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TC > Jurisprudência > Acordãos > Acórdão 587/2019

ACÓRDÃO Nº 587/2019

Processo n.º 23/2019

3ª Secção

Relator: Conselheira Joana Fernandes Costa

 

 

 

Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional

 

 

I. Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, em que é recorrente o A. e recorrido o Ministério Público, foi interposto recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (doravante, “LTC”), do acórdão proferido por aquele Tribunal em 11 de dezembro de 2018, que confirmou na íntegra a sentença proferida pelo Juízo Local de Pequena Criminalidade de Sintra – Juiz 1, da Comarca de Lisboa Oeste, através da qual se decidiu: i) condenar o arguido, ora recorrente, na pena de cinco meses de prisão, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal; (ii) suspender a execução da aludida pena, ao abrigo do disposto no artigo 50.º do Código Penal, pelo período de dois anos, com obrigação de pagamento, no prazo de um ano, da quantia de € 10.000,00 ao Centro de Reabilitação de Alcoitão; e (iii) condenar o recorrente na pena acessória de proibição de conduzir veículo a motor pelo período de oito meses.

2. O requerimento de interposição do recurso tem o seguinte teor:

«I. Normas aplicadas cuja inconstitucionalidade se pretende que o Tribunal Constitucional aprecie

a) O Recorrente pretende ver apreciada a inconstitucionalidade da norma prevista no n.º 5 do artigo 50.º do Código Penal [CP], na dimensão interpretativa normativa segundo a qual é admissível que a suspensão na execução da pena aplicada em concreto possa ser fixada em dobro do tempo máximo da pena abstrata prevista na moldura penal do tipo legal de crime.

b) O Recorrente pretende ver apreciada a inconstitucionalidade da norma prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 51.º em conjugação com o n.º 2 do artigo 50.º, todos do CP, na dimensão interpretativa normativa segundo a qual é admissível ao tribunal subordinar o arguido a um dever de pagamento de uma quantia monetária muito elevada, suscetível de colocar em causa a sua vivência digna em comunidade.

II. Das normas ou princípios constitucionais que se consideram violados

a) O Recorrente considera que a interpretação normativa da norma prevista no n.º 5 do artigo 50.º do Código Penal [CP], segundo a qual é admissível e lícita que a suspensão na execução da pena aplicada em concreto possa ser fixada em dobro do tempo máximo da pena abstrata prevista na moldura penal do tipo legal de crime é materialmente inconstitucional por violação do princípio da proibição do excesso, na dimensão material da necessidade e da exigibilidade da ameaça penal, e do princípio odiosa sunt restringenda, consagrados no artigo 18.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa [CRP].

b) O Recorrente considera que a interpretação normativa da norma prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 51.º em conjugação com o n.º 2 do artigo 50.º, todos do CP, na dimensão interpretativa normativa segundo a qual é admissível ao tribunal subordinar o arguido a um dever de pagamento de uma quantia monetária muito elevada, suscetível de colocar em causa a sua vivência digna em comunidade, é materialmente inconstitucional por violação do princípio da proibição do excesso, e do princípio odiosa sunt restringenda, consagrado no artigo 18.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa [CRP].»

 

3. Determinado o prosseguimento dos autos, foram as partes notificadas nos termos e para os efeitos previstos no artigo 79.º da LTC, com a advertência de que o objeto do recurso poderia não vir a ser conhecido no segmento integrado pela questão enunciada na alínea b) do respetivo requerimento de interposição pelo facto de tal questão não revestir caráter normativo.

4. O recorrente apresentou então as seguintes alegações:

«I - Do objeto do presente recurso:

Por meio de Requerimento de Interposição de Recurso dirigido ao Tribunal Constitucional, veio o recorrente suscitar a apreciação da inconstitucionalidade das seguintes normas jurídicas, na dimensão interpretativa que ora se cita:

a. Artigo 50.º n.º 5 do Código Penal [CP], na dimensão interpretativa normativa segundo a qual é admissível que a suspensão na execução da pena aplicada em concreto possa ser fixada em dobro do tempo máximo da pena abstrata prevista na moldura penal do tipo legal de crime.

b. Artigo 51.º alínea c) do n.º 1, em conjugação com o artigo 50.º n.º 2, todos do CP, na dimensão interpretativa normativa segundo a qual é admissível ao tribunal subordinar o arguido a um dever de pagamento de uma quantia monetária muito elevada, suscetível de colocar em causa a sua vivência digna em comunidade.

Ora, entende o recorrente, conforme melhor se apurará das alegações de recurso infra, que a interpretação dada às disposições legais supra mencionadas, sufragada pelo Tribunal da Comarca de Lisboa Oeste - Sintra, na sentença proferida em 08 de março de 2018, e confirmada pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no acórdão datado de 12 de dezembro de 2018, enferma de inconstitucionalidade por violação do princípio da proibição do excesso e do princípio odiosa sunt restringenda, consagrados no artigo 18.º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa [CRP].

II- Das Alegações propriamente ditas;

II.1 - Da inconstitucionalidade da norma prevista no n. º 5 do artigo 50. o do Código Penal [CP], na dimensão interpretativa normativa segundo a qual é admissível que a suspensão na execução da pena aplicada em concreto possa ser fixada em dobra do tempo máximo da pena abstrata prevista na moldura penal do tipo legal de crime.

Por meio de sentença datada de 08 de março de 2018, veio o Tribunal a quo, condenar o aqui recorrente na pena de 5 (cinco) meses de prisão, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p.e.p pelo art.º 292.º n.º 1 do Código Penal, suspendendo a execução da mesma pena nos termos e ao abrigo do artigo 50.º n.º 5 do Código Penal, pelo período de 2 (dois) anos.

A fundamentação da medida de condenação efetuada pelo Tribunal a quo encontrou fundamento na dimensão interpretativa normativa segundo a qual é admissível que a suspensão na execução da pena aplicada, em concreto, possa ser fixada em dobro do tempo máximo da pena abstrata prevista na moldura penal do tipo legal de crime.

Conforme se irá demonstrar de forma cristalina nas presentes Alegações de Recurso, tal interpretação é inconstitucional, por violação do artigo 18.º n.º 2 da CRP.

a. Da natureza da suspensão da execução da pena;

Atendendo à classificação das penas, a suspensão da execução da pena de prisão é uma pena de substituição em sentido próprio, isto é, trata-se de uma pena não privativa da liberdade, que pressupõe a prévia determinação da pena de prisão com vista a ser aplicada em vez desta última.

Desta feita, temos que, para que estejamos perante uma pena de substituição em sentido próprio, é necessário o preenchimento de um duplo requisito: que tenha, por um lado, um carácter não institucional, isto é, seja cumprida em liberdade; e que pressuponha, por seu turno, a prévia determinação da pena de prisão, para ser aplicada, em vez desta.

Por todo o exposto, haverá que concluir pela manifesta dependência funcional e material entre a pena principal e a respetiva execução da suspensão da pena.

Neste mesmo sentido, poder-se-á afirmar que a suspensão da pena é tida como uma forma de individualização da pena principal, já que surge no último momento do procedimento penal: o da escolha da pena principal.

Deste modo, a suspensão da execução da pena de prisão é ela mesma uma restrição aos direitos, liberdades e garantias do condenado, estes últimos com consagração constitucional.

Deste modo, dever-se-á aplicar à concretização da suspensão da execução de pena, os mesmos critérios e princípios aplicáveis à concretização da pena principal, entre os quais se contam os critérios de prevenção geral e especial que presidem à escolha e dosimetria ou determinação da medida da pena, bem como, designadamente, o princípio da proibição do excesso e o princípio odiosa sunt restringenda, ambos consagrados no artigo 18.º n.º 2 da CRP.

b. Do princípio da proibição do excesso e do princípio odiosa sunt restringenda;

O princípio da proibição do excesso ou princípio da proporcionalidade e o princípio odioso sunt restringenda encontram-se previstos, ambos, no artigo 18.º n.º 2 da CRP.

Segundo a doutrina maioritária a previsão legal vinda de referir, comporta, em si mesma, três vetores: necessidade, adequação e racionalidade.

adequação supõe a existência de um bem juridicamente protegido e de uma circunstância que imponha intervenção ou decisão; equivale a exigibilidade dessa intervenção. A adequação significa que a proveniência se mostra adequada ao objetivo almejado, se destina ao fim contemplado pela norma, e não a outro; significa, pois, correspondência de meios e fins. A racionalidade ou proporcionalidade stricto sensu implica justa medida; que o órgão competente proceda a uma correta avaliação da providência em termos quantitativos (e não qualitativos); que a providência não fique aquém ou além do que importa para se obter o resultado devido - nem mais, nem menos."

