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TC > Jurisprudência > Acordãos > Acórdão 534/2021

ACÓRDÃO Nº 534/2021

Processo n.º 987/2019

3.ª Secção

Relator: Conselheiro Gonçalo de Almeida Ribeiro

             (Conselheira Maria José Rangel de Mesquita)

 

 

Acordam na 3.ª secção do Tribunal Constitucional

 

 

I. Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Central Administrativo Sul, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, foi interposto o presente recurso ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional, referida adiante pela sigla «LTC»), do acórdão daquele Tribunal, de 7 de março de 2019.

 

2. Por sentença datada de 13 de Novembro de 2017, o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa julgou procedente ação administrativa de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa, proposta pelo Ministério Público contra a aqui recorrente ao abrigo do disposto nos artigos 9.º, alínea b) e 10.º, n.º 1, da Lei n.º 37/81, de 3 de outubro (Lei da Nacionalidade), na redação dada pela Lei Orgânica n.º 8/2015, de 22 de junho, determinando o arquivamento do processo de aquisição da nacionalidade portuguesa pendente na Conservatória dos Registos Centrais.

Inconformada com tal decisão, a ora recorrente dela interpôs recurso para o Tribunal Central Administrativo Sul.

Este Tribunal, por acórdão datado de 7 de março de 2019 – o acórdão ora recorrido –, negou provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.

A recorrente interpôs ainda recurso de revista excecional para o Supremo Tribunal Administrativo, nos termos do artigo 150.º, n.º 1, do CPTA. Porém, esse Tribunal não admitiu a revista.

3. Foi então interposto o presente recurso, através do qual a recorrente pretende a apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 9.º, alínea b), da Lei n.º 37/81, de 3 de outubro (Lei da Nacionalidade), na redação dada pela Lei Orgânica n.º 8/2015, de 22 de junho, segundo a qual constitui fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa a condenação, com trânsito em julgado da sentença, pela prática de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a 3 anos, segundo a lei portuguesa, quando foi aplicado o mecanismo de substituição da pena de prisão pela pena de multa, nos termos do artigo 43.° do Código Penal.

Determinado o prosseguimento dos autos, a recorrente produziu alegações, das quais extraiu as seguintes conclusões:

«I. O Acórdão do TCAS de que se recorre faz uma interpretação errada do Acórdão n.° 331/2016 do Tribunal Constitucional proferido no Processo n.° 1155/2014 e publicado a 14 de junho de 2016 no Diário da República, consultável em www.dre.pt.") por oposição à aplicação automática da verificação objetiva.

II. Onde parece ser defendida, não só a reabilitação administrativa, mas também a reabilitação judicial, por aplicação do instituto da dispensa da pena, que também deve, (nos termos da Lei n.° 37/2015, de 5/5) ser transcrita para o Registo Criminal.

III. Neste termos, entende a Recorrente que tendo sido condenada em pena de multa (posteriormente substituída por trabalho a favor da comunidade - e mesmo que não fosse substituída), tem de ter o mesmo efeito que o instituto da dispensa da pena, isto é, como se pode ler no acórdão 331/2016 do Tribunal Constitucional "Nestes termos, se é indiscutível que a tarefa de. enunciação dos critérios e pressupostos para a atribuição e aquisição da cidadania está constitucionalmente reservada ao legislador parlamentar (cfr. alínea f) do artigo 164.° da CRP), mesmo que este resolva consagrar um critério objetivo (partindo da condenação por crimes cuja moldura penal se fixou a partir de determinado limite), que resulte da sua própria ponderação (por via geral e abstraía), esse critério também não pode violar o disposto no n.° 4 do artigo 30.° da CRP. Pode suceder que o critério estabelecido, por mais objetivo que seja, se venha a mostrar sobre ou subinclusivo à luz do caso concreto, abrangendo situações que o legislador não terá considerado ou não abrangendo situações que este certamente terá considerado."

