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ACÓRDÃO Nº 100/2021

 

 

Processo n.º 140/2017

2.ª Secção

Relatora: Conselheira Mariana Canotilho

               (Conselheiro Fernando Ventura)

 

 

 

 

 

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional

 

 

 

 

 

I. Relatório

1. Nos presentes autos, vem o arguido A. interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, doravante LTC), de despacho proferido pelo Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ).

2. O presente recurso é incidente de processo criminal, em curso na Instância Local, Secção Criminal, de Vila do Conde, Comarca do Porto. Primeiramente absolvido do crime por que vinha acusado, no âmbito de recurso apresentado pelo Ministério Público, foi o arguido condenado pelo Tribunal da Relação do Porto pela prática de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203.º, n.º 1, e 204.º, n.º 2, alínea e), com referência ao artigo 202.º, todos do Código Penal, na pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com condição do pagamento de indemnização civil, no valor de €451,00, na qual foi igualmente condenado.

O arguido não se conformou e interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), impulso que não foi admitido pelo Tribunal da Relação do Porto. Deduzida reclamação, ao abrigo do artigo 405.º do CPP, por decisão proferida em 20 de janeiro de 2017, o Vice-Presidente do STJ preferiu a decisão aqui recorrida, indeferindo a reclamação e confirmando a inadmissibilidade do recurso com fundamento no disposto na alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, afastando a violação dos artigos 20.º e 32.º, n.º 1, da Constituição, suscitada pelo arguido.

3. No requerimento de interposição de recurso é peticionada a apreciação da constitucionalidade de norma «extraída das disposições conjugadas dos artigos 400.º, n.º 1, alínea e) e 432.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, na redacção introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, na interpretação segundo a qual não é admitido recurso de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa da liberdade ou pena de prisão não superior a cinco anos, cuja decisão em primeira instância tenha sido absolutória, por violação do disposto nos artigos 20.º e 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa».

4. Admitido o recurso pelo tribunal a quo e remetidos os autos, o relator determinou o prosseguimento para alegações, com a advertência para a possibilidade do não conhecimento do recurso na parte relativa à inadmissibilidade de recurso de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena de prisão não superior a cinco anos, quando a decisão em primeira instância tenha sido absolutória, por não corresponder à ratio decidendi da decisão recorrida.

5.  O recorrente apresentou alegações, das quais extraiu as seguintes conclusões:

 

«I. A decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça no âmbito da reclamação apresentada pelo aqui Recorrente, nos termos do art. 405.º do CPP, foi no sentido de que o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação não é admissível nos termos do art. 432, nº 1, alínea b) e 400.º, nº 1 alínea e) do CPP.

II. Com o presente recurso pretende o Recorrente que o Venerável Tribunal Constitucional aprecie a norma extraída das disposições conjugadas dos artigos 400.º, n. º 1, alínea e) e 432.º nº 1, alínea b) do Código de Processo Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro, na interpretação segundo a qual não é admitido recurso, de acórdãos proferidos em recurso, pelas relações, que apliquem penas não privativas da liberdade ou pena de prisão não inferior a cinco anos, cuja decisão em primeira instância tenha sido absolutória, por violação do disposto nos artigos 20.º e 32.º n.º 1, da Constituição da Republica Portuguesa.

III. Entende o Recorrente que a aplicação daquelas normas viola o direito ao recurso que se inscreve numa manifestação fundamental do direito de defesa, e que está previsto nos artigos 20.º e 32.º, n.º 1, da Constituição da Republica Portuguesa, bem como no art. 13.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

IV. Conforme resulta dos presentes autos, o Acórdão da Relação revogou a decisão de primeira instância, decisão esta que absolveu o Recorrente do crime que lhe era imputado, tendo aquela decisão sido alterada pelo Tribunal da Relação, condenando-o em pena de prisão de 3 anos, ainda que suspensa na sua execução, vendo-se o mesmo impedido, pela norma cuja inconstitucionalidade se pretende ver fixada, de interpor recurso, ficando-lhe vedado um direito constitucionalmente consagrado.

V. E não se diga, como resulta da decisão da reclamação aqui em análise que "... o direito ao recurso, garantido como direito de defesa no art. 32.º, nº 1 da Constituição, basta-se com um grau de recurso, ou segundo grau de jurisdição, já concretizado aquando do julgamento pela Relação…"

VI. Na situação aqui em crise, apesar de ter efetivamente existido dupla jurisdição da causa, nem por isso houve o exercício do direito ao recurso pelo arguido.

VII. Da decisão de primeira instância estava o Recorrente impedido de recorrer, por não ter interesse atendendo à decisão absolutória, impedimento que se mantém com a decisão de revogação da decisão de absolvição por decisão de condenação, nos termos dos artigos cuja inconstitucionalidade se discute no presente recurso.

VIII. Perante este quadro, terá de se concluir que no âmbito dos presentes autos, ao aqui Recorrente é vedado direito ao recurso, direito esse constitucionalmente consagrado.