" A falta de necessidade ou de adequação traduz-se em arbítrio. A falta de racionalidade, mais frequentemente, em excesso."

c. Do princípio da proibição do excesso e do princípio odiosa sunt restringenda na concretização do limite da suspensão da execução da pena;

Conforme referido anteriormente, a suspensão da execução da pena insere-se num conjunto de medidas não institucionais que, não determinando a perda da liberdade física, importam sempre uma intromissão mais ou menos profunda na condução da vida dos condenados.

Concretizando, a suspensão da execução da pena impõe, no período em que vigorar a mesma, que o condenado não infrinja os deveres ou regras de conduta impostas e/ou cometa crime pelo qual venha a ser condenado, sob pena de ser obrigado a cumprira pena de prisão fixada em sede de sentença, conforme estatui o artigo 56.º n.º 2 do Código Penal.

Atenta a intromissão na conduta dos condenados - i.e no seu livre arbítrio e determinação - imposta pela suspensão da execução da pena de prisão, aliada ao facto da suspensão da execução da pena se encontrar material e funcionalmente ligada à pena principal, temos que, à interpretação e consequente execução do seu regime material, contido no artigo 50.º n.º 5 do CP, se mostra imperioso o respeito e cumprimento pelos princípios contidos no artigo 18.º n.º 2 da CRP.

Ou seja, a duração da suspensão da execução da pena de prisão deve ser adequada e proporcional à necessidade e exigibilidade da ameaça penal do caso concreto, que a aplicação da pena principal visa acautelar.

d. Da concreta interpretação efetuada ao artigo 50.º n.º 5 do CP.

O Tribunal a quo, confirmado pelo Tribunal da Relação, condenou o aqui recorrente numa pena de prisão de 5 (cinco) meses, suspensa na sua execução por um período de 2 (dois) anos, em apelo à interpretação segundo a qual a suspensão da execução da pena aplicada, em concreto, pode ser fixada no dobro do tempo máximo da pena abstrata prevista na moldura penal do tipo legal de crime, p.p. no artigo 292.º do CP, que prescreve como limite máximo da pena de prisão o período de 1 (um) ano.

A interpretação vinda de referir encontrou fundamento na alteração ao artigo 50.º n.º 5, operada pela Lei n.º 94/2017, de 23 de agosto, que passou a admitir que a suspensão da execução da pena possa ser fixada entre 1 (um) ano a 5 (cinco) anos.

Ora, tal interpretação, atendendo à manifesta ligação material e funcional entre a suspensão da execução da pena e a pena principal, bem como à própria natureza da execução da suspensão da pena, enferma de inconstitucionalidade por violação do artigo 18.º n.º 2 da CRP, que expressamente estatui que na restrição de qualquer direito, liberdade e garantia sejam observados os princípios da necessidade, adequação e racionalidade na aplicação da concreta medida restritiva, aqui concretizada como suspensão da execução da pena (de prisão).

De facto, tendo em conta que o tempo máximo da pena abstrata, previsto no crime de condução em estado de embriaguez, p.p no artigo 292.º do CP, é de 1 (um) ano, resulta claro que a interpretação do artigo 50.º n.º 5 que sufraga que a suspensão da execução dessa mesma pena possa ser fixada no dobro do tempo máximo da pena abstrata - i.e em 2 (dois) anos - viola os princípios da proporcionalidade e proibição do excesso, sendo desproporcional à concreta ameaça penal, tutelada pelo crime de condução de veículo, em estado de embriaguez.

De facto, manifesto se torna que, entendeu o legislador que a ameaça penal refletida no crime vindo de referir fica acautelada - em apelo a um juízo de prevenção geral e especial - mediante a aplicação de uma pena máxima de prisão fixada no período de 1 (um) ano.

Sendo, como tal, manifestamente desproporcional que se suspenda a execução dessa mesma pena pelo dobro do seu tempo máximo legalmente admitido em abstrato, não se almejando das exigências de prevenção geral e especial que possam sustentar tal interpretação, uma vez que se encontram em contradição com as mesmas exigências que presidiram à fixação de uma pena máxima no crime cuja execução da pena se visa suspender.

Devendo, como tal, a interpretação do artigo 50.º n.º 5, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 94/2017, ser efetuada fazendo apelo a uma interpretação sistemática e não literal, no cumprimento do artigo 18.º n.º 2 da CRP.

Mais se diga que, a desproporcionalidade derivada da interpretação sufragada é manifestamente gritante tendo em conta que a restrição, no período da execução da suspensão da pena, do livre arbítrio e determinação do condenado, é manifestamente superior, não só ao tempo da concreta pena principal aplicada, como igualmente, à moldura máxima da pena em abstrato.

O que, no limite, transforma a suspensão da execução da pena em medida mais gravosa - à revelia da intenção legislativa - do que a própria pena de prisão cuja execução se visa suspender, como igualmente, no limite, desvirtua de efeito útil à sua execução.

II.II Da inconstitucionalidade da norma prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 51.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo 50.º, todos do CP, na dimensão interpretativa normativa segundo a qual é admissível ao tribunal subordinar o arguido a um dever de pagamento de uma quantia monetária muito elevada, suscetível de colocar em causa a sua vivência digna em comunidade.

Por meio da em crise e já referida sentença datada de 08 de março de 2018, confirmada pelo acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 12 de dezembro de 2018, a suspensão da execução da pena de prisão foi sujeita à imposição, ao condenado, do dever de pagar a quantia de 10.000,00€ (dez mil euros) ao Centro de Reabilitação de Alcoitão.

A fundamentação da imposição do referido dever, ao condenado, encontrou fundamento na dimensão interpretativa normativa segundo a qual é admissível ao tribunal subordinar o arguido a um dever de pagamento de uma quantia monetária muito elevada, suscetível de colocar em causa a sua vivência digna em comunidade.

Conforme se irá demonstrar tal interpretação é manifestamente inconstitucional, por violação do artigo 18.º n.º 2 da CRP.

a. Da ratio legis subjacente à subordinação da suspensão da execução da pena a concretos deveres de conduta;

A subordinação da suspensão da execução da pena de prisão à imposição de concretos deveres pelo Tribunal, nos termos do artigo 51.º n.º 1 do CP, tem de respeitar o principio da proporcionalidade e não proibição do excesso e princípio odiosa sunt restringenda, contidos no artigo 18.º n.º 2 do CP.

Ou seja, imperioso se torna, por um lado, que o condenado se encontre em condições de cumprir os referidos deveres e, por outro, que os mesmos deveres sejam revestidos de necessidade, adequação e racionalidade.

b. Dos limites constitucionais à imposição de deveres à suspensão da execução da pena;

Ora, a interpretação da norma prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 51.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo 50.º, todos do CP, na interpretação normativa que prescreve a obrigação imposta ao condenado de pagar, no período de 1 (um) ano, ao Centro de Reabilitação de Alcoitão, a quantia de 10.000,00 (dez mil euros), enquanto dever da execução da suspensão da pena, colocando em risco a vivência digna em comunidade do condenado, é inconstitucional por violação do princípio da proibição do excesso, previsto no artigo 18.º n.º 2 do CRP.

Deste modo, a interpretação anterior redunda numa excessiva e desproporcional restrição ao exercício de direitos fundamentais pessoais e sociais, consequência da subordinação da suspensão da execução da pena à imposição de deveres, por referência à concreta ameaça penal que se pretende acautelar, ameaça essa que não pode ser limitada ou combatida colocando em risco a vivência digna em comunidade do condenado.

Do exposto resulta que a imposição de deveres ao condenado, nos termos e ao abrigo do artigo 51.º n.º 1 do CP, não pode violar os direitos fundamentais do condenado, o que aconteceria caso o cumprimento do dever colocasse em causa o mínimo necessário para a subsistência deste último, entendido este mínimo de subsistência como, não apenas o direito a alimentação, vestuário e calçado, como igualmente o próprio direito à habitação e saúde.

Mais se diga que, a interpretação sufragada, vinda de referir, redunda na maior gravidade do dever imposto pela suspensão da execução da pena do que pela execução da própria pena principal, o que claramente contraria a ratio Legis subjacente a este último instituto e enferma de inconstitucionalidade, por violação do artigo 18.º n.º 2 da CRP.

III - Conclusões:

1. A interpretação do n.º 5 do artigo 50.º do Código Penal [CP], na dimensão interpretativa normativa segundo a qual é admissível que a suspensão na execução da pena aplicada em concreto possa ser fixada em dobro do tempo máximo da pena abstrata prevista na moldura penal do tipo legal de crime é inconstitucional por violação do princípio da proibição do excesso e do princípio odiosa sunt restringenda, consagrados, ambos, no artigo 18.º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa [CRP].