IV. Aliás, como já alguma jurisprudência defendeu, sustentando a atribuição da nacionalidade portuguesa em condições e fundamentos idênticos aos do presente caso, nomeadamente o STA, no Acórdão n.° 076/12 de 5 de fevereiro de 2013, consultável em

http://www.dgsi.pt/ista.nsfy3Sfbbbf22elbble68Q256f8e003ea931/347c740369c7cbfa80 257b200050242e?OpenDocument&ExpandSection:=:l

V. Conclui-se como na contestação, devendo-se julgar inconstitucional a norma que se extrai da alínea b) do artigo 9.° da Lei da Nacionalidade, segundo a qual constitui fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa a condenação, com trânsito em julgado da sentença, pela prática de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a 3 anos, segundo a lei portuguesa, quando foi aplicado o mecanismo da substituição da pena de prisão pela pena de muita nos termos do art.º 43.° do CP, por violação do artigo 30.°. n.º 4 da CRP e igual violação do direito a mudar de nacionalidade, previsto na 2.ª parte do n.º 2 do art.º 15.° da Declaração Universal dos Direitos do Homem, aplicável ex vi art.º 8.º da CRP: "Ninguém pode ser arbitrariamente privado da sua nacionalidade nem do direito de mudar de nacionalidade" direito originário do cidadão estrangeiro a requerer a Nacionalidade Portuguesa.

VI. E, consequentemente, conceder a Nacionalidade Portuguesa à Requerente por não se aplicar aquele normativo, até porque sofreu uma alteração, que foi operada pela Lei Orgânica n.° 2/2018, de 5 de julho - com entrada em vigor em 6 de julho de 2018.

VII. Anteriormente rezava assim a artigo 9.º, al. b) "Constituem fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa: a condenação, com trânsito em julgado da sentença, pela prática de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a 3 anos, segundo a lei portuguesa.

VIII. Porém, com a entrada em vigor da Lei Orgânica n.° 2/2018, aquele preceito da Lei da Nacionalidade passou a ter seguinte redação: "Constituem fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa por efeito da vontade: b) A condenação. com trânsito em julgado da sentença, com pena de prisão igual ou superior a 3 anos", sendo que desta forma o Legislador acaba por esclarecer aquilo que sempre quis dizer, pelo que, em face da alteração legislativa deve ser concedida a Nacionalidade à recorrente.

IX O que afasta assim, a condenação pela prática de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a 3 anos, no que ao diz respeito à aquisição da nacionalidade por efeito da vontade, sendo a solução recorrida também inconstitucional por inaplicável.

X. Não se aplicando aquela alteração ao processo da Recorrente, temos que concluir pela inconstitucionalidade da alínea b) do artigo 9.° da Lei da Nacionalidade.»

 

4. O Ministério Público contra-alegou, concluindo também no sentido do provimento do recurso.

 

II. Fundamentação

5. Constitui objeto do presente recurso de constitucionalidade a norma do artigo 9.º, alínea b), da Lei n.º 37/81, de 3 de outubro (Lei da Nacionalidade), na redação dada pela Lei Orgânica n.º 8/2015, de 22 de junho, «segundo a qual constitui fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa a condenação, com trânsito em julgado da sentença, pela prática de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a 3 anos, segundo a lei portuguesa, quando foi aplicado o mecanismo da substituição da pena de prisão pela pena de multa nos termos do art.º 43.° do Código Penal».

A ora recorrente, cidadã de nacionalidade angolana, prestou junto da Conservatória dos Registos Centrais a declaração referida no artigo 3.º, n.º 1, da Lei da Nacionalidade, com vista à aquisição da nacionalidade portuguesa, com fundamento no facto de estar casada há mais de três anos com nacional português.

O Ministério Público propôs a presente ação administrativa de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa, invocando a circunstância de a recorrente ter sido condenada pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, praticado em 8 de setembro de 2011, numa pena de cinco meses de prisão substituída por 150 dias de multa, tendo a sentença condenatória transitado em julgado em 24 de novembro de 2014. Dado que o crime em questão era punível com pena até quatro anos de prisão, nos termos do artigo 145.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, invocou o Ministério Público encontrar-se verificado o fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa, previsto no artigo 9.º, alínea b), da Lei da Nacionalidade, na redação aludida.

