuidor, apenas porque como tal consta do registo, quando está provado, ainda, que não foi esse o infrator, mas sim outro, devidamente identificado, é imputar a tal normativo um sentido desrazoável - um sentido que o intérprete só extrai, se desrespeitar, na interpretação, o dever de presumir que “o legislador consagrou as soluções mais acertadas” (cfr. artigo 9º, n.º 3, do Código Civil).

Com efeito, como o Tribunal Constitucional tem decidido, nomeadamente na numerosa jurisprudência sobre a responsabilidade criminal de diretor de periódico (cfr., Acórdãos n.ºs 63/85, 447/87 e 135/92, publicados, respetivamente, em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5º vol., pág. 503, 10º vol., pág. 547 e 21º vol. pág. 541, e Acórdão 922/96, disponível na página Internet do Tribunal em http://www.tribunalconstitucional.pt/jurisprudencia.htm) e no Acórdão n° 252/92, (publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 22° vol., pág. 723), a existência de presunções, mesmo em direito penal, não é constitucionalmente inadmissível, desde que ilidíveis».

 

Ora, no caso presente, a sobredita interpretação conforme à Constituição não se afigura possível, pois a norma contida no artigo 10.º, n.º 6, da Lei n.º 25/2006 – por reporte ao prazo previsto no n.º 1, cujo teor é, aliás, claramente inspirado no sobredito artigo 152.º, n.º 1 do Código da Estrada - é expressa ao fazer precludir “definitivamente” a possibilidade de ilidir a presunção decorrido aquele prazo.

É certo, como já se afirmou, que em matéria das contraordenações o legislador se socorre muitas vezes de presunções, justificadas por razões de praticabilidade e efetividade da sanção. No entanto, ao ser afastada a possibilidade de prova em contrário, como se verifica no presente caso, as presunções inilidíveis aproximam-se da figura das ficções legais, através das quais o facto ficcionado é definitivamente fixado sem que se considere sequer a possibilidade de demonstração de uma realidade diversa.

Estabelece-se, assim, uma presunção inilidível da prática da contraordenação. Resta saber se tal presunção entra em confronto com o princípio da culpa, com a dimensão que o mesmo reveste na jurisprudência constitucional em matéria de contraordenações.

 

11. Já referimos que o conceito de culpa em matéria de contraordenações reveste um significado específico, podendo ser compatível quer com situações excecionais de transmissibilidade da responsabilidade, quer com um conceito amplo de autoria.

Porém, nos casos de transmissão da responsabilidade já anteriormente analisados pela jurisprudência do Tribunal Constitucional, pré-existia uma conexão objetiva entre o sujeito passivo responsável pela contraordenação e os sujeitos responsáveis pelo pagamento da coima, fosse ela uma conexão orgânica ou contratual, tendo sido, no âmbito da atividade desenvolvida pelo organismo em causa ou à qual se destinava o contrato, que foi praticada a contraordenação. Referiu-se, para o efeito, no acima citado Acórdão n.º 201/2014: “Dada a conexão objetivamente existente entre o sujeito passivo responsável pela contraordenação e os sujeitos que, nos termos da norma sub judicio, ficam responsáveis pelo pagamento da coima, não se afigura que a compressão do princípio da proibição de transmissão da responsabilidade se aproxime sequer do seu núcleo”.

Por outro lado, no que ao conceito amplo de autoria respeita, tal conceito assenta ainda numa exigência causal, apenas podendo ser considerado autor de uma contraordenação quem tiver, no mínimo, contribuído para a realização do tipo, tendo dado origem a uma causa para a sua realização ou que haja promovido, com a sua ação ou omissão, o facto ilícito. Daqui podemos retirar um conteúdo mínimo do conceito de autoria – a existência de um nexo causal mínimo entre o autor e a prática da contraordenação em causa – indispensável à satisfação do princípio da culpa.

 

12. Resta, pois, verificar se tal conteúdo mínimo do princípio da culpa, atuante no contexto da responsabilidade contraordenacional, é lesado com a norma delimitada como constituindo o objeto do presente recurso.