IX. Em abstrato, as normas aqui em análise permitem que, um arguido que seja absolvido na primeira instância, por recurso interposto pela acusação, venha a ser condenado pela segunda instância, em pena de prisão efetiva de 4 anos, sem nunca ter podido exercer o direito ao recurso.

X. Admite-se o raciocínio do legislador quando limita a apreciação pelo Supremo Tribunal de Justiça às decisões em que se verifica a regra da "dupla conforme", contudo tal já não se poderá admitir quando as decisões proferidas não são consentâneas, ainda mais quando a uma decisão absolutória se sobrepõe uma decisão condenatória, com graves consequências na esfera jurídica do arguido, uma vez que lhe pode ser aplicada uma pena privativa da liberdade, sem que possa reagir à mesma.

XI. A Comissão dos Direitos Humanos já se pronunciou quanto à questão aqui em crise afirmando que a condenação de uma pessoa por um tribunal de segunda instância na sequência de uma absolvição em primeira instância, não pode, em caso algum, menosprezar o direito do arguido à revisão da sentença condenatória por um tribunal superior, uma vez que o artigo 14.º, n.º 5 do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos consagra não só o direito ao duplo grau de jurisdição, mas também o direito ao recurso e, nessa medida, impõe que sempre que o arguido seja condenado em sede de recurso possa, ainda assim, exercer o seu direito ao recurso de decisão condenatória, sob pena de violação do referido preceito.

XII. Por seu turno, a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem entendido que as restrições ao direito de recurso decorrentes das legislações nacionais dos Estados signatários devem perseguir um objetivo legítimo e não consubstanciarem atentados substanciais ao conteúdo do direito ao recurso, especialmente quando está em causa uma condenação proferida na sequência de uma absolvição na primeira instância, cfr. Ac. do TEDH de 13 de Fevereiro de 2001, caso Krombach v. França.

XIII Ora, Tribunal Constitucional tem, reiteradamente, manifestado o propósito de circunscrever o direito ao recurso à garantia do duplo grau de jurisdição, pelo que, mesmo quanto às decisões condenatórias e a decisões penais que afetem a liberdade ou outros direitos fundamentais do arguido, não existe um direito ao esgotamento de todas as instâncias de recurso previstas na lei ou a um terceiro grau de jurisdição que garanta a todos os arguidos a possibilidade de apreciação da condenação pelo STJ.

XIV. Em conformidade com esta linha jurisprudencial o Tribunal Constitucional afirmou, no acórdão n.º 189/2001, que "(...) mesmo admitindo-se o direito a um duplo grau de jurisdição como decorrência, no processo penal, da exigência constitucional das garantias de defesa, tem de aceitar-se que o legislador penal possa fixar um limite acima do qual não seja admissível um terceiro grau de jurisdição: ponto é que, com tal limitação se não atinja o núcleo essencial das garantias de defesa do arguido. Ora, (...) o conteúdo essencial das garantias de defesa do arguido consiste no direito a ver o seu caso examinado em via de recurso, mas não abrange já o direito a novo reexame de uma questão já reexaminada por uma instância superior".

XV. Desta opção jurisprudencial resulta ser constitucionalmente aceitável para o Tribunal Constitucional o estabelecimento da irrecorribilidade nos casos de dupla conforme condenatória, em que a Relação confirma a condenação da primeira instância, seja numa pena de multa, seja até certos limites de pena de prisão - cfr. Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 189/2001, n.º 1149/2003, n.º 102/2004, n.º 640/2005 e n.º 64/2006.

XVI. Assim, na mesma ordem de ideias, parece resultar como constitucionalmente conforme a admissibilidade de recurso quando seja proferido um acórdão condenatório pela Relação, na sequência de recurso contra uma sentença absolutória;

XVII. A limitação imposta pelos arts. 400.º, nº 1, al. e) do CPP e 432.º, nº 1, al. b) atinge de forma gravosa o núcleo essencial das garantias de defesa do arguido, uma vez que o mesmo se vê impedido de recorrer das decisões judiciais: da decisão de primeira instância - absolutória - não pode interpor recurso por não ter um interesse legítimo e da decisão preferida pelo Tribunal da Relação - que revoga a decisão de primeira instância e o condena - também não pode interpor recurso devido a uma limitação legal, apesar dessa decisão lhe ser desfavorável e poder implicar, inclusivamente, o cumprimento de uma pena de prisão efetiva!

XVIII. Parece-nos que não pode haver confusão entre o direito ao recurso com o duplo grau de jurisdição, isto porque enquanto o direito ao recurso tem como escopo a substituição da decisão desfavorável ao arguido por uma que lhe seja favorável, já a dupla jurisdição basta-se com a verificação de pressupostos puramente objetivos.

XIX. A norma que resulta das disposições conjugadas dos artigos 400.º n.º 1, alínea e) e 432.º, nº 1, alínea b) do Código de Processo Penal deverá ser considerada inconstitucional quando interpretada no sentido de não ser admitido recurso das decisões proferidas, em recurso, pelas relações, que apliquem pena de prisão não privativa da liberdade ou pena de prisão não superior a cinco anos quando tenha sido proferida decisão absolutória em primeira instância.