Por entender que o fundamento de oposição em causa era de aplicação vinculada e abstraía da pena concretamente aplicada ao condenado, o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa julgou a ação procedente., determinando o arquivamento do processo administrativo de aquisição da nacionalidade.

Esta decisão veio a ser confirmada no acórdão ora recorrido, proferido pelo Tribunal Central Administrativo Sul.

 

6. Com as alterações introduzidas pela Lei Orgânica n.º 8/2015, de 22 de junho, o artigo 9.º da Lei da Nacionalidade tinha a seguinte redação:

Artigo 9.º

Fundamentos


Constituem fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa:

a) A inexistência de ligação efetiva à comunidade nacional;

b) A condenação, com trânsito em julgado da sentença, pela prática de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a 3 anos, segundo a lei portuguesa;

c) O exercício de funções públicas sem caráter predominantemente técnico ou a prestação de serviço militar não obrigatório a Estado estrangeiro;

d) A existência de perigo ou ameaça para a segurança ou a defesa nacional, pelo seu envolvimento em atividades relacionadas com a prática do terrorismo, nos termos da respetiva lei.

 

7. O Tribunal Constitucional pronunciou-se em algumas ocasiões sobre a conformidade constitucional de normas que consagram impedimentos à aquisição da nacionalidade portuguesa de cidadãos estrangeiros que tenham sido definitivamente condenados pela prática de crimes puníveis segundo a lei portuguesa com pena de prisão igual ou superior de determinado limiar, abstraindo da pena concretamente aplicada.

Sobre a questão, cabe salientar o Acórdão n.º 497/2019, da 3.ª Secção (retificado pelo Acórdão n.º 589/2019), onde se decidiu «[J]ulgar inconstitucional a norma decorrente do artigo 6.º, n.º 1, alínea d), da Lei n.º 37/81, de 3 de outubro (Lei da Nacionalidade), na redação da Lei Orgânica n.º 9/2015, de 29 de julho, e do artigo 19.º, n.º 1, alínea d), do Decreto-Lei n.º 237-A/2006, de 14 de dezembro (Regulamento da Nacionalidade), nos termos da qual não pode ser concedida a nacionalidade portuguesa por naturalização a um indivíduo que tenha cometido crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a 3 anos, segundo a lei portuguesa, quando a pena concretamente aplicada foi suspensa na sua execução ao abrigo do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, e foi decidida a não transcrição da decisão condenatória ao abrigo do artigo 17.º, n.º 1, da Lei n.º 57/98, na redação dada pela Lei n.º 144/2009, de 22 de setembro, por violação dos artigos 18.º, n.º 2, e 26.º, n.º 1, e 30.º, n.º 4, da Constituição».

Na parte pertinente para os presentes autos, pode ler-se no citado aresto:

«6. Constitui, pois, objeto do presente recurso a norma, extraída do artigo 6.º, n.º 1, alínea d), da Lei da Nacionalidade (Lei n.º 37/81, de 3 de outubro), na redação que lhe foi conferida pela Lei Orgânica n.º 9/2015, de 29 de julho, vigente à data da decisão recorrida, nos termos da qual a concessão da nacionalidade portuguesa por naturalização depende, entre outros, do pressuposto de que o interessado não tenha sido condenado, com trânsito em julgado da sentença, pela prática de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a 3 anos, segundo a lei portuguesa.

Nesta versão, a Lei da Nacionalidade continuou a condicionar a obtenção de nacionalidade por naturalização ao pressuposto (objetivo) de que o requerente não tenha cometido crime de determinada gravidade, mantendo-se assim fiel ao paradigma introduzido pela Lei Orgânica n.º 2/2006, que expurgara do regime da naturalização o requisito da “idoneidade cívica”, de natureza acentuadamente subjetiva – vdRUI MOURA RAMOS, “A Renovação do Direito Português da Nacionalidade pela Lei Orgânica n.º 2/2006”, de 17 de abril, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 136, n.º 3943 (2007), p. 207 ss.