A norma do n.º 6 do artigo 10.º da Lei n.º 25/2006, de 30 de junho, foi interpretada pelas instâncias no sentido de que, sempre que não for possível identificar o condutor do veículo no momento da prática da contraordenação, é sempre responsável pelo pagamento das coimas a aplicar, das taxas de portagem e dos custos administrativos em dívida, o proprietário do veículo, identificado no registo, tornando-se essa presunção inilidível em sede do próprio processo judicial de impugnação da decisão administrativa.

Ora, ainda que se considere que o princípio da culpa não reveste o mesmo significado em matéria contraordenacional, tal interpretação afronta, de facto, o conteúdo mínimo de tal princípio. A interpretação em causa impõe a responsabilidade do proprietário registado do veículo que faltou ao pagamento da coima e das custas, independentemente da sua real participação nos factos e mesmo na ausência de qualquer ligação com o autor da infração à data dos mesmos. Ou seja, a mencionada interpretação impõe a responsabilização de quem pode não ter tido qualquer participação, conexão ou ainda aproveitamento pessoal dos factos praticados.

Perante tal resultado, e recuperando a específica configuração dos princípios da culpa e da proibição de transferência de responsabilidade sancionatória no domínio contraordenacional, bem como o maior poder de conformação do legislador nesta matéria, a análise da solução legal far-se-á, então, tendo em consideração os interesses públicos que a mesma visa acautelar, de forma a determinar se o legislador ultrapassou a sua margem de conformação com a norma em causa.

 

13. Ora, contrariamente ao que sucede com as normas de responsabilidade contraordenacional em infrações rodoviárias – que preveem uma responsabilidade meramente subsidiária do titular do documento de identificação do veículo (ou do locatário) pelo pagamento das coimas e das custas que forem devidas pelo autor da contraordenação, e ainda a possibilidade do exercício do direito de regresso contra o autor da contraordenação, caso tenha havido detenção abusiva do veículo (artigo 135.º, n.º 8 do Código da Estrada) - a norma objeto de generalização do juízo de inconstitucionalidade, relativa à falta de pagamento de taxa de portagem, não estabelece qualquer responsabilidade subsidiária do titular do documento de identificação do veículo pelo pagamento das coimas e das custas que forem devidas pelo autor da contraordenação. Mais: na interpretação a que chegaram as instâncias judiciais, caso aquele titular não identifique outra pessoa num prazo de 30 dias, não lhe é mais permitido ilidir a presunção da sua responsabilidade, mesmo em sede de impugnação judicial.

Interpretada da forma como o foi pelos tribunais, a presente norma pode impor a responsabilidade pelo pagamento dos valores devidos pela portagem e contraordenação a quem não tenha qualquer ligação com o autor da prática da infração. De facto, ainda de acordo com a referida interpretação, decorrido o referido prazo de trinta dias, o ex-proprietário do veículo - ainda que comprovada a venda do mesmo, mas não se encontrando a mesma registada -, responderá sempre pela prática das contraordenações em causa, decorrido o aludido prazo.

Ora, tal responsabilização faz perigar o núcleo essencial do princípio da culpa que, ainda que em matéria de contraordenações, se impõe ser reconhecido, sob pena de postergar um mínimo de previsibilidade sobre as consequências dos comportamentos individuais, o que é insustentável num Estado de Direito.

De resto, tal solução legal não se afigura minimamente proporcional às pretensões do legislador: obter o pagamento de taxas de portagem e a responsabilização contraordenacional pela falta desse pagamento. Como acima se verificou, por infrações mais graves (v.g., infrações estradais), a lei não estabelece qualquer presunção juris et de iure de responsabilização contraordenacional.

Face ao exposto resta concluir, pois, que a presunção inilidível, em sede de processo judicial, de responsabilidade do titular do documento de identificação do veículo ou do locatário que resulta do decurso do prazo previsto na lei para a indicação do condutor, viola o conteúdo mínimo do princípio da culpa.