2. Atenta a qualificação da suspensão da execução da pena como uma pena de substituição, a suspensão da execução da pena é tida como forma de individualização da pena principal, encontrando-se, como tal, numa dependência material e funcional à pena principal;

3. Por tudo quanto vem referido, temos que, ter-se-á que aplicar à suspensão da execução da pena de prisão os mesmos critérios e princípios que presidem à escolha e determinação/dosimetria da pena principal, entre os quais se contam, designadamente, o princípio da proibição do excesso e o princípio odiosa sunt restringenda. consagrados, ambos, no artigo 18.º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa [CRP];

4. Deste modo, a concretização do período da suspensão da execução da pena, previsto no artigo 50.º n.º 5 do CP, deverá ser precedida de um juízo de necessidade, adequação e proporcional idade, em cumprimento do artigo 18.º n.º 2 da CRP;

5. A aplicação dos princípios da proibição do excesso e o princípio odiosa sunt restringenda, à suspensão da execução da pena, encontra fundamento, bem está de ver, não apenas na ligação funcional e material entre a referida pena de substituição e a pena principal, como igualmente na restrição imposta pela sua aplicação aos direitos, liberdades e garantias do condenado, que verá condicionado o seu livre arbítrio e comportamento, no período que perdurar a duração da suspensão da execução da pena de prisão;

6. A restrição operada pela suspensão da execução da pena aos direitos, liberdades e garantias do condenado, materializada, designadamente, no período que perdurar a suspensão da execução da pena, deverá, deste modo, ter em conta a concreta ameaça penal contida no tipo de crime em causa, cuja pena principal [cuja execução é suspensa] pretende acautelar;

7. O tempo máximo da pena prevista para o crime - no caso em que a interpretação do CP - significa que o legislador entendeu que a ameaça penal subjacente ao tipo de crime em causa fica assegurada com a estipulação de um limite máximo, concretamente identificado, para a sua pena;

8. Termos em que, condicionar a suspensão da execução da pena a período superior ao do tempo máximo da pena abstrata é desproporcional e desadequado à concreta ameaça penal dada pelo tipo de crime em causa, encontrando-se em manifesta contradição com as razões de prevenção geral e especial que levaram o legislador a fixar o referido tempo máximo da pena abstrata;

9. Pelo que, em cumprimento do artigo 18.º n.º 2 da CRP, o artigo 50.º n.º 5 do CP deverá ser interpretado em apreço à interpretação que sufraga que o período de duração da suspensão da execução da pena de prisão não pode ultrapassar o tempo máximo da pena abstrata para o crime em causa, cuja execução se visa suspender;

10. Deste modo, bem está de ver que a interpretação do artigo 50.º n.º 5 do CP, com a alteração dada pela Lei 94/2017 de 23 de agosto terá de ter em consideração os pressupostos anteriores, devendo a referida interpretação ser uma interpretação sistemática, em harmonia e cumprimento com os princípios basilares de direito penal e constitucional - nos quais se contam o principio da proibição do excesso - e não uma interpretação literal;

11. A desproporcionalidade dada pela interpretação vinda de referir é de tal maneira gritante que, no limite, transforma a suspensão da execução da pena em medida mais gravosa - à revelia da intenção legislativa - do que a própria pena de prisão cuja execução se visa suspender, desvirtuando de efeito útil a sua execução, sendo mais "benéfico" ao condenado cumprir a pena de prisão - de duração manifestamente inferior - do que condicionar o seu comportamento à concreta execução da suspensão da pena de prisão, por período desproporcionalmente superior;

12. Por todo o exposto se conclui que a interpretação normativa do artigo 50.º n.º 5 dada pelo Tribunal a quo, na sentença datada de 8 de março de 2018 e confirmada pelo Tribunal da Relação, no acórdão de 12 de dezembro de 2018, segundo a qual é admissível que a suspensão na execução da pena aplicada em concreto possa ser fixada em dobro do tempo máximo da pena abstrata prevista na moldura penal do tipo legal de crime, é inconstitucional por violação do artigo 18.º n.º 2 da CRP;

13. Mais se diga que, a interpretação do artigo 51.º alínea c) do n.º 1, em conjugação com o artigo 50.º n.º 2, todos do CP, na dimensão interpretativa normativa segundo a qual é admissível ao tribunal subordinar o arguido a um dever de pagamento de uma quantia monetária muito elevada, suscetível de colocar em causa a sua vivência digna em comunidade é inconstitucional por violação do princípio da proibição do excesso e do princípio odiosa sunt restringenda consagrados, ambos, no artigo 18.º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa [CRP].

14. A sujeição da suspensão da execução da pena a determinados deveres, como seja o pagamento da quantia de 10.000,00€ (dez mil euros) ao Centro de Reabilitação de Alcoitão, conforme veio o Tribunal a quo, na sentença datada de 08 de março de 2019, e confirmada pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no acórdão datado de 12 de dezembro de 2018, tem de respeitar o princípio da proporcionalidade e do princípio da odiosa sunt restringenda, consagrados, ambos, no artigo 18.º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa [CRP].

15. A imposição ao condenado do dever de pagamento da quantia de 10.000,00€ (dez mil euros) ao Centro de Reabilitação de Alcoitão é manifestamente gravosa e desproporcional, colidindo com os direitos fundamentais do condenado, com consagração constitucional, nos quais se incluem o mínimo de subsistência, entendido este como o acesso ao direito à alimentação, vestuário, calçado, habitação e saúde;

16. Termos em que, atenta a restrição aos direitos, liberdades e garantias do condenado, infringida pela suspensão da execução da pena, o artigo 18.º n.º 2 da CRP prescreve que a aludida restrição terá de ser necessária, adequada e proporcional à ameaça penal que se pretende acautelar;

17. Sendo imperioso, por um lado, que o condenado se encontre em condições de cumprir os referidos deveres e, por outro, que os mesmos deveres sejam revestidos de necessidade, adequação e racional idade.

18. Por todo o exposto se conclui que, a interpretação normativa do artigo 51.º alínea c) do n.º 1, em conjugação com o artigo 50.º n.º 2, todos do CP, dada pelo Tribunal a quo, na sentença datada de 8 de março de 2018 e confirmada pelo Tribunal da Relação, no acórdão de 12 de dezembro de 2018, segundo a qual é admissível que a suspensão da execução da pena possa ter como consequência a violação dos direitos fundamentais do condenado - nos quais se inclui a vivência digna em comunidade ou mínimo de subsistência - enferma de inconstitucionalidade por violação do artigo 18.º n.º 2 da CRP».

 

5. O Recorrido contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso, como se transcreve:

«[…]

 

III. Da interposição do recurso de constitucionalidade e da definição do seu objeto

Novamente inconformado, veio o arguido, em 8 de janeiro de 2019, interpor recurso deste Acórdão, do Tribunal da Relação de Lisboa, para o Tribunal Constitucional (cfr. fls. 84-86, 91-93 dos autos).

Suscita, para tanto, as seguintes questões de constitucionalidade (cfr. fls. 84-85 dos autos):

a) O Recorrente pretende ver apreciada a inconstitucionalidade da norma prevista no nº 5 do artigo 50º do Código Penal [CP], na dimensão interpretativa normativa segundo a qual é admissível que a suspensão na execução da pena aplicada em concreto possa ser fixada em dobro do tempo máximo da pena abstrata prevista na moldura penal do tipo legal de crime.

b) O Recorrente pretende ver apreciada a inconstitucionalidade da norma prevista na alínea c) do nº 1 do artigo 51º em conjugação com o nº 2 do artigo 50º, todos do CP, na dimensão interpretativa normativa segundo a qual é admissível ao tribunal subordinar o arguido a um dever de pagamento de uma quantia monetária muito elevada, suscetível de colocar em causa a sua vivência digna em comunidade.

10º

Relativamente às normas e princípios constitucionais que se consideram violados, refere o arguido no seu requerimento de recurso (cfr. fls. 85 dos autos):

a) O Recorrente considera que a interpretação normativa da norma prevista no nº 5 do artigo 50º do Código Penal [CP], segundo a qual é admissível e lícita que a suspensão na execução da pena aplicada em concreto possa ser fixada em dobro do tempo máximo da pena abstrata prevista na moldura penal do tipo legal de crime é materialmente inconstitucional por violação do princípio da proibição do excesso, na dimensão material da necessidade e da exigibilidade da ameaça penal, e do princípio odiosa sunt restringenda, consagrados no artigo 18º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa [CRP].

b) O Recorrente considera que a interpretação normativa da norma prevista na alínea c) do nº 1 do artigo 51º em conjugação com o nº 2 do artigo 50º, todos do CP, na dimensão interpretativa normativa segundo a qual é admissível ao tribunal subordinar o arguido a um dever de pagamento de uma quantia monetária muito elevada, suscetível de colocar em causa a sua vivência digna em comunidade, é materialmente inconstitucional por violação do princípio da proibição do excesso, e do princípio odiosa sunt restringenda, consagrado no artigo 18º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa [CRP].