Conforme se afirmou no Acórdão n.º 106/2016 em relação ao fundamento homólogo de oposição à aquisição da nacionalidade, constante do artigo 9.º da Lei da Nacionalidade, através deste requisito o legislador procurou, em certa medida, «obstar a que aqueles que, por via da prática daqueles crimes, judicialmente aferida, ofenderam os bens jurídicos a que a comunidade nacional entendeu conferir uma tutela jurídico-penal traduzida numa moldura penal de máximo igual ou superior a três anos, integrem a comunidade cujos bens (assim) tutelados não respeitaram». Entendeu então este Tribunal que «a condição de não ocorrência de condenação (…) corresponde, ainda, à densificação do vínculo de ligação efetiva entre a pessoa e o Estado (português) que baseia a cidadania».

Embora o legislador tenha reduzido significativamente a discricionariedade administrativa na aferição da idoneidade dos requerentes, a aplicação deste requisito legal não deixou de suscitar dificuldades assinaláveis aos tribunais administrativos – vdCONSTANÇA URBANO DE SOUSA, “A naturalização do estrangeiro residente: concretização do direito fundamental à cidadania portuguesa – Ac. do STA de 5.2.2013, P. 76/12”, Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 107 (2014), p. 23 s. O problema da aplicação literal e imediata deste requisito colocou-se sobretudo em casos em que a pena concretamente aplicada sugeria que o crime apresentava uma gravidade reduzida, não permitindo por isso que se «retira[sse] da condenação criminal em causa a infirmação dessa mesma ideia de efetividade do vínculo de ligação» (Acórdão n.º 106/2016).

7. Também na jurisprudência do Tribunal Constitucional se encontra testemunho dos problemas colocados pelo requisito relativo à ausência de condenação por crime punível com pena de prisão igual ou superior a três anos, quando interpretado literalmente – ou seja, com o sentido de uma tal decisão judicial condenatória obstar, em todo e qualquer caso, à concessão da nacionalidade. Enquanto fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa por efeito da vontade, o requisito mereceu a censura deste Tribunal por se mostrar incompatível com a realização de outras exigências e princípios que a Lei Fundamental igualmente tutela, em dois juízos formulados em termos e com fundamentos distintos.

No Acórdão n.º 106/2016, considerou-se que este fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade não ofendia a proibição de efeitos automáticos e necessários das penas, consagrada no artigo 30.º, n.º 4, da Constituição. Todavia, verificou-se que uma tal exigência era inconciliável com «a ponderação feita pelo mesmo legislador em sede de cessação da vigência no registo criminal das decisões nele inscritas, assim correspondendo a uma reabilitação legal». Ante esta aparente contradiçãoconcluiu o Tribunal que «não se afiguraria constitucionalmente admissível uma interpretação das normas da alínea b) do artigo 9.º da Lei da Nacionalidade portuguesa e da alínea b) do n.º 2 do artigo 56.º do Regulamento da Nacionalidade portuguesa, nas versões aplicadas nos autos, que desconsiderasse a ponderação do legislador efetuada em sede de cessação da vigência da condenação penal inscrita no registo criminal e seu cancelamento e a correspondente reabilitação legal, sob pena de contradição intrassistémica, justifica-se proferir uma decisão interpretativa, ao abrigo do disposto no artigo 80.º, n.º 3, da LTC, devendo o Tribunal recorrido adotar a interpretação que se julgou conforme à Constituição e, assim, reformular a fundamentação da solução encontrada para o caso concreto ali em julgamento

Já no Acórdão n.º 331/2016, a mesma norma foi julgada inconstitucional, por violação do artigo 30.º, n.º 4, da Constituição, por não permitir qualquer ponderação das «circunstâncias do caso concreto em que o próprio legislador desvalorizou os ilícitos penais em causa, como acontece (…) com aqueles em que se permite a dispensa de pena».

8. A Lei Orgânica n.º 2/2018, de 5 de julho, entretanto publicada, veio alterar o conteúdo do requisito de aquisição de nacionalidade portuguesa por naturalização previsto na alínea d) do n.º 1 do artigo 6.º da Lei da Nacionalidade (nos termos já acima referidos), tendo igualmente alterado o conteúdo do paralelo fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade por efeito da vontade, previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 9.º do mesmo diploma.