Poderá argumentar-se que essa presunção tem suficiente autonomia em relação à questão, em si mesma considerada da transferência da responsabilidade. Isto é, que se trata aí já de uma questão essencialmente processual e, nesse sentido, já só indiretamente poderia implicada no princípio da culpa. No entanto, o n.º 6 do artigo 10.º da Lei n.º 25/2006, de 30 de junho, pressupõe, tem mesmo como elemento inexorável, uma transferência de responsabilidade. Que começa por emergir dos números anteriores do mesmo preceito (em especial, do seu n.º 3), mas que se apenas consuma no n.º 6, em virtude do qual se torna irreversível e inelutável. É por isso que a norma decorrente deste n.º 6 comporta – não apenas (como veremos já de seguida), mas também e desde logo –, uma violação do princípio da culpa.

 

14. Mas se o princípio da culpa sai afrontado com a dimensão normativa ora em discussão, a norma desaplicada poderá afrontar ainda a garantia do direito de defesa em processo jurisdicional de impugnação de contraordenações. A decisão recorrida invocou a violação do artigo 32.º, n.º 10 da Constituição e das garantias de acesso à tutela jurisdicional efetiva, previstas no artigo 20.º, n.ºs 1 e 4 da mesma Lei Fundamental.

No que diz respeito ao n.º 10 do artigo 32.º, referiu-se no Acórdão n.º 180/2014 que o mesmo releva “no plano adjetivo e significa ser inconstitucional a aplicação de qualquer tipo de sanção contraordenacional ou administrativa sem que o arguido seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe são feitas (Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra, 2005, pág. 363, e acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 160/2004 e 161/2004)”.

Por outro lado, tem-se referido que “com a introdução dessa norma constitucional (efetuada, pela revisão constitucional de 1989, quanto aos processos de contraordenação, e alargada, pela revisão de 1997, a quaisquer processos sancionatórios) o que se pretendeu foi assegurar, nesses tipos de processos, os direitos de audiência e de defesa do arguido, direitos estes que, na versão originária da Constituição, apenas estavam expressamente assegurados aos arguidos em processos disciplinares no âmbito da função pública (…). Tal norma implica tão-só ser inconstitucional a aplicação de qualquer tipo de sanção, contraordenacional, administrativa, fiscal, laboral, disciplinar ou qualquer outra, sem que o arguido seja previamente ouvido (direito de audição) e possa defender-se das imputações que lhe são feitas (direito de defesa), apresentando meios de prova e requerendo a realização de diligências tendentes a apurar a verdade (…)” - Acórdão n.º 659/2006.

No Acórdão n.º 469/97, o Tribunal Constitucional afirmou que as exigências decorrentes do n.º 10 do artigo 32.º valem não apenas para a fase administrativa, mas também para a fase jurisdicional do processo, sublinhando-se que “não fará sentido aceitar que os mesmos não tenham projeção na fase recursória posterior, que corresponde à jurisdicionalização daquele processo. Na verdade, esta segunda fase significa um reforço das garantias do particular a quem é imputada determinada infração e seria incongruente introduzir nela alguma modulação que não fosse no sentido do acréscimo daquelas mesmas particulares garantias que a Constituição expressamente consagrou neste domínio”. O acórdão referido referiu, inclusivamente, que esta “matéria é precisamente daquelas em que mais proximidade entre os dois ordenamentos processuais deverá existir”, reportando-se às garantias do processo criminal e contraordenacional. No entanto, em acórdãos posteriores, o Tribunal Constitucional já veio considerar que a sede adequada da análise da eventual violação de direitos de defesa em processo jurisdicional se situava no contexto do respeito pelas garantias consagradas nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4 da CRP. Assim se afirmou no Acórdão n.º 135/2009, que considerou ser “descabida a invocação, para esta fase, do disposto no n.º 10 do artigo 32.º da CRP”.