XX. E, não sendo conforme com a Constituição, deverá a norma que resulta das disposições conjugadas dos artigos 400.º n.º 1, alínea e) e 432.º, nº 1, alínea b) desaplicada e, nessa medida, permitir que o Recorrente, condenado pela primeira vez na Relação, em sede de recurso, possa recorrer, dessa decisão, para o Supremo Tribunal de Justiça.»

 

6. Por seu turno, o recorrido Ministério Público apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso. Entende que, não tendo sido aplicada pela Relação do Porto uma pena efetiva de prisão, deverá constituir objeto do recurso a questão de inconstitucionalidade da norma extraída das disposições conjugadas dos artigos 400.º, n.º 1, alínea e) e 432.º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, na interpretação segundo a qual não é admitido recurso, de acórdãos proferidos em recurso, pelas relações, que apliquem penas não privativas da liberdade, quanto a decisão em primeira instância tenha sido absolutória. E, quanto ao mérito, relevando a natureza da sanção imposta na decisão de que se pretende recorrer, «sempre diferente da situação do arguido condenado em pena de prisão efetiva», o julgamento negativo de inconstitucionalidade que recaiu sobre dimensões normativas estreitamente relacionadas com aquela que constituiu objeto do presente recurso, considera que a norma impugnada não viola o direito ao recurso, consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição. Conclui no sentido de que «a irrecorribilidade dos acórdãos da Relação proferidos em recurso e que apliquem uma pena não privativa de liberdade, como é a pena de prisão suspensa na sua execução, não é arbitrário, mostrando-se antes razoável, pois consegue um equilíbrio constitucionalmente aceitável entre o direito ao recurso por parte do arguido e a racionalização do acesso ao Supremo Tribunal de Justiça» e que «apreciando-se a gravidade do crime pela gravidade da pena aplicada, se ainda é possível dizer-se que uma pena de prisão efectiva é sempre grave independentemente do quantum, já não poderemos afirmar o mesmo em relação às penas não privativas de liberdade».

 

Na sequência da discussão do processo em sede de Secção, operou-se a mudança de Relator, nos termos do artigo 79.º-B, n.º 2, da LTC.

 

II. Fundamentação

 

Delimitação do objeto do recurso

7. Importa, em primeiro lugar, e na sequência da advertência formulada pelo relator originário, apreciar a questão relativa à ausência de identidade integral entre o enunciado normativo que o recorrente pretende sindicar e a ratio decidendi em que assenta a decisão recorrida.

Como tem sido repetidamente afirmado por este Tribunal, assumindo o recurso de constitucionalidade natureza instrumental, é pressuposto de admissibilidade do mesmo que o juízo que venha a recair sobre a norma posta a controlo comporte utilidade, repercutindo-se efetiva e necessariamente na reformulação da decisão recorrida. Mostra-se, então, necessário que a norma cuja apreciação se pretende tenha sido efetivamente aplicada, expressa ou implícita, no ato judicativo recorrido, constituindo fundamento jurídico determinante do seu dispositivo decisório, sem o qual o julgamento de questão processual ou da causa seria diverso (artigos 79.º-C e 80.º, n.º 2, da LTC).

No caso vertente, o recorrente inclui no enunciado da questão colocada as duas hipóteses normativas contidas na alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP (na redação do preceito introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, a única aqui pertinente): a aplicação, em recurso, por tribunal da relação, de pena não privativa da liberdade e, também, a aplicação, em recurso, por tribunal da relação, de pena de prisão não superior a cinco anos.

Todavia, resulta claro da decisão recorrida que apenas uma delas foi mobilizada como fundamento do juízo de inadmissibilidade do recurso para o STJ, a saber, a norma que se refere à aplicação de pena não privativa da liberdade, conceito legal a que foi subsumida a condenação penal do arguido, operada nos presentes autos pelo Tribunal da Relação do Porto, na pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução.

A esse propósito, reagindo à advertência que lhe foi dirigida, o recorrente não se pronunciou especificamente, referindo, porém, nas alegações a que o Tribunal da Relação o condenou em «pena de prisão de 3 anos, ainda que suspensa na sua execução» (conclusão IV) e a que «[e]m abstrato, as normas aqui em análise permitem que, um arguido que seja absolvido pela primeira instância, por recurso interposto pela acusação, venha a ser condenado pela segunda instância, em pena de prisão efetiva de 4 anos, sem nunca ter podido exercer o direito ao recurso» (conclusão IX.). Desse modo, o recorrente admite que a questão colocada comporta dois sentidos normativos distintos, sendo um deles – aquele relativo à condenação pela segunda instância em «prisão efetiva» - perspetivado apenas numa ótica abstrata, sem aplicação no caso concreto. Ora, como se disse, a cognição do Tribunal nesta sede é cingida aos critérios normativos efetivamente mobilizados pelo tribunal a quo (artigo 79-º-C da LTC), não podendo, como pretendido, pronunciar-se sobre normação sem préstimo para o julgamento do processo-base.