11º

As duas questões de constitucionalidade, agora submetidas à apreciação do Tribunal Constitucional, foram oportunamente suscitadas perante o Tribunal da Relação de Lisboa (cfr. supra nº 3 das presentes contra-alegações) e estariam, nessa medida, em condições de ser apreciadas por este Tribunal Constitucional.

Todavia, a segunda questão de constitucionalidade encontra-se indissoluvelmente ligada às circunstâncias do caso concreto, apreciadas e valoradas pelas instâncias, em termos de apreciação da culpa do arguido e da avaliação da sua situação económica, bem como das necessidades de prevenção geral e especial que careciam de ser acauteladas com as decisões proferidas (… subordinar o arguido a um dever de pagamento de uma quantia monetária muito elevada, suscetível de colocar em causa a sua vivência digna em comunidade…) e não apresenta, por isso, a necessária normatividade, para poder ser conhecido por este Tribunal Constitucional. Nessa medida, não será objeto de apreciação nas presentes contra-alegações.

Esta ausência de normatividade foi igualmente intuída pela Ilustre Conselheira Relatora deste Tribunal Constitucional, como se pode depreender do seu despacho, proferido em 1 de fevereiro de 2019 (cfr. fls. 97 dos autos).

12º

De qualquer modo, mesmo que assim se não entendesse, dificilmente se poderia considerar excessiva a quantia de € 10.000, a pagar pelo arguido ao Centro de Reabilitação do Alcoitão, ao longo de um ano, face a um rendimento anual de € 50.000, por ele assumidamente auferido.

Sobretudo tendo em consideração os compromissos mensais que o mesmo invoca, quer relativamente ao ex-cônjuge (€ 250), quer relativamente à sua filha (€ 400 + € 100) (cfr. fls. 35 verso dos autos).

Por outro lado, importa aqui relembrar, mais uma vez, o facto de o arguido ter sido anteriormente condenado por um crime de homicídio negligente, em acidente de viação, em concurso com um crime de omissão de auxílio, pelo qual foi condenado na pena única de 1 ano e 4 meses de prisão, embora suspensa na sua execução por igual período.

As presentes contra-alegações debruçar-se-ão, pois, apenas, sobre a primeira questão de constitucionalidade suscitada pelo arguido perante este Tribunal Constitucional.

 

IV. Apreciação do thema decidendum e conclusões

13º

Vejamos, então, o que se poderá aduzir relativamente à argumentação do ora recorrente, convindo, para o efeito, fazer uma síntese dos principais factos que interessam à apreciação do seu recurso.

Ora, o arguido, ora recorrente, A., foi anteriormente condenado, por sentença de 24 de novembro de 2014, por um crime de homicídio negligente, em acidente de viação, em concurso com um crime de omissão de auxílio, na pena única de 1 ano e 4 meses de prisão, embora suspensa na sua execução por igual período (cfr. fls. 13-14 dos autos).

14º

Nos presentes autos, o ora recorrente foi novamente condenado, em 1ª instância, pelo Juízo Local de Pequena Criminalidade de Sintra – Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, por sentença proferido em 8 de Março de 2018, na pena de 5 meses de prisão, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez (o arguido apresentava uma TAS de, pelo menos, 1,812 g/l, correspondente à TAS de 1,97 g/l registada), previsto e punido pelo art. 292º, nº 1, do Código Penal (cfr. fls. 26-29 dos autos e supra nº 1 das presentes contra-ordenações).

Todavia, ao abrigo do art. 50º do Código Penal, a pena de prisão foi suspensa na sua execução por um período de 2 anos, com a obrigação de o arguido pagar, no período de 1 ano, a quantia de € 10.000 ao Centro de Reabilitação de Alcoitão.

Para além disso, o arguido foi condenado na pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor pelo período de 8 meses.

Por outras palavras, a segunda infração teve lugar poucos anos depois da primeira, sempre em relação à condução de veículos automóveis.

15º

Inconformado, o arguido recorreu, em 16 de abril de 2018, da sentença de 1ª instância, para o Tribunal da Relação de Lisboa, tendo apresentado as correspondentes alegações (cfr. fls. 31-40 dos autos e supra nº 2 das presentes contra-alegações).

16º

Subidos os autos ao Tribunal da Relação de Lisboa, veio este tribunal superior proferir Acórdão, em 11 de dezembro de 2018 (cfr. fls. 69-78 dos autos), que considerou improcedente o recurso interposto.

17º

Novamente inconformado, veio o arguido, em 8 de janeiro de 2019, interpor recurso deste Acórdão, do Tribunal da Relação de Lisboa, para o Tribunal Constitucional (cfr. fls. 84-86, 91-93 dos autos e supra nº 9 das presentes contra-alegações).

Suscitou, para tanto, como primeira questão de constitucionalidade – a segunda questão de constitucionalidade, pelas razões atrás indicadas (cfr. supra nºs 11 e 12 das presentes contra-alegações), não será apreciada no âmbito destas contra-alegações –, a seguinte interpretação normativa (cfr. fls. 84-85 dos autos):

a) O Recorrente pretende ver apreciada a inconstitucionalidade da norma prevista no nº 5 do artigo 50º do Código Penal [CP], na dimensão interpretativa normativa segundo a qual é admissível que a suspensão na execução da pena aplicada em concreto possa ser fixada em dobro do tempo máximo da pena abstrata prevista na moldura penal do tipo legal de crime.

18º

Julga-se, porém, que não assiste qualquer razão ao recorrente.

Desde logo, como devidamente salientado pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no Acórdão recorrido (cfr. supra nº 5 das presentes contra-alegações):

Antes do mais, importa referir que é a lei penal, através do disposto nos artigos 40º, 70º e 71º que fornece ao julgador, os critérios de determinação da pena.

Assim, a determinação da pena, nos termos do art. 71º, do Código Penal, é sempre feita em função das categorias da prevenção e da culpa, sendo a culpa uma censura dirigida ao agente em virtude da atitude de desvalor relativamente a certo facto, indicando sempre o limite máximo da pena. Por sua vez, o limite mínimo decorrerá de considerações ligadas à necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto. E conforme decorre do art. 40º do Código Penal, em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral, a moldura de prevenção, no dizer da Prof. Anabela Rodrigues. Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização e integração do agente ou das necessidades de intimidação e de segurança individuais.

No caso em apreço, a pena aplicada reflete a conjugação das exigências de prevenção geral e especial e o grau de culpa do arguido.

O Tribunal recorrido ponderou o grau de ilicitude dos factos, apresentando o arguido uma taxa de álcool de 1,812 g/l, sendo de considerar já elevada. As razões de prevenção geral são prementes face à elevada sinistralidade rodoviária, estando em causa a proteção de bens jurídicos de grande relevo, inclusivamente a vida humana. Também as exigências de prevenção especial são elevadas, considerando que o arguido há menos de dois anos foi condenado pela prática de um crime de homicídio negligente, em acidente de viação, em concurso com um crime de omissão de auxílio, na pena única de um ano e quatro meses de pena suspensa na sua execução por igual período. Apesar disso, dessa vivência traumática e de resultados funestos, o arguido não se coibiu, decorridos menos de dois anos, de conduzir sob o efeito de álcool, o que potencia a probabilidade de acidentes de viação.

Por estas razões, temos a pena aplicada ao arguido de 5 (cinco) meses de prisão, abaixo do meio da pena, como justa e adequada.

19º

O Acórdão recorrido sublinhou, por outro lado (cfr supra igualmente nº 5 das presentes contra-alegações):

O tribunal decidiu suspender a execução da pena, tendo em conta a confissão do arguido e o seu arrependimento, permitindo ainda um juízo de prognose favorável. Mas considerou, em face das elevadas exigências de prevenção especial, de modo a evitar que o arguido no futuro volte a delinquir, o Tribunal decidiu, e bem, condicionar a suspensão da execução da pena ao dever de entregar a quantia de € 10.000,00, no prazo de um ano, ao Centro de Reabilitação do Alcoitão.

Em face dos rendimentos auferidos pelo arguido, e tendo em vista as prementes exigências de prevenção especial, temos como ajustada a subordinação a tal dever, sendo proporcional o montante fixado.

E não se trata, conforme refere o recorrente, “de uma pena “pesada” quando globalmente considerada” nem de “uma culpa qualificada por reinicidência”.