 

15. Seguindo a jurisprudência mais recente importa, pois, confrontar a norma em presença com o direito de impugnação de decisões sancionatórias perante os tribunais - direito que se funda, em geral, no artigo 20.º, n.º 1, e, especificamente para as decisões administrativas, no artigo 268.º, n.º 4, da Constituição.

De facto, na sequência da impugnação perante os tribunais de decisões administrativas, os processos contraordenacionais entram na “fase jurisdicional”, gozando os arguidos, aí impugnantes, das genéricas garantias constitucionais dos processos judiciais, quer diretamente referidas no artigo 20.º (garantia de processo equitativo), quer ainda, mais especificamente, no artigo 268.º, n.º4 (garantia aos administrados da tutela jurisdicional efetiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos). Foi neste quadro que o Acórdão n.º 135/2009 do Tribunal Constitucional julgou inconstitucional o critério normativo segundo o qual o pagamento voluntário da coima por contraordenação rodoviária impossibilita o arguido de discutir em tribunal a própria existência da infração. Pode ler‑se em tal aresto que o direito de impugnação perante os tribunais das decisões sancionatórias em causa se funda, em geral, no artigo 20.º, n.º 1, e, especificamente para as decisões administrativas, no artigo 268.º, n.º 4, da CRP. Mais acrescenta que “não se ignorando que serão menos intensas as preocupações garantísticas em processos contraordenacionais em comparação com o processo criminal (cf. Acórdãos n.ºs 269/87 e 313/2007), aquelas não podem, contudo, ser de tal modo desvalorizadas que ponham em cheque a própria efetividade da tutela jurisdicional e as exigências de um processo equitativo”.

Volvendo ao caso presente, importa saber se viola tais garantias a norma objeto do presente recurso, tal como foi interpretada pelo tribunal recorrido, no sentido de não permitir ao arguido em recurso de impugnação judicial da decisão administrativa sancionatória ilidir a presunção de responsabilidade.

Afirmou, neste contexto, o Acórdão n.º 612/2014, que, em processos contraordenacionais, o direito de acesso aos tribunais, satisfaz-se com a possibilidade, exercida pelo recorrente nos autos, de impugnar judicialmente a decisão administrativa que lhe aplicou a coima, tal como especialmente garantido à generalidade dos administrados em face de atos administrativos que os lesem (artigo 268.º, n.º 4, da Constituição).

Poderia dizer-se que a garantia assim referida não é posta em causa pela norma objeto do presente recurso, já que ela não veda, em si, a possibilidade de se impugnar judicialmente a decisão administrativa – a qual, aliás, foi exercida no caso em presença.

Mas, quer o direito de acesso a uma impugnação judicial de decisões administrativas que se queira efetiva, quer o próprio direito de acesso aos tribunais em geral – o qual reclama expressamente uma tutela jurisdicional efetiva – não se bastam com a simples garantia formal de acesso aos tribunais por parte dos administrados. De facto, da consagração do direito à tutela jurisdicional efetiva derivam vários corolários que se repercutem em exigências materiais que devem enformar a específica modelação dos processos e os direitos das partes.

Um deles é o direito de defesa e do contraditório. Este direito pressupõe que cada uma das partes possa expor as suas razões perante o tribunal em condições que a não desfavoreçam em relação à parte contrária (Acórdão n.º 1193/96), e que, antes de o juiz decidir, cada uma delas possa expor as suas razões e apresentar provas que sustentem a sua pretensão, não podendo haver decisão sem que as mesmas tenham tido oportunidade de serem ouvidas sobre a matéria (Acórdão n.º 582/2000).

Ora, também no que toca ao respeito pelo princípio do contraditório – que em processo jurisdicional de impugnação de medida sancionatória assume a relevância de um verdadeiro direito de defesa – ele não se basta com a simples garantia de audição ou de apresentação de provas. O direito do contraditório e da defesa exigem que as partes não só tenham direito a apresentar razões, oferecer provas e tomar posição sobre as provas do adversário, mas ainda que, através desses meios, possam exercer uma influência efetiva na decisão. Um princípio do contraditório que se baste com um momento processual formal de audição, sem que o mesmo possa ter qualquer relevância para a decisão, não garante materialmente que as posições das partes sejam efetivamente consideradas pelo decisor.