Assim, cumpre afastar o conhecimento do recurso, por inútil, na parte em que se questiona a conformidade constitucional de dimensão normativa não aplicada na decisão recorrida.

O objeto do recurso será, assim, circunscrito à norma extraída das disposições conjugadas dos artigos 400.º, n.º 1, alínea e), e 432.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código de Processo Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, segundo a qual não é admissível recurso de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que apliquem pena não privativa da liberdade, cuja decisão em primeira instância tenha sido absolutória.

 

Transcrevem-se os referidos dispositivos, para fins de clareza processual:

Artigo 400.º

Decisões que não admitem recurso

1 - Não é admissível recurso:

[…]

e) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que apliquem pena não privativa de liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos.

 

Artigo 432.º

Recursos para o Supremo Tribunal de Justiça

1 - Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:

[…]

b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º”.

 

Do mérito do recurso

8. O confronto de normas que disciplinam a admissibilidade do recurso para o STJ em caso de condenação em pena não privativa da liberdade pelos tribunais da relação, em sede de recurso interposto de decisão absolutória, com a garantia do direito ao recurso em processo penal, consagrada no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, corolário do princípio do acesso ao direito e aos tribunais com sede no artigo 20.º da Constituição, constitui matéria sobre a qual o Tribunal tem sido frequentemente chamado a pronunciar-se.

A posição tradicional da jurisprudência constitucional sobre a matéria tem afirmado que o direito ao recurso integra uma das mais relevantes dimensões garantísticas do estatuto constitucional do arguido em processo penal, sem que, todavia, decorra da norma normarum uma imposição, universal e absoluta, de acesso ao Supremo Tribunal de Justiça para reapreciação de declaração de culpabilidade ou das consequências jurídico-penais inovatoriamente decididas pelos tribunais da relação (i.e. em todos os casos em que não se verifique dupla conforme), atuando como segunda instância jurisdicional e em primeiro grau de grau de recurso. Por ser assim, assiste ao legislador democrático uma ampla liberdade de conformação na definição dos casos em que se justifica o acesso ao órgão cimeiro da hierarquia dos tribunais judiciais, contanto que assente em critérios que não padeçam de arbitrariedade, desrazoabilidade ou se mostrem desproporcionados.

É disso exemplo o decidido no Acórdão n.º 49/2003, no qual o Tribunal apreciou a conformidade constitucional da alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, na redação conferida pela Lei n.º 59/98, de 25 de agosto, na dimensão em que não admite o recurso para o STJ de decisão condenatória proferida pela relação, em recurso de decisão absolutória proferida pela 1.ª instância, e que imponha uma das espécies de penas não privativas da liberdade:  a pena de multa alternativa. Lê-se neste aresto o seguinte:

 

“Dir-se-á – como faz a recorrente – que, tendo havido uma decisão absolutória na primeira instância, o direito ao recurso implicaria a possibilidade de recorrer da primeira decisão condenatória: precisamente o acórdão da relação.

 

(...)

 

A verdade é que, estando cumprido o duplo grau de jurisdição, há fundamentos razoáveis para limitar a possibilidade de um triplo grau de jurisdição, mediante a atribuição de um direito de recorrer de decisões condenatórias.

Tais fundamentos são a intenção de limitar em termos razoáveis o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, evitando a sua eventual paralização, e a circunstância de os crimes em causa terem uma gravidade não acentuada. Esta segunda justificação, aliás, explica a diferença entre as alíneas e) e f) do nº 1 do artigo 400º do Código de Processo Penal; com efeito, se ao crime em causa for aplicável pena de prisão “não superior a oito anos” (alínea f)) – não sendo hipótese abrangida pela alínea e), naturalmente –, só não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão condenatório proferido pela Relação se este confirmar “decisão de 1ª instância”.

Não se pode, assim, considerar infringido o nº 1 do artigo 32º da Constituição pela norma que constitui o objecto do presente recurso, já que a apreciação do caso por dois tribunais de grau distinto tutela de forma suficiente as garantias de defesa constitucionalmente consagradas”.

 

Esse entendimento foi reafirmado, no domínio da mesma redação da alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP,  perante norma tendo como elemento a revogação de decisão absolutória e imposição de pena de multa, e a mesma orientação jurisprudencial foi reiterada no Acórdão n.º 487/2006 e, bem assim, nos Acórdãos n.ºs 255/2005, 682/2006, 353/2010 e 778/2013, que a consideraram inteiramente transponível para os casos em que a relação, revogando a decisão absolutória proferida em 1.ª instância, condena o arguido numa pena de substituição da prisão, designadamente numa pena de substituição de estrutura suspensiva, como é o caso da pena de suspensão de execução da prisão.