Como sabemos, no nosso sistema punitivo, as penas devem ser executadas com um sentido pedagógico e ressocializador, havendo que limitar o mais possível os efeitos criminógenos de prisão. Mas a aplicação de uma medida de substituição deve mostrar-se suficiente e adequada a promover a recuperação social do delinquente e satisfazer as exigências de reprovação e prevenção do crime, o que ocorre claramente no caso dos presentes autos ao ser condicionada a suspensão da execução da pena ao dever de pagar aquela quantia ao Centro de Reabilitação do Alcoitão.

20º

Finalmente, o Acórdão recorrido, do Tribunal da Relação de Lisboa, considerou, relativamente ao período de suspensão da execução da pena de prisão, aplicado ao arguido (cfr. supra nº 7 das presentes contra-alegações):

c. Do fixado período de suspensão da execução da pena de prisão.

O recorrente insurge-se com o facto de o Tribunal ter sujeito a suspensão da execução da pena de prisão a um período longo de 2 anos.

Argumenta para tanto que a suspensão da pena na sua execução tem de ser aferida face à moldura do tipo, ou seja, a suspensão da pena na execução não deve ultrapassar o tempo máximo de pena de prisão em abstrato: um ano.

E invoca a inconstitucionalidade da interpretação normativa do nº 5 do art. 50º do CP, por violação do princípio da proibição do excesso, na dimensão material da necessidade e da exigibilidade da ameaça penal (art. 18º, nº 2, da CRP).

Vejamos.

Esta argumentação não é sustentável, desde logo do ponto de vista legal, estabelecendo o art. 50º, nº 5, na alteração operada pela Lei nº 94/2017, de 23 de agosto, a possibilidade de ser fixado o período de suspensão para além da pena aplicada, e só poderá ser aplicada até cinco anos.

E justifica-se esta alteração, permitindo-se que em penas curtas melhor se possam acautelar as razões de prevenção especial, na vertente da reintegração na sociedade do agente, precisando por vezes de mais tempo para repensar ou reajustar o seu comportamento às exigências da vida em sociedade, podendo a suspensão ser subordinada ao cumprimento de deveres que podem exigir mais tempo para a realização das finalidades da punição.

E sendo esta a perspetiva do alargamento do período da suspensão da execução, e inserido nas finalidades da punição, nunca poderia estar em causa a violação da proibição do excesso trazida à colação pelo recorrente.

21º

Ora, concorda-se inteiramente com esta posição do Acórdão recorrido.

Por um lado, a determinação da medida de uma pena é feita em função da culpa do agente e da necessidade de tutela de determinados bens jurídicos, devendo atender-se, para o efeito, às exigências de prevenção geral e de prevenção especial, esta última aferida em função da situação concreta do agente, do facto por ele praticado, de um juízo de prognose favorável sobre a sua conduta futura e da possibilidade de socialização e integração futura do agente na vida em sociedade.

No caso dos autos, a pena aplicada, de 5 meses de prisão pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez (o arguido apresentava uma taxa de álcool no sangue de 1,812 g/l, o que se pode considerar uma taxa elevada), embora suspensa na sua execução, mostra-se inteiramente ajustada e adequada à prática do referido facto delituoso, sobretudo se se atender ao facto de o arguido ter sido condenado, poucos anos antes, a uma pena ainda mais severa de 1 ano e 4 meses de prisão suspensa na sua execução, pela prática de um crime de homicídio negligente, em acidente de viação, em concurso com um crime de omissão de auxílio.

22º

Com efeito, justificam a pena aplicada não só razões de prevenção geralelevada sinistralidade rodoviária, que teima em não decrescer e que coloca em risco a proteção de bens jurídicos de relevo, designamente a vida ou integridade física de pessoas – mas também de prevenção especial – apesar da sua anterior condenação, o ora recorrente não parece ter interiorizado o desvalor das suas condutas ilícitas de automobilista.

Nessa medida, o tribunal de 1ª instância considerou necessário subordinar a suspensão da execução da pena ao dever, imposto ao arguido, de este entregar a quantia de € 10.000,00, no prazo de um ano, ao Centro de Reabilitação do Alcoitão, mostrando-se a imposição deste dever adequada a promover a recuperação social do delinquente e a satisfazer as exigências de reprovação e prevenção do crime por ele cometido.

Talvez, assim, o ora recorrente fique em melhores condições para interiorizar as suas obrigações como cidadão respeitador da lei, bem como as regras inerentes à condução de veículos motorizados.

23º

Por último, os critérios de determinação da medida da pena apenas indiretamente poderão influenciar a definição do período de suspensão da execução da pena de prisão.

Com efeito, enquanto que para a determinação da medida da pena são fundamentalmente atendíveis a culpa do agente e as exigências de prevenção geral e especial que relevam, para a definição do período de suspensão da execução da pena de prisão é fundamentalmente o juízo de prognose sobre a futura conduta do agente que releva, tendo em vista prevenir a ocorrência de novos delitos e a recuperação e reintegração social do delinquente.

Ora, no próprio interesse do arguido condenado, o período de suspensão da execução da pena pode ser mais ou menos prolongado, de forma a garantir-lhe a possibilidade de dispor de mais tempo para repensar ou reajustar o seu comportamento às exigências da vida em sociedade e para interiorizar devidamente a gravidade da sua conduta delitiva.

Não se vê, por isso, em que medida o disposto no art. 50º, nº 5 do Código Penal possa violar o princípio da proibição do excesso, argumento aduzido pelo ora recorrente.

24º

Com efeito, como referido, por exemplo, no Acórdão 277/16, de 4 de maio, deste Tribunal Constitucional (Relator: Conselheiro Pedro Machete) (destaques do signatário):

“8. A proibição do excesso constitui, tal como o princípio da proibição do arbítrio, uma componente elementar da ideia de justiça, razão por que aquele princípio pode reclamar uma validade geral. Como realça Reis Novais, «[s]ó essa vinculação entre proibição do excesso, proporcionalidade, Estado de Direito e justiça explica que, apesar das substanciais diferenças dos textos constitucionais ou mesmo da sua ausência nesses textos, seja idêntica ou muito próxima a tendência de evolução que, a propósito, se desenvolve nos Estados Unidos da América ou nos diferentes países europeus, na jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem ou na jurisdição comunitária» (Autor cit., Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, Coimbra editora, Coimbra, 2004, p. 165). A mencionada conexão imediata com a ideia de justiça e de Direito justifica igualmente que, no tempo presente, se retomem as preocupações clássicas em matéria de moderação e, por conseguinte, não se confine o âmbito de aplicação da proibição do excesso às relações jusfundamentais em que esteja em causa a liberdade, alargando-o a toda e qualquer atuação dos poderes públicos. Nesse sentido, pode dizer-se com Maria Lúcia Amaral:

«Quando falamos em proibição do excesso, ou em princípio da proporcionalidade em sentido lato, queremos significar essencialmente o seguinte. As decisões que o Estado toma, justamente pelo facto de não poderem ser nem ilimitadas nem arbitrárias, têm que ter, todas e cada uma delas, uma certa finalidade ou uma certa razão de ser. Esta finalidade, prosseguida por cada decisão estadual, deve ser para os seus destinatários – como para qualquer membro da comunidade jurídica – algo de detetável, denominável e compreensível. É evidente que o Estado, sempre que age, busca a melhor realização do interesse público. Mas tal não basta: o que é necessário é que, perante cada decisão, se possa compreender o modo específico pelo qual, naquele caso, se quis prosseguir o interesse de todos. É a isso mesmo que nos referimos, quando aludimos à “finalidade” ou “razão de ser” de cada decisão estadual é à necessidade da sua inteligibilidade.

Ora, o que o princípio da proibição do excesso postula é que entre o conteúdo da decisão estadual e o fim que ela prossegue haja sempre um equilíbrio, uma ponderação e uma “justa medida”. Não se utilizam canhões para atirar a pardais: as vantagens (obtidas por todos) através da medida estadual devem ser proporcionais às desvantagens que tal medida tenha eventualmente causado a alguns membros da comunidade jurídica, de tal modo que o peso da decisão pública nunca venha a exceder o quantum requerido pela prossecução do seu fim.» (Autora cit., A Forma da República – Uma introdução ao estudo do direito constitucional, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, p. 186)

E, na verdade, a proibição do excesso (ou a proporcionalidade em sentido amplo) tem vindo a ser reconhecido como princípio geral de limitação do poder público, pertinente para sindicar atuações públicas que interfiram, por exemplo, com direitos económicos, sociais e culturais. Tal aponta decisivamente para uma base normativo-constitucional daquele princípio que seja o mais abrangente possível. Nesse sentido, o Acórdão n.º 187/2001, afirmou que «[r]elativamente às restrições a direitos, liberdades e garantias, a exigência de proporcionalidade resulta do artigo 18º, n.º 2, da Constituição da República. Mas o princípio da proporcionalidade, enquanto princípio geral de limitação do poder público, pode ancorar-se no princípio geral do Estado de Direito. Impõem-se, na realidade, limites resultantes da avaliação da relação entre os fins e as medidas públicas, devendo o Estado-legislador e o Estado-administrador adequar a sua projetada ação aos fins pretendidos, e não configurar as medidas que tomam como desnecessária ou excessivamente restritivas».