Neste sentido, importa referir novamente o Acórdão n.º 135/2009, em que o Tribunal Constitucional considerou que o critério normativo segundo o qual o pagamento voluntário da coima por contraordenação rodoviária impossibilitava ao arguido a possibilidade de discutir em tribunal a própria existência da infração não respeitava os requisitos constitucionais do acesso aos tribunais para tutela efetiva de direitos e interesses legalmente reconhecidos, através de um processo equitativo. Considerou-se, aí, precisamente, que a norma contraordenacional em causa previa uma presunção inilidível que punha em cheque a própria efetividade da tutela jurisdicional e as exigências de um processo equitativo. O Tribunal concluiu, em suma, que o critério normativo questionado não poderia deixar de ser encarado como representando uma verdadeira impossibilidade de impugnação do ato administrativo.

Neste contexto, também o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem afirmou já que o princípio do contraditório, decorrente do artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, implica a faculdade de as partes discutirem quaisquer elementos ou observações apresentadas ao juiz, ainda que por outra autoridade pública, tendo em vista influenciar a sua decisão (Acórdão de 20/02/1996, Lobo Machado c. Portugal, queixa n.º 15764/89, § 31).

De outra perspetiva, o Tribunal Constitucional já afirmou que a tutela jurisdicional efetiva pressupõe um contencioso de âmbito pleno, em que não só as partes devem ser admitidas a invocar factos relevantes e trazer meios de prova para sustentar as suas pretensões, como ainda deve ser garantido ao Tribunal o poder efetivo de conhecer e ponderar esses factos e meios de prova. Trata-se da contrapartida do referido direito ao contraditório com o sentido material de “poder influenciar a decisão”.

Nesse sentido, atente-se ao que têm afirmado diversos arestos (cf., entre outros, os Acórdãos n.ºs 429/89 e 8/99) e a mais relevante doutrina: “o artigo 269.º, n.º 2  (atual artigo 268.º, n.º 4), da Constituição, pode e deve ser interpretado como estabelecendo uma garantia completa de recurso, quer dizer, uma garantia que assegura aos particulares a possibilidade de impugnarem judicialmente todos os atos singulares e concretos da Administração Pública que produzam efeitos jurídicos externos e sejam suscetíveis, portanto, de lesar os seus direitos”, pelo que “quaisquer normas legais que excluam esta possibilidade de impugnação relativamente a certos atos ou a certas categorias de atos administrativos ou que restrinjam os possíveis fundamentos de tal impugnação apenas a alguns dos vícios suscetíveis de gerar a antijuridicidade desses atos, têm de ser havidas como inconstitucionais, e, por via de consequência, como inteiramente irrelevantes” (José Manuel Cardoso da Costa, “A tutela dos direitos fundamentais”, Boletim do Ministério da Justiça – Documentação e Direito Comparado, n.º 5, 1981, p. 209). Ou, na formulação de J.J.Gomes Canotilho e Vital Moreira: “A garantia constitucional do recurso impede a isenção contenciosa de certos atos, ou partes de atos, ou a exclusão do conhecimento de certos vícios, de modo a conferir direito à impugnação contenciosa de todos os atos em todos os aspetos juridicamente vinculados” (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição, Coimbra, p. 938).

Ora o entendimento amplo do direito à tutela jurisdicional efetiva acabado de expor não é minimamente satisfeita na norma objeto do presente recurso. Entender a norma contida no n.º 6 do artigo 10.º da Lei n.º 25/2006, de 30 de junho, no sentido de estabelecer uma presunção inilidível, independentemente da prova que sobre a autoria for feita mesmo em processo judicial, não permite ao arguido poder, através do recurso jurisdicional, alterar a decisão administrativa que foi tomada sobre a autoria do ilícito, através de prova que a invalide, nem permite ao tribunal conhecer desta última. Não se permite, em suma, exercício material de um direito de impugnação judicial que a Constituição confere ao administrado (acoimado) por ela visado (artigo 268.º, n.º 4), nem a garantia da tutela jurisdicional efetiva plasmada no art. 20.º da Constituição.