À semelhança do que tem vindo a verificar-se em outros aspetos do ordenamento jurídico português, o legislador deixou de utilizar como critério a moldura penal abstrata (no caso, o seu limite máximo), tendo passado a utilizar, para os mesmos efeitos, a pena concretamente aplicada. Como se lê no Projeto de Lei n.º 544/XIII (em www.parlamento.pt), optou-se, em matéria de naturalização, «pela avaliação da medida concreta da pena a que o requerente possa ter sido condenado, ao invés de atender à moldura penal máxima do tipo de ilícito, que não permite ponderar devidamente a culpa e a gravidade do ilícito e retirar consequências ponderadas em sede de atribuição da nacionalidade» (p. 3).

9. Em matéria de acesso à nacionalidade portuguesa, a jurisprudência deste Tribunal tem vindo a reafirmar algumas premissas fundamentais originariamente desenvolvidas no Acórdão n.º 599/2005:

Em primeiro lugar, a de que o direito à cidadania portuguesa tem a natureza de direito fundamental, o que «postula a sua subordinação a alguns corolários garantísticos que constitucionalmente enformam os direitos fundamentais, nomeadamente, aos princípios da sua universalidade e da igualdade, a vocação para a sua aplicabilidade direta, a vinculação de todas as autoridades públicas e privadas e a sujeição das restrições legais ao regime exigente constante dos nºs 2 e 3 do artigo 18º da CRP».

Em segundo lugar, a de que não só deve ser reconhecido o direito fundamental a não ser privado da cidadania portuguesa, como deve também reconhecer-se o direito de aceder à cidadania portuguesa a qualquer pessoa que tenha a expectativa jurídica de a adquirir, «observados que sejam determinados pressupostos que o legislador interno entende como expressando aquele vínculo de integração efetiva na comunidade nacional».

Em terceiro lugar, a de que o legislador não goza de liberdade ilimitada na determinação desses pressupostos, porquanto dos artigos 4.º e 26.º, n.os 1 e 4, da Constituição – assim como de outros preceitos constitucionais e de direito internacional (sobretudo do artigo 15.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos e da Convenção Europeia sobre a Nacionalidade, aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 19/2000, de 06 de março, ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 7/2000 e publicada no Diário da República, 1.ª Série-A, n.º 55) –, resulta delimitado um «conteúdo mínimo que o legislador ordinário não poderá postergar na definição do regime de acesso ao direito em causa».

Em quarto e último lugar, a de que, consequentemente, as condições legalmente fixadas para o acesso à cidadania, «[p]or mor da força vinculativa da natureza de direito fundamental de que comunga o direito em causa», não poderão deixar de «passar o crivo da adequação, necessidade e proporcionalidade, tendo em vista precisamente a preservação do núcleo essencial de tal direito que, por natureza, há de corresponder à evidenciação de um específico vínculo de integração na comunidade portuguesa». 

10. Entre os princípios de direito internacional que ao legislador se impõe respeitar neste âmbito, «avulta (para além do direito de aceder a uma nacionalidade e a dela não ser privado) o princípio da ligação efetiva entre o indivíduo e a comunidade politicamente organizada em que se integra» (Acórdão n.º 106/2016). Como é sabido, a concretização do que deve considerar-se a «nacionalidade real e efetiva» para efeitos de naturalização (em especial de cidadãos que já são nacionais de outro Estado) apela a diferentes indícios de efetiva ligação vivencial ao Estado que confere a nacionalidade, de entre os quais sobressai a residência habitual e permanente (vdv.g. o artigo 6.º, n.º 3, da já referida Convenção Europeia sobre a Nacionalidade). Por outro lado, uma tal concretização é também determinada pela «inevitável comunicação entre direito da nacionalidade e valores constitucionais» (Acórdão n.º 605/2013) e pelo direito internacional (cf. os artigos 4.º e 16.º, n.º 2, da Constituição)