Com efeito, o princípio do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2.º da Constituição, pelas suas conotações históricas e devido à sua natureza de “princípio fundamental”, é expressão da ideia de que a garantia da liberdade, igualdade e segurança dos cidadãos se funda na sujeição do poder público a normas jurídicas: um Estado informado pela ideia de Direito não pode, sem negar a sua essência, ser um Estado prepotente, arbitrário ou injusto (cfr. os Acórdãos n.ºs 205/2000 e 491/2002). Nessa perspetiva, o Acórdão n.º 73/2009 entendeu «o princípio da proporcionalidade [como um] princípio geral de limitação do poder público que pode ancorar-se no princípio geral do Estado de Direito, impondo limites resultantes da avaliação da relação entre os fins e as medidas públicas, devendo o Estado (também o Estado‑legislador) adequar a sua ação aos fins pretendidos, e não estatuir soluções desnecessárias ou excessivamente onerosas ou restritivas». Deste modo, «as decisões que o Estado (lato sensu) toma têm de ter uma certa finalidade ou uma certa razão de ser, não podendo ser ilimitadas nem arbitrárias, e [tal] finalidade deve ser algo de detetável e compreensível para os seus destinatários. O princípio da proibição de excesso postula que entre o conteúdo da decisão do poder público e o fim por ela prosseguido haja sempre um equilíbrio, uma ponderação e uma “justa medida” e encontra sede no artigo 2.º da Constituição. O Estado de direito não pode deixar de ser um “Estado proporcional”» (cfr. o Acórdão n.º 387/2012; itálico aditado). Por isso, as atuações dos poderes públicos, justamente pelo facto de não poderem ser ilimitadas nem arbitrárias, são perspetivadas em cada caso concreto, real ou representado, como meios para atingir um certo fim – pressupondo-se naturalmente a legitimidade constitucional tanto dos primeiros como do segundo.

Assim:

«[S]e se tolerasse que os encargos impostos pelas suas decisões aos cidadãos fossem desmedidos, não justificados pelos seus fins específicos e – por isso mesmo – levianos, dificilmente se conseguiria assegurar a ideia segundo a qual a atividade estadual deve surgir, para os seus destinatários, como algo sério, seguro ou confiável. Ora […] um poder político assim, incapaz de merecer a confiança daqueles a quem se dirige, não pode ser nunca um poder limitado pelo direito e destinado a garantir a justiça, a dignidade da pessoa humana e a liberdade. O princípio da proibição do excesso, que postula a mensurabilidade de todos os atos estaduais, integra o conteúdo material do princípio do Estado de direito exatamente pelas mesmas razões por que o fazem os outros princípios […] e que visam assegurar a calculabilidade possível dos comportamentos públicos. É que não haverá nunca tal calculabilidade aí onde não for estabelecido o seguinte princípio de segurança: os atos estaduais, além de serem atos previsíveis, devem ser também, sempre, atos equilibrados, medidos e ponderados.» (v. Maria Lúcia Amaral, A Forma da República, cit., p. 187)   

No controlo da proibição do excesso, tem este Tribunal seguido na análise da relação de adequação entre um meio e o respetivo fim (princípio da proporcionalidade em sentido amplo) uma metódica de aplicação assente num triplo teste, assim sintetizado no Acórdão n.º 634/93:

«O princípio da proporcionalidade desdobra-se em três subprincípios: princípio da adequação (as medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias devem revelar-se como um meio para a prossecução dos fins visados, com salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos); princípio da exigibilidade (essas medidas restritivas têm de ser exigidas para alcançar os fins em vista, por o legislador não dispor de outros meios menos restritivos para alcançar o mesmo desiderato); princípio da justa medida, ou proporcionalidade em sentido estrito (não poderão adotar-se medidas excessivas, desproporcionadas para alcançar os fins pretendidos).»

Recorde-se, em todo o caso, que o controlo exercido deve ser, em vista da salvaguarda do princípio da separação de poderes, não só menos intenso quando esteja em causa a atuação do legislador (v., por exemplo, os Acórdãos n.ºs 484/2000 e 187/2001), como meramente negativo (v., entre outros, os Acórdãos n.ºs 509/2015 e 81/2016: existe violação do princípio da proporcionalidade se a medida em análise for considerada inadequada (convicção clara de que a medida é, em si mesma, inócua, indiferente ou até negativa, relativamente aos fim visado); ou desnecessária (convicção clara da existência de meios adequados alternativos mas menos onerosos para alcançar o fim visado); ou desproporcionada (convicção de que o ganho de interesse público inerente ao fim visado não justifica nem compensa a carga coativa imposta; relação desequilibrada entre os custos e os benefícios).”

25º

Ora, em face dos referidos critérios, não se crê que o legislador, ao redigir o art. 50º, nº 5 do Código Penal, haja violado o princípio da proibição do excesso ou da justa medida.

Bem pelo contrário, procurou sobretudo atender aos interesses do arguido condenado, possibilitando-lhe o cumprimento não de uma pena efetiva de prisão, mas a suspensão desta e a manutenção do arguido em liberdade, embora sujeito a particulares deveres, para evitar a ocorrência de novos factos delitivos.

E permitindo que a imposição desses deveres possa ser mais ou menos prolongada, consoante as características individuais do condenado, o grau da sua culpa e a gravidade da sua conduta o aconselhem.».

 

Cumpre apreciar e decidir.

 

II – Fundamentação

A. Delimitação do objeto do recurso

6. O presente recurso foi interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, tendo por objeto a apreciação da constitucionalidade: (i) da norma extraída do «n.º 5 do artigo 50.º do Código Penal [CP], na dimensão interpretativa […] segundo a qual é admissível que a suspensão na execução da pena aplicada em concreto possa ser fixada em dobro do tempo máximo da pena abstrata prevista na moldura penal do tipo legal de crime»; e ii) da interpretação da «alínea c) do n.º 1 do artigo 51.º em conjugação com o n.º 2 do artigo 50.º, todos do CP, […] segundo a qual é admissível ao tribunal subordinar o arguido a um dever de pagamento de uma quantia monetária muito elevada, suscetível de colocar em causa a sua vivência digna em comunidade».

No despacho que determinou o prosseguimento dos autos para a fase de alegações, recorrente e recorrido foram advertidos para a possibilidade de o objeto do recurso não vir a ser conhecido no segmento integrado pela segunda das questões acima identificadas pelo facto de a mesma não revestir caráter normativo.

À impossibilidade de conhecimento do objeto do recurso, tal como perspetivada no referido despacho, não opôs o recorrente qualquer objeção expressa, tendo-se limitado a reiterar, nesta parte, o que afirmara já no requerimento de interposição do recurso, isto é, a reproduzir, nos seus exatos termos, a formulação acima reproduzida, procurando demonstrar a sua incompatibilidade com os princípios constitucionais cuja violação lhe imputa.

Já o Ministério Público secundou a impossibilidade de conhecimento do objeto do recurso quanto à segunda das questões enunciadas pelo recorrente, sustentando que a interpretação impugnada se encontra indissoluvelmente ligada às circunstâncias do caso concreto, apreciadas e valoradas pelas instâncias no âmbito da apreciação da culpa do arguido e da avaliação da sua situação económica, bem como das necessidades de prevenção geral e especial que considerou deverem ser acauteladas no caso concreto.

7. Para verificar se, neste seu segmento, o recurso é legalmente admissível, importa ter presente que um dos pressupostos de admissibilidade dos recursos interpostos ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC se prende com a idoneidade do respetivo objeto.

Conforme tem este Tribunal reiteradamente afirmado, os recursos interpostos no âmbito da fiscalização concreta da constitucionalidade, não obstante incidirem sobre decisões dos tribunais, têm, por força do disposto no artigo 280.º, n.º 1, da Constituição, um objeto estritamente normativo, no sentido em que apenas podem visar a apreciação da conformidade constitucional de normas ou dimensões normativas, e não, sequer também, das decisões judiciais, em si mesmas consideradas.

Não incumbindo ao Tribunal Constitucional sindicar o resultado da atividade ponderativa própria instâncias, nem a estas se substituir na determinação do substrato factual da causa, na definição da correta conformação da lide e/ou na determinação da melhor interpretação do direito ordinário (cf. Acórdão n.º 466/16), os seus poderes de cognição, para além de circunscritos à questão jurídico-constitucional que lhe é colocada, apenas podem ser exercidos sobre normas jurídicas, tomadas com o sentido objetivamente extraível do preceito que as consagra ou com aquele que a decisão recorrida lhes houver especificamente associado.