 

Contudo, o Tribunal Constitucional, nesta 2ª Secção, voltou a apreciar objeto semelhante àquele que ora consubstancia a questão de constitucionalidade do presente recurso, no Acórdão n.º 31/2020. No citado aresto, e ainda que com a manifestação, em voto de vencido, de entendimentos divergentes, julgou-se inconstitucional a norma resultante da conjugação dos artigos 432.º, n.º 1, alínea b) e 400.º, n.º 1, alínea e), ambos do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual não é admissível recurso, para o Supremo Tribunal de Justiça, de acórdãos proferidos em recurso, pelas Relações, que condenem os arguidos em pena de multa, ainda que as decisões recorridas da 1ª Instância sejam absolutórias. Ou seja, não apenas os dispositivos legais em que assenta a norma concreta objeto daquela decisão são integralmente coincidentes com os destes autos, como também a específica dimensão normativa então examinada tem repercussão direta na que ora se analisa. Efetivamente, e na medida em que a condenação em pena de multa é uma subespécie da condenação em pena não privativa da liberdade, parte significativa do esforço argumentativo e da ponderação de bens e direitos constitucionalmente relevantes é transponível para o caso em apreço.

Nestes termos, o teor do Acórdão n.º 31/2020 reveste indesmentível interesse para a solução a dar ao presente recurso, cuja norma-objeto se reconduz, conforme delimitado supra, no ponto 7, à inadmissibilidade dos recursos interpostos contra acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que apliquem pena não privativa da liberdade, cuja decisão em primeira instância tenha sido absolutória. Vejamos, por isso, os seus fundamentos básicos e a lógica inerente à sua fundamentação.

 

9. Após revisitar o longo percurso jurisprudencial nesta matéria – para o qual desde logo se remete (v.g., Acórdãos n.º 429/2016, 595/2018, 672/2017 e 128/2018) –, apontando pontos em comum e pontos de afastamento entre as posições sufragadas por este Tribunal Constitucional e a sua incidência ao caso concreto, o Acórdão n.º 31/2020 asseverou que o elemento fundamental respeitante à solução jusfundamental de relevo não se encontra na natureza da pena, mas sim na possibilidade de que o arguido dispõe para reagir contra a condenação – e as inerentes determinação da espécie e da medida da pena aplicada, que se entendeu deverem ser suscetíveis de sindicância, à luz do direito constitucional ao recurso, entendido como um direito subjetivo do arguido ao seu próprio recurso (ponto 11). Isto porque a condenação penal em si mesma, independentemente de ser (ou não) em pena de prisão, acarreta um peso e um potencial de afetação dos direitos fundamentais do condenado muito significativos. Neste sentido, lê-se no aresto em referência (ponto 10):

 

“De facto, a maioria das condenações em multa previstas na legislação penal assume a configuração de pena alternativa, o que não implica que a condenação - ainda que na pena menos gravosa possível-, não tenha, para o arguido, um peso e um potencial de afetação dos seus direitos fundamentais que mereçam uma tutela das garantias de defesa em sede de processo criminal, jusconstitucionalmente consagradas, mais intensa do que a desenhada pelo legislador. Em causa estará, em qualquer circunstância, uma ingerência por parte do Estado no âmbito jurídico-constitucionalmente tutelado de direitos fundamentais – senão o direito à liberdade, o direito à propriedade (no caso da pena de multa, que aqui analisamos, alternativa ou não) e, inelutavelmente, mesmo nos casos de dispensa de pena, os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade e ao bom nome e reputação, previstos no n.º 1 do artigo 26.º da CRP – operada através da condenação penal em si mesma, cuja gravidade não pode ignorar-se.

O juízo de ponderação a levar a cabo no caso concreto deve, pois, estabelecer se a limitação dos direitos de defesa do arguido, previstos no artigo 32.º, n.º 1, da CRP, e em particular do seu direito ao recurso – autonomizado da garantia de duplo grau de jurisdição – se considera justificada, nos casos de condenação em pena de multa, após decisão absolutória na 1.ª instância, pela necessidade de limitar e racionalizar o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, em nome da celeridade e segurança jurídicas, que constituem valores constitucionalmente tutelados; ou se, ainda que não possam deixar de sopesar-se tais valores, as consequências de uma condenação, e inerente determinação da pena e da respetiva medida concreta, na esfera jusfundamental do arguido, se afiguram de tal modo profundas que não pode deixar de reconhecer-se, nesta sede, a imperatividade do exercício do direito ao próprio recurso – um recurso em relação à decisão condenatória e seus elementos específicos, modelado pelo arguido, nos termos que tenha por adequados”.