A essa luz, revela-se especialmente digna de tutela a expectativa de um residente que preencha requisitos que, à luz do direito internacional, o Estado português se encontre adstrito a valorizar (como os elencados no artigo 6.º da Convenção Europeia sobre a Nacionalidade), ou que aspire a beneficiar da proteção conferida pela Constituição da República Portuguesa a outros fatores (que não se esgotam na proteção da família e da infância conferida pelos artigos 36.º, 64.º, n.º 2, alínea b), e 67.º – atente-se, v.g., na especial consideração dedicada pelo artigo 15.º, n.º 3, aos cidadãos dos Estados de língua portuguesa). De modo simétrico, será especialmente imerecida a proteção das expectativas de um residente cuja conduta, por evidenciar uma manifesta desconsideração pelos princípios e valores constitucionais por que se rege o Estado a que requer nacionalidade, indicia a ausência de uma efetiva ligação a essa mesma comunidade. 

11. Ora, se o reconhecimento de um núcleo essencial do direito à cidadania não pode ser dissociado da «evidenciação de um específico vínculo de integração na comunidade portuguesa», também não se vê como possa prescindir de uma adequada ponderação dos fatores que objetivamente confirmam ou infirmam esse vínculo. Deste modo, qualquer requisito legal, quando interpretado no sentido de não permitir a avaliação de circunstâncias concretas que a própria comunidade se vinculou a valorar ou a não valorar (seja através do legislador nacional, seja através dos compromissos internacionais assumidos), dificilmente poderá passar o crivo do princípio da proporcionalidade. 

O caso dos autos é disso mesmo exemplar, visto estarmos perante um indivíduo: (i) que é cidadão de um país de língua portuguesa (cf. o artigo 15.º, n.º 3, da Constituição); (ii) que reside em Portugal desde que é menor, tendo aqui completado pelo menos um ciclo de escolaridade (cf. o artigo 6.º, n.º 4, alínea f), da Convenção Europeia sobre a Nacionalidade); (iii) que foi condenado numa pena de prisão de 1 (um) ano, suspensa na sua execução por igual período (ao abrigo do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal); e (iv) cuja condenação o juiz determinou que nem fosse transcrita para os certificados de registo criminal requeridos para efeitos de emprego, exercício de atividade ou outros fins (nos termos previstos, àquela data, no artigo 17.º da Lei n.º 57/98, de 18 de agosto, na redação da Lei n.º 114/2009, de 22 de setembro, hoje no artigo 13.º da Lei n.º 37/2015, de 5 de maio).

Importará sublinhar que, nos termos do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, a suspensão da execução de uma pena de prisão apenas é possível: (i) se a pena concretamente aplicada não for superior a 5 (cinco) anos, medida de pena que traça a fronteira do conceito de pequena-média criminalidade relevante para inúmeros efeitos jurídicos, tanto processuais como substantivos (cf. MARIA JOÃO ANTUNESPenas e Medidas de Segurança, Almedina, 2017, p. 22); e (ii) se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, o tribunal puder concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Mais exigentes ainda são as condições em que o legislador permitiu a não transcrição de decisões condenatórias. Nos termos do artigo 17.º, n.º 1, da Lei n.º 57/98 (semelhante ao vigente artigo 13.º da Lei n.º 37/2015), a não transcrição é possível somente quando: (i) a medida da pena concretamente aplicada não for superior a 1 (um) ano (medida que se integra ainda no conceito de pequena criminalidade: cf. ibidem); e (ii) das circunstâncias que acompanharam o crime não se puder induzir perigo de prática de novos crimes.

12. Na medida em que inviabiliza a ponderação dos fatores que objetivamente evidenciam um específico vínculo de integração na comunidade portuguesa, a imposição de uma condição que se baseia única e exclusivamente na pena abstratamente aplicável às condutas criminosas tidas como demonstrativas da inexistência dessa efetiva ligação, embora possa considerar-se adequada à prossecução dos fins que visa atingir, não resiste ao teste da necessidade, devendo reconhecer-se que os mesmos fins poderiam ser atingidos por medidas menos onerosas para o requerente de acesso à cidadania, que garantissem a preservação do núcleo essencial do direito fundamental de que, nos termos acima expostos, é titular.