Tendo em conta o modo como a questão foi enunciada no requerimento de interposição do recurso, sem dificuldade se verifica que o vício invocado pelo recorrente é atribuído diretamente ao acórdão recorrido, relevando exclusivamente da crítica ao julgamento levado a cabo pelo Tribunal da Relação de Lisboa na parte em que, “em face dos rendimentos auferidos pelo arguido, e tendo em vista as prementes exigências de prevenção especial”, teve como “ajustada” a subordinação da suspensão da execução da pena à obrigação de pagamento imposta em primeira instância e por “proporcional” o montante para o efeito fixado.

Mais até do que fazer coincidir o objeto do recurso com o juízo formulado pelo Tribunal a quo, o que o recorrente verdadeiramente faz é transpor para a asserção que pretende ver sindicada — recorde-se, «a alínea c) do n.º 1 do artigo 51.º em conjugação com o n.º 2 do artigo 50.º, todos do CP», na interpretação segundo a qual «é admissível ao tribunal subordinar o arguido a um dever de pagamento de uma quantia monetária muito elevada, suscetível de colocar em causa a sua vivência digna em comunidade» — a sua própria apreciação acerca da justeza e adequação da condição a que as instâncias subordinaram a suspensão da execução da pena de prisão em que foi condenado, o que coloca o objeto do recurso irremediavelmente fora dos poderes de cognição constitucionalmente atribuídos a este Tribunal. Com efeito, por força do caráter estritamente normativo do sistema de fiscalização concreta da constitucionalidade, encontra-se vedada a este Tribunal a apreciação dos concretos atos de julgamento expressos nas decisões dos outros órgãos jurisdicionais, ainda que questionados na perspetiva da sua conformidade a regras e princípios constitucionais (cf. Decisão Sumária n.º 23/2017).

Nestes termos, este concreto objeto do recurso nos presentes autos interposto é, nesta parte, manifestamente inidóneo, o que obsta ao respetivo conhecimento.

 

B. Do Mérito

8. Delimitado nos referidos termos o objeto do presente recurso, a questão que importa solucionar aqui consiste em saber se é constitucionalmente ilegítima, designadamente por violação do princípio da proibição do excesso, consagrado no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, a norma prevista n.º 5 do artigo 50.º do Código Penal, na interpretação segundo a qual «a suspensão [da execução] da pena aplicada em concreto po[de] ser fixada em dobro do tempo máximo da pena abstrata prevista na moldura penal do tipo legal de crime».

O artigo 50.º do Código Penal, na redação que lhe foi introduzida pela Lei n.º 94/2017, de 23 de agosto, prescreve o seguinte:  

Artigo 50.º

Pressupostos e duração

1 - O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. 

[…]

5 - O período de suspensão é fixado entre um e cinco anos (itálico aditado).

 

Extraída do n.º 5 do artigo 50.º do Código Penal, a norma impugnada prende-se diretamente com o critério de determinação do período de suspensão da execução da pena, mais concretamente com a autonomia do juízo que o tribunal deverá levar para esse efeito a cabo, sem subordinação a qualquer outro requisito objetivo para além daquele que decorre dos limites temporais, mínimo e máximo, estabelecidos na lei. Mais concretamente ainda, está em causa a viabilidade constitucional, em face do princípio da proibição do excesso, do regime da suspensão da execução da pena, na parte em que prescinde da existência de uma qualquer correlação ou nexo entre o limite máximo do período de suspensão legalmente admissível — cinco anos — e o limite máximo da moldura abstrata correspondente ao tipo legal de crime que motivou a condenação, permitindo que a duração do período de suspensão seja fixada no dobro do quantum que a este corresponde.

É esta, pois, a questão que cumpre seguidamente resolver, não sem antes fazer uma breve referência à natureza e ao regime jurídico da pena de suspensão da execução da prisão.

9. A pena de suspensão de execução da prisão continua a constituir, entre nós, uma das mais importantes penas de substituição. Nas palavras Jorge de Figueiredo Dias, é «[a] mais importante, desde logo, por ser de todas a que possui mais largo âmbito» (Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra, Coimbra Editora, 2005, p. 337), podendo ser aplicada em substituição de qualquer pena de prisão fixada em medida não superior a 5 anos. Abarcando penas de curta e média duração, a pena de suspensão de execução da prisão constitui, pois, um preponderante mecanismo de reação no domínio da pequena e média criminalidade.

Para além do pressuposto formal ­— aplicação, a título principal, de uma pena de prisão em medida não superior a cinco anos —, constitui pressuposto material da possibilidade de suspensão da execução da pena que o tribunal, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias destes, conclua que a simples censura do facto e ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal). Afastada a preferência por qualquer outra das demais penas de substituição e verificando-se ambos os referidos pressupostos, o tribunal tem o poder-dever de a aplicar.

Tal como sucede com as demais penas de substituição (à exceção da prestação de trabalho a favor da comunidade), a determinação da medida concreta da pena de suspensão de execução da prisão — mais concretamente, do período de suspensão — assume total autonomia relativamente à fixação medida concreta da pena principal substituída, devendo ocorrer sob incidência dos critérios estabelecidos no artigo 71.º do Código Penal.

Na ausência de qualquer fator legal de indexação, tal autonomia tem, na verdade, uma dupla dimensão: de acordo com o regime estabelecido no n.º 5 do artigo 50.º do Código Penal, a duração do período de suspensão não depende, nem da medida concreta da pena de prisão aplicada a título principal, nem do limite máximo da moldura abstrata prevista para o crime subjacente à condenação.  

10. Correspondendo embora à solução originariamente acolhida no Código Penal de 1982, tal regime não vigorou continuadamente, pelo menos em parte, até ao momento presente.

Procedendo à vigésima terceira alteração ao Código Penal, a Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro, ao mesmo tempo que elevou de três para cinco anos a medida concreta da pena de prisão suscetível de ser substituída pela suspensão da execução da pena, estabeleceu, no n.º 5 do artigo 50.º, um citério de correspondência entre a pena aplicada a título principal e a duração do período de suspensão: este teria uma «duração igual à da pena de prisão determinada na sentença», desde que não inferior a um ano.

Tal critério foi, no entanto, abandonado no âmbito da quadragésima quarta alteração ao Código Penal, levada a cabo pela Lei n.º 94/2017, de 23 de agosto, que conferiu ao n.º 5 do respetivo artigo 50.º a sua redação atual.

A Lei n.º 94/2017 teve na sua origem na Proposta de Lei n.º 90/XIII.

De acordo com a Exposição de Motivos que acompanhou tal Proposta, a revisão empreendida visou, no «caso da fixação do período de suspensão da execução da pena de prisão», regressar «à solução que vigorou até à revisão de 2007 do Código Penal, de modo a dissociar o tempo da pena de suspensão do tempo da pena de prisão e a reafirmar o princípio de que este deve ser determinado em função da culpa e das finalidades consignadas às penas».

Como nota Maria João Antunes, na sequência da revisão operada pela Lei n.º 94/2017, «[f]oi reintroduzida a regra de que a medida concreta da suspensão da execução da pena de prisão é determinada de forma autónoma, segundo os critérios do artigo 71.º, n.º 1, do CP […]. A determinação autónoma da medida concreta da suspensão da execução da pena de prisão é, de resto, mais consentânea com a sua natureza de pena de substituição em sentido próprio (cf. Ac. do STJ n.º 13/2016)» (Penas e Medidas de Segurança, Coimbra, Almedina, 2017, p. 81).

11. O argumento que explica que a fixação do quantum do período de suspensão não dependa da medida concreta da pena de prisão é, por maioria de razão, aquele que permite compreender a inexistência de qualquer vinculação ao limite máximo da pena abstratamente cabida ao tipo legal de crime — solução que, ao contrário da primeira, nunca foi, de resto, acolhida pelo legislador penal.

É que, enquanto o limite máximo da moldura penal traduz a necessidade de atender, de entre todas as possíveis formas de realização típica, às de maior gravidade conjeturável, de modo a assegurar que, também nestes casos, a medida concreta da pena a aplicar possa vir a corresponder ao limite da culpa e às exigências de prevenção, já a duração do período de suspensão exprime a exigência de que a ameaça de privação da liberdade se mantenha durante o período de tempo necessário a poder constituir para o condenado um eficaz contraestimulo à reiteração do comportamento delituoso, ao mesmo tempo que assegura à pena não detentiva as propriedades necessárias para acautelar o risco de a ausência de privação de liberdade vir a ser entendida como uma injustificada indulgência na prevenção e reação contra o crime.