 

Nesta sequência, o acórdão citado, sem deixar de lado as preocupações, de assento constitucional, com o prazo razoável dos processos e o tempo útil das decisões, e sem descurar, também, a legítima margem de atuação do legislador para encontrar fórmulas não excessivas que restrinjam as hipóteses de recurso e que evitem a sua manipulação, asseverou, em prol da tutela jurisdicional efetiva, na vertente do acesso às vias de recurso, o seguinte (ponto 12):

 

 “a constrição penal sobre direitos, liberdades e garantias só é válida quando aos indivíduos é permitido reagir perante um tribunal, quer contra uma acusação em curso, quer contra uma posterior decisão que afete a sua esfera jurídica. Neste sentido, e significativamente, nada na Constituição estabelece uma indexação interna, no direito ao recurso, nos termos da qual o valor deste direito tenha mais peso quando o conteúdo de uma pena seja quantitativa ou qualitativamente mais ou menos grave, segundo critérios atinentes à intensidade da interferência da condenação na esfera de direitos fundamentais de que cada pessoa é sujeito. Pelo contrário: o nível de proteção dos direitos fundamentais não comporta uma geometria variável que, em certos casos, faria a sua potência atingir a plenitude, mas, noutros, acarretaria uma proteção menos intensa. O standard de funcionamento do Estado, em todas as suas instâncias, deve ser de um nível de proteção elevado, de forma a efetivar as garantias que o sistema constitucional determina”.

 

 

10. Ou seja, nos termos desta nova orientação jurisprudencial, a lógica do direito constitucional ao recurso consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da CRP – autonomizado da garantia de duplo grau de jurisdição – não depende do tipo de pena aplicada. Por conseguinte, impõe-se que todas as decisões condenatórias ex novo - que incluem, naturalmente, a determinação da pena e/ou da respetiva medida concreta, no todo ou em parte - sejam passíveis de reapreciação por um tribunal superior àquele que se pronunciou sobre as dimensões essenciais e inovatórias da decisão condenatória. Não releva, portanto, nesta sede, o facto de se tratar de pena privativa de liberdade (efetiva ou suspensa) ou de pena não privativa de liberdade (de multa, admoestação ou outra). A existência de uma condenação nova que sobrevenha, nestes termos, de uma reapreciação judicial convoca o direito fundamental ao recurso, já que o arguido não poderia, de forma alguma, ter-se defendido em momento anterior à sua cominação. Neste aspeto, afirma-se no Acórdão n.º 31/2020:

“apenas um recurso contra a condenação proporciona a (re)apreciação – por um tribunal superior – da operação subsuntiva efetuada pelo tribunal a quo, de forma a que o arguido possa mobilizar a tutela jurisdicional para questionar os termos em que se decidiu a sua condenação penal. A compressão do direito fundamental ao recurso, definida pela dimensão normativa do artigo 400.º do CPP aqui em análise, consubstancia, nessas hipóteses, uma verdadeira supressão do direito, ilustrativa, aliás, de como o duplo grau de jurisdição, de facto, não assegura per se as garantias dos direitos de defesa previstos no artigo 32.º, nº. 1, CRP”.

Em síntese,

“mantida intacta a unicidade da causa penal, apenas os elementos que conduzam ao juízo de culpabilidade (reformador da decisão absolutória prévia) e consequente fixação da sanção, em harmonia com os artigos 368.º e 369.º do CPP, ao serem questionados pelo arguido recém-condenado, deverão ser objeto de reapreciação. Essa (primeira) reapreciação, que garante o respeito pelas garantias jurídico-constitucionalmente tuteladas de defesa do arguido, é assegurada, na prática, pelo direito ao recurso” (destacado no original).

 

11. No caso dos autos, como antes relatado, temos que o arguido foi absolvido em primeira instância e, a posteriori, o Tribunal Relação do Porto, intervindo em sede de recurso, condenou-o em pena de prisão (suspensa na sua execução), sob condição do pagamento de indemnização civil, no valor de €451,00, na qual foi igualmente condenado. Ao recorrer desta condenação ex novo, o recorrente esbarrou na inadmissibilidade legal da sua pretensão, em virtude do estatuído na alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal.

Ora, do ponto de vista abstrato-normativo, estamos, como acima se afirmou, perante situação semelhante à que deu origem ao Acórdão n.º 31/2020, ou seja, a revogação de uma decisão absolutória, que é substituída por uma condenação inovatória (em concreto na espécie e na medida concreta da pena), relativamente à qual o recorrente não pode defender-se. Entende-se, por isso, ser de reiterar o juízo alcançado naquele aresto, afirmando, uma vez mais, o argumento que constitui o seu principal pilar argumentativo: o de que o direito fundamental ao recurso é, em circunstâncias como as descritas, condição indispensável para um exercício efetivo das garantias de defesa em processo penal constitucionalmente consagradas.

Assim, adianta-se, desde já, que se entende ser, também aqui, de reconhecer que ao recorrente/arguido, que foi condenado, pela primeira vez pelo TRP, e não pôde ver reexaminada tal condenação, inédita, foi suprimido o direito ao recurso, consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da CRP, com sacrifício dos direitos, liberdades e garantias de que é titular, em especial o catálogo de meios de defesa. Essa restrição total, com prejuízo da possibilidade de concretização da tutela jurisdicional efetiva, afigura-se, pois, incompatível, na senda do acórdão trazido à colação, com os parâmetros perfilhados pela Constituição da República Portuguesa.

 

12. Não se ignora, naturalmente, a existência de argumentos relevantes no sentido de sustentar a posição contrária, em linha com a jurisprudência tradicional deste Tribunal Constitucional.