Por quanto se expôs, impõe-se concluir que a norma nos termos da qual a condenação em pena de 1 (um) ano de prisão suspensa na sua execução e não transcrita obsta inelutavelmente à aquisição da nacionalidade portuguesa por parte de um cidadão que, em face de diversos fatores constitucional e jus-internacionalmente relevantes, possui um vínculo efetivo com a comunidade portuguesa, é inconstitucional, na medida em que constitui uma restrição desproporcional do direito fundamental de acesso à cidadania portuguesa. 

13. Quando da aplicação do requisito negativo em apreço resultar ope legis a impossibilidade de ver deferida uma pretensão (de aquisição da cidadania portuguesa) que, nos termos expostos, convoca a aplicação dos artigos 18.º, n.os 2 e 3 da Constituição, não poderá também deixar de entender-se que a norma de que decorre esse requisito ofende também o artigo 30.º, n.º 4, da Lei Fundamental, em termos semelhantes aos que se acolheram no Acórdão n.º 331/2016 (embora se estivesse aí perante uma dispensa de pena e não perante uma suspensão da execução de pena): 

«Conforme resulta da jurisprudência constitucional (ver, por exemplo, Acórdãos n.ºs 327/99, de 26 de maio, 176/00, de 22 de março, e n.º 154/04, de 14 de março [...]), os efeitos da pena estão submetidos não apenas aos princípios-garantia das penas e medidas de segurança, como também ao princípio da proporcionalidade, «no sentido de que qualquer “efeito (acessório) da pena” pressupõe, por um lado, uma certa gravidade do facto praticado e, por outro, uma fundada conexão entre o efeito (o direito que deve ser declarado perdido) que se quer determinar e o facto criminoso praticado. Nestes termos, seria inconstitucional uma lei que, p. ex., privasse do direito de voto quem fosse condenado por um qualquer crime» (cfr. DAMIÃO DA CUNHA, “Anotação ao artigo 30.º”, in JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROSConstituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2ª ed., Coimbra: Wolters Kluwer/Coimbra Editora, 2010, p. 686).

 O disposto no n.º 4 do artigo 30.º da CRP implica, portanto, uma proibição de o legislador consagrar critérios legais nos termos dos quais decorra, de uma forma automática, a perda de direitos civis, profissionais ou políticos, em virtude de uma pena aplicada.

Mais concretamente, naquilo que importa para o presente caso, se não resultam dúvidas de que é a própria Constituição que comete ao legislador a tarefa de concretizar o direito a aceder à cidadania portuguesa, o que foi feito desde logo pela Lei da Nacionalidade, e que cabe ao legislador, nessa tarefa, a ponderação das conexões relevantes com o Estado português e os critérios que lhes presidem, o legislador está igualmente impedido de criar critérios legais de acesso ao vínculo jurídico da cidadania portuguesa que impliquem, em virtude de uma pena aplicada, a perda automática de direitos civis, profissionais ou políticos.

(…)

Ora, em face da proibição constitucional de perda automática de direitos civis em virtude da aplicação de uma pena, o julgador, na apreciação do preenchimento do critério de acordo com o qual constitui fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa a condenação, com trânsito em julgado da sentença, pela prática de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a três anos, não pode estar impedido, em toda e qualquer situação, de valorar as demais circunstâncias associadas à condenação pela prática de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a três anos, designadamente a efetiva execução da pena aplicada, o tempo que mediou entre a prática do crime e a decisão proferida, a eventual reincidência ou a perseverança na prática criminosa, a ocorrência da extinção da pena, a dispensa de pena.

Nestes termos, se é indiscutível que a tarefa de enunciação dos critérios e pressupostos para a atribuição e aquisição da cidadania está constitucionalmente reservada ao legislador parlamentar (cfr. alínea f) do artigo 164.º da CRP), mesmo que este resolva consagrar um critério objetivo (partindo da condenação por crimes cuja moldura penal se fixou a partir de determinado limite), que resulte da sua própria ponderação (por via geral e abstrata), esse critério também não pode violar o disposto no n.º 4 do artigo 30.º da CRP. Pode suceder que o critério estabelecido, por mais objetivo que seja, se venha a mostrar sobre ou subinclusivo à luz do caso concreto, abrangendo situações que o legislador não terá considerado ou não abrangendo situações que este certamente terá considerado.»