Na ausência de qualquer subordinação à medida, abstrata e concreta, da pena principal, caberá, pois, ao Tribunal verificar, através da ponderação as circunstâncias do ilícito-típico e da personalidade do agente nele documentada, qual a duração do período de suspensão necessária a, por um lado, eliminar, tanto quanto é possível fazê-lo, o risco de reincidência e, por outro, manter a confiança da comunidade na validade e vigência da norma penal.

12. Esclarecido o sentido dos elementos que integram a assimetria questionada pelo recorrente, é altura de verificar se, em face do princípio da proibição do excesso, consagrado no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, merece algum tipo de censura a norma extraída do n.º 5 do artigo 50.º do Código Penal, «no sentido de permitir que o tempo de suspensão da execução da pena de prisão possa ser fixada em dobro do tempo máximo da pena abstrata prevista na moldura penal do tipo legal de crime».

Estavelmente consolidado na jurisprudência constitucional, o princípio da proibição do excesso constitui, tal como o princípio da proibição do arbítrio, uma «componente elementar da ideia de justiça» (Acórdão n.º 277/2016), que condiciona o exercício da discricionariedade legislativa e parametriza o controlo da validade do seu resultado, nomeadamente no âmbito das intervenções restritivas da liberdade individual.

Neste específico domínio, vem este Tribunal desde há muito reconhecendo que «a Constituição acolhe o princípio "da necessidade (para defesa dos direitos ou interesses constitucionalmente protegidos) ou da máxima restrição (compatível com aquela defesa) das penas e das medidas de segurança (artigo 18.º, n.ºs 2 e 3)", sendo certo que "por serem as sanções penais aquelas que, em geral, maiores sacrifícios impõem aos direitos fundamentais, devem ser evitadas, na existência e na medida, sempre que não seja certa a sua necessidade" (Acórdão n.º 59/85, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30.º vol., pp. 96 e 97)» (cf. Acórdão n.º 99/2002). Ou, por outras palavras, que «as sanções penais só se justificam quando forem necessárias, isto é, indispensáveis, tanto na sua existência, como na sua medida, à conservação e à paz da sociedade civil» (José de Sousa e Brito — A lei penal na Constituição, Estudos sobre a Constituição, volume 2.º, Lisboa, 1978, p. 218).

Todavia, conforme reconhecido também, o Tribunal, ao intervir enquanto legislador negativo, apenas se encontra habilitado a censurar, à luz do princípio da proporcionalidade das penas, as soluções legislativas que contenham sanções manifesta e claramente excessivas. Assim o é «“porque, se o Tribunal fosse além disso, estaria a julgar a bondade da própria solução legislativa, invadindo indevidamente a esfera do legislador que, aí, há de gozar de uma razoável liberdade de conformação” (Acórdãos n.ºs 574/95, 958/96, 329/97 e 108/99)» (cf. Maria João Antunes, “Direito Penal, Direito Processual Penal e Direito da Execução das Sanções Privativas da Liberdade e Jurisprudência Constitucional”, Revista Julgar, n.º 21, 2013, Coimbra Editora, p. 97).

No âmbito da tipificação das consequências jurídicas do crime e do estabelecimento dos respetivos pressupostos, o legislador goza, pois, de «uma ampla margem de liberdade de conformação», pelo que o juízo de censura constitucional apenas se justificará «quando a gravidade do sancionamento se mostre inequívoca, patente ou manifestamente excessiva» (Acórdãos n.º 13/95 e 99/2002). Sempre que não nos depararmos com uma situação de arbitrariedade ou excesso — ou, mais rigorosamente ainda, quando não seja manifesto que tal aconteça —, nem a pena abstratamente prevista no tipo legal de crime, nem os critérios que integram o regime previsto para a sua determinação em concreto, poderão ser censurados sub specie constitutionis, à luz do princípio da proporcionalidade.

13. O regime de determinação da medida concreta da pena de suspensão da execução da pena, consagrado no artigo 50.º do Código Penal, permite, vimo-lo já, que a duração do período de suspensão atinja, em qualquer situação, o prazo máximo de cinco anos fixado no n.º 5, podendo exceder, assim, quer o quantum da pena de prisão substituída, quer, no que para o presente caso diretamente releva, o limite máximo da pena abstrata da moldura penal prevista para o crime subjacente à condenação, seja qual for o numeral multiplicativo que se tome por referência (dobro, triplo, etc..).

Ao desvincular a duração do período de suspensão da pena máxima abstratamente cabida ao crime, permitindo que aquele possa atingir (ou até ultrapassar) o dobro desta, a solução legal impugnada nada tem, contudo, de arbitrário, excessivo ou censurável.

Pelo contrário: longe de poder «transforma[r] a suspensão da execução da pena em medida mais gravosa», desvirtuando, «no limite, [...] de efeito útil a sua execução», a possibilidade de fixar o período de suspensão entre um e cinco anos, independentemente de qual seja o limite máximo da moldura abstrata da pena prevista para o crime ¾ no caso presente, um ano de prisão (artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal) ¾ é condição da própria eficácia político-criminal da pena de suspensão da execução da pena no domínio da pequena criminalidade e, consequentemente, da possibilidade de a mesma constituir, também aí, uma verdadeira e efetiva alternativa à privação de liberdade, sobretudo nas hipóteses em que nenhuma das outras penas de substituição aplicáveis ao caso se revele apta a satisfazer, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição.

Em situações de condenação por crime cuja pena máxima de prisão não exceda um ano ¾ como sucede com o crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292.º do Código Penal, por cuja prática foi condenado o ora recorrente ¾, mas em que se registem acentuadas exigências de prevenção (geral, especial ou ambas), com facilidade se percebe que, para assegurar as finalidades da punição, a medida concreta da pena de substituição careça, as mais das vezes, de ultrapassar aquele limite máximo, fixando-se no seu dobro, triplo, etc., consoante os pressupostos em que assente o juízo de prognose formulado pelo tribunal.

No domínio da pequena criminalidade, a pena de suspensão da execução da pena necessita de um tempo quase sempre superior (ou até mesmo significativamente superior) tanto à medida concreta da pena aplicada a título principal, como ao máximo legalmente admissível para o tipo de crime em causa, de modo a cumprir a sua função de pena de substituição em sentido próprio. Isto é, a função de, em alternativa à pena de prisão em lugar da qual é aplicada e executada, assegurar a tutela retrospetiva do bem jurídico violado através da prática do ilícito-típico, dirigindo simultaneamente ao condenado um apelo suficientemente persuasivo no sentido da sua reconciliação com o dever-ser jurídico-penal.

Até pela validade das razões em que se baseia — que excluem, à evidência, qualquer indício de arbítrio ou de excesso —, o critério impugnado não merece, pois, qualquer censura à luz do princípio da proporcionalidade das penas, extraível do n.º 2 do artigo 18.º da Constituição. Os fundamentos em que se apoia, justificam, pelo contrário, o inequívoco respeito pela liberdade de conformação do legislador, que é aquele a quem a Constituição confia a tarefa da “definição dos crimes, penas, medidas de segurança e respetivos pressupostos” (cf. artigo 165º, n.º 1, alínea c)) (cf. Acórdão n.º 108/99).

Por tudo o que exposto fica, é de concluir que a norma prevista n.º 5 do artigo 50.º do Código Penal, na interpretação segundo a qual «a suspensão da execução da pena aplicada em concreto pode ser fixada em dobro do tempo máximo da pena abstrata prevista na moldura penal do tipo legal de crime objeto da condenação», é insuscetível de qualquer juízo positivo de inconstitucionalidade.

 

III – Decisão

Em face do exposto, decide-se:

a)                          Não conhecer do objeto do recurso, no segmento integrado pela interpretação da alínea c) do n.º 1 do artigo 51.º do Código Penal, em conjugação com o n.º 2 do artigo 50.º do mesmo diploma legal, segundo a qual é admissível ao tribunal subordinar o arguido a um dever de pagamento de uma quantia monetária muito elevada, suscetível de colocar em causa a sua vivência digna em comunidade;

b)                          Não julgar inconstitucional o n.º 5 do artigo 50.º do Código Penal, quando interpretado no sentido de que suspensão da execução da pena aplicada em concreto pode ser fixada em dobro do tempo máximo da pena abstrata prevista na moldura penal do tipo legal de crime objeto da condenação;

e, em consequência,

c)                           Negar provimento ao recurso.

Custas devidas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 UC´s, nos termos do n.º 1 do artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro, ponderados os fatores referidos no n.º 1 do respetivo artigo 9.º.

 

 

Lisboa, 21 de outubro de 2019 - Joana Fernandes Costa - Lino Rodrigues Ribeiro - Gonçalo Almeida Ribeiro - Maria José Rangel de Mesquita - João Pedro Caupers

 




 


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