O primeiro desses argumentos faz equivaler a solução adotada no Acórdão n.º 31/2020 – e que, como já se anunciou, aqui se seguirá – a uma absolutização do direito ao recurso previsto no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição: tal direito ficaria, desta forma, imune a restrições legais e, consequentemente, excluído da possibilidade de ponderação com outros bens ou direitos constitucionais. Esta crítica tem um elemento de verdade, mas atribui à posição jurisprudencial que aqui faz vencimento um alcance que ela não tem.

Assim, a conceção acerca dos direitos fundamentais que subjaz a esta orientação tem em consideração que, ainda que a título excecional, há “situações em que a própria Constituição garante uma faculdade, uma garantia, uma pretensão ou uma faceta particular do direito, mas já a título definitivo, absoluto, ou seja, o legislador constituinte fez logo ali, ele mesmo, todas as ponderações que havia a fazer e decidiu-se intencionalmente pela garantia, a título definitivo, do interesse jusfundamental em questão” (cfr. J. Reis Novais, Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria, Coimbra Editora, 2006, pp. 51). Não se pretende, com isto, erigir o direito ao recurso (ou, porventura, outro direito fundamental), em quaisquer casos, num valor absoluto, imune a conformação por parte do legislador democrático ou, até, a restrições. Contudo, admite-se que, em circunstâncias bem delimitadas, as normas de direitos fundamentais possam ter a natureza de regras.

 Nestes termos, o direito constitucional ao recurso, em processo penal, comporta uma irredutível dimensão de proteção do cidadão, em face do exercício do poder punitivo estadual, que fica, efetivamente, fora da esfera de exercício, por parte do legislador democrático, do poder de concordância prática entre distintos bens axiologicamente relevantes do ponto de vista constitucional. No entanto, essa dimensão é muitíssimo reduzida: limita-se ao direito a recorrer de decisão condenatória inédita, que implica a determinação da pena e da sua medida concreta. Não estão, pois, aqui abrangidas todas as decisões em matéria penal; nem mesmo todas as decisões tomadas em sede de recurso em processo penal que sejam desfavoráveis ao arguido, como o aumento da pena originalmente fixada pelo tribunal de 1.ª instância, a alteração em sentido mais gravoso dos termos da sua execução, ou a substituição de pena não privativa da liberdade por pena de prisão. Em todas essas circunstâncias, que se situam além do núcleo irredutível do direito ao recurso, haverá amplo espaço para ponderações e para a mobilização do princípio da proporcionalidade como parâmetro de legitimidade constitucional.

 Por outro lado, tampouco se impede a modelação, por via legislativa, do direito ao recurso em processo penal, nos casos em que a Constituição impõe a sua existência. Ou seja, nada obsta a que o legislador desenhe mecanismos processuais específicos – e distintos – para diferentes situações, tendo em conta a necessidade de compaginação com outros bens constitucionalmente protegidos, como a segurança jurídica, a celeridade processual, a proteção das vítimas ou a organização do sistema judiciário.

A razão para esta conceção é simples: na valoração axiológica subjacente à configuração do direito ao recurso consagrado no n.º 1 do artigo 32.º da CRP que aqui se adota, assume fundamental importância a diferença existente entre o status jurídico de inocente (que persiste até ao momento da condenação, em concretização do princípio da presunção de inocência) e culpado. A transposição dessa fronteira, por ação de um órgão de soberania – no caso, um tribunal da relação – comporta uma alteração de significativa relevância para a pessoa do condenado, quer num plano interno (da relação de cada cidadão consigo mesmo, do desenvolvimento da sua identidade e personalidade, direitos fundamentais pessoais, nos termos do artigo 26.º, n.º 1, da CRP), como num plano externo (o da relação com os seus concidadãos e com o Estado, no qual releva o direito ao bom nome e reputação, também protegido pelo n.º 1 do artigo 26.º da CRP). Assim, é o grau de afetação de diversos direitos fundamentais por efeito da condenação penal em si mesma que justifica a afirmação da existência de um direito ao próprio recurso em caso de condenação, entendido como regra e decorrente do disposto no n.º 1 do artigo 32.º da Constituição; mas é, igualmente, a gravidade dessa situação que permite distingui-la de todas as outras, conduzindo a uma circunscrição clara – e muito restrita – do alcance desta dimensão nuclear do direito fundamental em causa, deixando todas as outras, nos termos acima explicados, no espaço da concordância prática. Ora, se quanto ao teor da condenação pode entender-se já ter tido o arguido possibilidade de se pronunciar, nas contra-alegações do recurso que origina a decisão do Tribunal da Relação, o mesmo não sucede quanto à determinação da pena e da sua medida concreta, que sempre constituirão elemento novo, relativamente ao qual impõe a Constituição que lhe seja dada oportunidade de defesa.