Por conseguinte, também à luz do n.º 4 do artigo 30.º da Constituição é de julgar inconstitucional a norma que constitui objeto do presente recurso, na medida em que não permite ponderar «as circunstâncias do caso concreto em que o próprio legislador desvalorizou os ilícitos penais em causa», tais como as circunstâncias que permitem determinar a suspensão da execução da pena de prisão (previstas no artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal) e a não transcrição da condenação para os certificados de registo criminal requeridos para fins de emprego, de exercício de profissão ou atividade ou outros fins (ao abrigo do artigo 17.º da Lei n.º 57/98, na redação dada pela Lei n.º 144/2009, de 22 de setembro, vigente à data relevante para os efeitos dos presentes autos).»

 

É certo que a norma objeto do juízo de inconstitucionalidade constante do Acórdão n.º 497/2019 é diversa daquela aqui em apreciação, na medida em que foi extraída, no essencial, do artigo 6.º, n.º 1, alínea d), da Lei da Nacionalidade, na redação dada pela Lei Orgânica n.º 9/2015, de 29 de julho, onde se elencam os fundamentos cumulativos de que depende a concessão da nacionalidade portuguesa por naturalização a cidadãos estrangeiros.

Contudo, a norma em apreciação nos presentes autos, constituindo um fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade por efeito da vontade, tal como elencados no artigo 9.º da mesma Lei n.º 37/81, de 3 de outubro, na redação dada pela Lei Orgânica n.º 8/2015, de 22 de junho, tem conteúdo análogo ao do artigo 6.º, n.º 1, alínea d), desempenhando idêntica função no âmbito da modalidade de aquisição da nacionalidade portuguesa em causa.

Tal significa que as razões alinhadas no Acórdão n.º 497/2019 para fundamentar o juízo de desconformidade constitucional incidente sobre a norma do artigo 6.º, n.º 1, alínea d), são inteiramente transponíveis e aplicáveis à norma que é objeto do presente recurso. Assim, reiterando a fundamentação aduzida no Acórdão n.º 497/2019, retificado pelo Acórdão n.º 589/2019, importa julgar inconstitucional a norma objeto do presente recurso.

 

8. Obtendo a recorrente vencimento na causa, não há lugar ao pagamento de custas, nos termos do artigo 84.º, n.os 1 e 2, da LTC.

 

III. Decisão

Em face do exposto, decide-se:

a)       Julgar inconstitucional 9.º, alínea b), da Lei n.º 37/81, de 3 de outubro, na redação dada pela Lei Orgânica n.º 8/2015, de 22 de junho, segundo a qual constitui fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa a condenação, com trânsito em julgado da sentença, pela prática de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a 3 anos, segundo a lei portuguesa, quando foi aplicado o mecanismo da substituição da pena de prisão pela pena de multa nos termos do artigo 43.º do Código Penal, por violação dos artigos 18.º, n.º 2, 26.º, n.º 1, e 30.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa;

b)       Em consequência, cconceder provimento ao recurso, determinando a reforma da decisão recorrida em conformidade com o presente juízo de inconstitucionalidade.

 

Sem custas.

 

 

 

Lisboa, 13 de julho de 2021 - Gonçalo Almeida Ribeiro - Joana Fernandes Costa - Maria José Rangel de Mesquita (Vencida nos termos da declaração que se junta). - João Pedro Caupers

 

 

Atesto o voto de conformidade do Conselheiro Lino Ribeiro, que não assina porque participa na sessão por videoconferência. Gonçalo Almeida Ribeiro

 

 

DECLARAÇÃO DE VOTO

 

            Vencida quanto à decisão e fundamentação, nos termos da declaração de voto apresentada no Acórdão n.º 497/2019 (Processo n.º 321/2017).

Maria José Rangel de Mesquita

 




 


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