Razão que impõe um juízo de inconstitucionalidade, por violação do direito a uma tutela jurisdicional efetiva, da norma contida no n.º 6 do artigo 10.º da Lei n.º 25/2006, de 30 de junho, quando interpretada no sentido de estabelecer uma presunção inilidível em relação ao autor da contraordenação, independentemente da prova que sobre a autoria for feita mesmo em processo judicial.

 

16. Finalmente, a norma do n.º 6 do artigo 10.º da Lei n.º 25/2006, de 30 de junho, pode ainda ser confrontada – tal como fizeram as decisões recorridas nos casos que suportam o pedido de generalização do juízo de inconstitucionalidade – com o princípio da presunção da inocência.

A primeira questão que, neste contexto, importa analisar, é a de saber se o direito do arguido a que seja presumido inocente até ao trânsito em julgado de sentença de condenação, consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição, se estende, por força do disposto no n.º 10 do mesmo artigo, aos processos jurisdicionais de impugnação de contraordenações.

A essa questão não pode deixar de se dar uma resposta afirmativa. No Acórdão n.º 397/2017 e no Acórdão n.º 675/2016 afirmou-se que o princípio da presunção de inocência pertence àquela classe de princípios materiais do processo penal que, enquanto constitutivos do Estado de direito democrático, são extensíveis ao direito sancionatório público, pelo que este princípio encontra, pois, aplicação também no processo contraordenacional, como decorre dos n.ºs 2 e 10 do artigo 32.º da Constituição. Mais se afirmou que o estatuto processual do arguido no processo contraordenacional, enformado pela garantia da presunção de inocência, permite, por exemplo – e para o que agora releva –, que o tratamento do arguido ao longo de todo o processo seja configurado sem perder de vista a possibilidade de verificação da sua inocência, não sendo de admitir, designadamente, que o arguido seja tido como culpado antes de o tribunal formalizar o juízo sancionatório de forma necessariamente fundamentada.

Ora, o entendimento da norma ora questionada como estabelecendo uma presunção inilidível da autoria do ilícito de não pagamento de taxas de portagem, não pode deixar de se ter como violadora do princípio da presunção da inocência. De facto, ao entender-se que a norma estabelece uma presunção inilidível da prática do ilícito, o arguido é tido como autor do mesmo independentemente da prova que possa vir a fazer em juízo destinada a demonstrar a sua inocência. Tal entendimento normativo afronta diretamente e de forma intolerável o princípio da presunção da inocência, já que o que tal norma determina é precisamente uma presunção inabalável de culpabilidade.

Note-se que não é a simples previsão de uma presunção legal que comporta a violação do princípio agora em análise. Como se afirmou também no já citado Acórdão n.º 135/2009, não se questiona a possibilidade de o legislador, mesmo em matéria sancionatória estabelecer presunções. O que é intolerável é a existência de presunções inilidíveis em contexto sancionatório, quando reportadas à autoria da prática de infrações.

De facto, tais presunções inilidíveis traduzem-se em conclusões inabaláveis de autoria ou culpabilidade, que, por isso, sempre valerão independentemente de toda a prova que o arguido possa fazer e da convicção que o juiz possa firmar. Neste último ponto, importa sublinhar que o sentido do princípio da presunção da inocência influi diretamente sobre a apreciação da prova e sobre o princípio da livre convicção do julgador (assim, Germano Marques da Silva e Henrique Salinas, “Anotação ao Artigo 32.º”, in Jorge Miranda, Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, vol. I, Universidade Católica Editora, 2017, p. 526). Ora, uma presunção inilidível sobre a prática de um ilícito não permite ao tribunal procurar a verdade ou relevar qualquer prova sobre a autoria dos factos, nunca podendo, como afirma a decisão recorrida, fazer sequer atuar o princípio in dubio pro reo quando não se consiga firmar convicção sobre a efetiva autoria dos factos.

Assim, quer por impedirem ao arguido afastar uma presunção de autoria de um ilícito, quer ainda por impedirem ao tribunal de formar livremente a sua convicção sobre a mesma, tal norma não pode deixar de violar o princípio da presunção da inocência.

Termos em que se conclui que a norma constante do artigo 10.º, n.º 6 da Lei n.º 25/2006, quando interpretada no sentido de que estabelece uma presunção inilidível em relação ao autor da contraordenação, independentemente da prova que sobre a autoria for feita mesmo em processo judicial, também viola o princípio da presunção da inocência, consagrado no artigo 32.º, n.º 2 da Constituição.

 

III - Decisão

 

Pelo exposto, decide-se:

 

a) Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por violação do princípio da culpa, do direito de defesa em processo contraordenacional, e do direito à tutela jurisdicional efetiva e do princípio da presunção da inocência, constantes dos artigos 2.º, 32.º, n.ºs 2 e 10, 20.º, n.ºs 1 e 4 e 268.º, n.º 4, da Constituição, a norma contida no n.º 6 do artigo 10.º da Lei n.º 25/2006, de 30 de junho, quando interpretada no sentido de estabelecer uma presunção inilidível em relação ao autor da contraordenação, independentemente da prova que sobre a autoria for feita em processo judicial;

 

Sem custas.

 

Lisboa, 24 de março de 2021

Nos termos do disposto no artigo 15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março (aditado pelo artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 20/2020, de 1 de maio), tem voto de conformidade dos seguintes Conselheiros:

Manuel da Costa Andrade (por violação do direito de defesa em processo contraordenacional e do princípio da presunção de inocência - José Teles Pereira  - Joana Fernandes Costa - Maria José Rangel de Mesquita (com declaração de voto) - Assunção Raimundo - Gonçalo de Almeida Ribeiro - Fernando Vaz Ventura (com declaração de voto) - Pedro Machete (com declaração de voto) - Mariana Canotilho (com declaração de voto) - Maria de Fátima Mata-Mouros - José João Abrantes - João Pedro Caupers

Lino Rodrigues Ribeiro

DECLARAÇÃO DE VOTO

Acompanhamos a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma constante da alínea a) da Decisão nos exatos termos da declaração de voto anexa ao Acórdão n.º 388/18, da 3.ª Secção – apenas com os fundamentos constantes dos pontos 14. e 15. Da fundamentação do Acórdão.

Maria José Rangel de Mesquita

DECLARAÇÃO DE VOTO

 

Subscrevo a decisão, mas não acompanho a fundamentação na afirmação que a norma comporta «desde logo», e por influxo dos primeiros números do artigo 10.º da Lei n.º 25/2006, com destaque para o n.º 3, uma violação do princípio da culpa (segmento final do ponto 13), isto é, em primeira instância, independentemente do efeito processual que comporta: através de um ónus imposto na fase administrativa do processo, cuja inobservância implica a prova dos factos a que se refere a norma, fica inexoravelmente vedado que essa matéria – a autoria - possa ser objeto de discussão e prova no processo judicial.

Entendo que, em última instância, a norma em exame, com a natureza de presunção inilidível, lesa igualmente o princípio da culpa no direito das contraordenações, porquanto, como também se diz no Acórdão (v. ponto 12), por via da mesma, e da lesão do princípio da verdade material que envolve, pode uma pessoa que não seja agente da contraordenação ser por ela responsabilizada.

Mas a norma não comporta, nem implica, desligada desse efeito (possível), uma censura de culpa desprovida de qualquer conexão do sujeito com o facto ilícito, sem comprovação do caráter censurável da conduta, ou que dispense a imputação a título de dolo ou negligência. Permanece o nexo com o domínio do veículo que circulou em infraestrutura rodoviária sem que fosse efetuado o pagamento da correspondente portagem que emana da respetiva titularidade. Não se está, assim, em rigor, perante uma norma (rectius, um sistema normativo) que preveja uma pura responsabilidade objetiva no domínio das contraordenações.

Fernando Ventura

DECLARAÇÃO DE VOTO

 

Voto a decisão e a respetiva fundamentação, exceto no respeitante à violação do princípio da culpa (cfr. o n.º 7 do Acórdão e a referência ao artigo 2.º da Constituição no dispositivo), porquanto, em meu entender, existe uma conexão (objetiva e cocausal)  suficiente entre a titularidade do documento de identificação do veículo e o não pagamento de taxas de portagem em infraestruturas rodoviárias, sempre que não seja possível identificar o condutor do veículo no momento da prática de tal contraordenação, justificativa da presunção de responsabilidade – e consequente possível transmissão da mesma – para as pessoas referidas no n.º 3 do artigo 10.º da Lei n.º 25/2006, de 30 de junho, nas condições aí previstas.

O artigo 118.º do Código da Estrada disciplina a matéria atinente à identificação dos veículos e à responsabilidade pela sua circulação (cfr. os seus n.ºs 1 e 2). As pessoas que em cada momento são responsáveis por tal circulação devem poder ser identificadas pela autoridade competente para a matrícula, razão por que, tanto o adquirente ou a pessoa a favor de quem seja constituído direito que confira a titularidade do documento de identificação do veículo, como o vendedor ou a pessoa que, a qualquer título jurídico, transfira para outrem a titularidade de direito sobre o veículo, têm o dever – cujo incumprimento é sancionado com coima – de comunicar tal facto à citada autoridade (cfr. os n.ºs 3, 4 e 10 do mencionado artigo 118.º).

Compreende-se, assim, que, relativamente às infrações que respeitem ao exercício da condução, embora a responsabilidade recaia em princípio sobre o condutor do veículo, não sendo possível identificá-lo, seja responsável por tais infrações o titular do documento de identificação do veículo, a menos que tenha ocorrido uma utilização abusiva (cfr. o artigo 135.º, n.ºs 3, alíneas b) e c), e 4, do Código da Estrada). A projeção processual de tal responsabilidade contraordenacional dá-se nos termos do artigo 171.º, n.ºs 2, 3 e 4, do mesmo Código. Com efeito, na ausência de uma utilização abusiva, aquele titular tem a obrigação de saber quem conduz o veículo que se encontra matriculado em seu nome e por cuja circulação ele é responsável.

A lógica subjacente à presunção de responsabilidade do artigo 10.º, n.º 3, da Lei n.º 25/2006 é idêntica e assenta no mesmo tipo de razões e preocupações. Por isso, também não se me afiguram exatas as afirmações feitas no Acórdão, designadamente nos seus n.ºs 12 («responsabilização de quem pode não ter tido qualquer participação, conexão ou aproveitamento pessoal dos factos») e 13 («as normas de responsabilidade em infrações rodoviárias […] preveem uma responsabilidade meramente subsidiária do titular do documento de identificação do veículo»).

O caráter inilidível da aludida presunção suscita problemas constitucionais, sim, mas à luz dos parâmetros analisados nos n.ºs 14, 15 e 16 do Acórdão.

Pedro Machete

DECLARAÇÃO DE VOTO

 

Votei a decisão, com a qual concordo. Porém, afasto-me da fundamentação constante dos pontos 8 a 13 do Acórdão, por entender que a norma em causa tem uma dimensão quase exclusivamente processual - estando em causa uma presunção de prova relativa à autoria do facto contraordenacional -, pelo que deve ser apreciada à luz das garantias de defesa no processo contraordenacional e da presunção de inocência, e não do princípio da culpa. Aliás, afasto-me, também, de várias das considerações tecidas a respeito deste princípio no âmbito das contraordenações, por entender que ele deve ser entendido, nesse específico contexto, de forma substancialmente distinta do processo penal.

 

Mariana Canotilho

 




 


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