 

13. Esta conceção é, aliás, coerente com aquela que tem sido a posição do Tribunal Constitucional em matéria de direito ao recurso e/ou ao duplo grau de jurisdição em matéria de direitos fundamentais, plasmada nos Acórdãos n.º 40/08, 44/08 e 197/09. No primeiro dos acórdãos citados, o Tribunal afirma que “é sustentável que, sendo constitu­cionalmente assegurado o acesso aos tribunais contra quaisquer actos lesivos dos direitos dos cidadãos (maxime dos direitos, liberdades e garantias), sejam esses actos provenientes de par­ticulares ou de órgãos do Estado, forçoso é que se garanta o direito à impugnação judicial de actos dos tribunais (sejam eles decisões judiciais ou actuações materiais) que constituam a causa primeira e directa da afectação de tais direitos. Considera‑se, pois, que quando uma actuação de um tribunal, por si mesma, afecta, de forma directa, um direito fundamental de um cida­dão, mesmo fora da área penal, a este deve ser reconhecido o direito à apreciação judicial dessa situação. Mas quando a afectação do direito fundamental do cidadão teve ori­gem numa actuação da Admi­nistração ou de particulares e esta actuação já foi objecto de controlo jurisdicional, não é sempre constitucionalmente imposta uma reapreciação judicial dessa decisão”. Este mesmo critério decisório – nos termos do qual deverá haver recurso quando uma atuação de um tribunal, por si mesma, afeta, de forma direta, um direito fundamental de um cida­dão – foi reafirmado nos Acórdãos n.º 44/08 e n.º 197/09. Ora, a posição que agora se assume é corolário desta, tendo especial força no plano lógico-argumentativo por se encontrar dentro da esfera do processo penal, no âmbito do qual são mais relevantes os argumentos no sentido da existência de um direito ao recurso, autónomo em relação ao duplo grau de jurisdição. Sendo a condenação penal, como se explicou, fortemente lesiva de um conjunto de direitos fundamentais (e mesmo que no conjunto destes se não conte o direito à liberdade), não se vê como possa ser conforme ao ordenamento jurídico-constitucional a subsistência de uma tal decisão, sem possibilidade de reapreciação jurisdicional, pelo menos na parte relativa à determinação da pena e sua medida concreta, em relação à qual, pela própria natureza do processo, o arguido obviamente nada pôde argumentar junto do tribunal.

 

14. Outros argumentos, de ordem tanto prática como dogmática, são também aventados na defesa da não inconstitucionalidade da solução normativa questionada no presente processo.

Assim, no específico caso dos autos, poder-se-ia dizer que a restrição da possibilidade de recurso não seria suscetível de afetar o núcleo essencial das garantias de defesa do arguido, já que, enquanto pena de substituição (da prisão), a suspensão de execução da prisão constitui verdadeira pena autónoma – e não uma condenação condicional em prisão -, cuja teleologia político-criminal radica na assunção de um projeto de ressocialização em liberdade, que só será revertido se, na fase de execução da pena suspensa, o cumprimento da prisão se revelar indispensável à necessária tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias (Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, 1993, pp. 333 e segs.). A privação da liberdade do condenado, a vir a ter lugar, depende da verificação de pressupostos materiais específicos, nomeadamente, o incumprimento culposo das condições da suspensão, cujo reconhecimento exige um novo ato judicativo, relativamente ao qual é admissível o recurso (artigos 399.º e 495.º do CPP).  

Além disso, as limitações às hipóteses de recurso seriam igualmente justificadas com base numa ideia de racionalização, não arbitrária, do acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, pelo que não seriam aceitáveis quando se trate de uma condenação em pena grave, em particular, a prisão efetiva, mas já se poderia admitir no caso de penas não privativas de liberdade.

Tal tese não nos parece prosperar. Como se demonstrou, o direito ao recurso em processo penal não é uma garantia exclusiva do direito à liberdade, isto é, não se vislumbra, à luz dos comandos constitucionais, um direito ao recurso de tipo garantidor da liberdade e um outro direito ao recurso, mais restrito, que permita reagir a condenações que afetem somente direitos individuais distintos, como é o caso das condenações em pena suspensa ou pecuniária. Ao contrário, a Constituição prevê o direito ao recurso como garantia de defesa no processo criminal, sem qualquer diferenciação – porque o que se pretende é, antes de mais, a possibilidade de reação contra a condenação penal. Com efeito, este direito fundamental funciona como eixo central da dinâmica de proteção dos cidadãos, no nosso Estado de direito democrático, funcionando como um limite absoluto ao poder punitivo do Estado. Neste sentido, recordamos, novamente, as conclusões acolhidas pelo Acórdão n.º 31/2020, que mutatis mutandis devem ser transpostas para responder à dimensão atacada neste recurso. Do mesmo modo que se configurou a inconstitucionalidade quanto à irrecorribilidade da condenação inovatória, naquele caso em pena de multa, torna-se indeclinável reconhecer também a inconstitucionalidade da irrecorribilidade da condenação inovatória em pena não privativa da liberdade, seguindo a delimitação do objeto agora em causa.

O juízo de inconstitucionalidade acerca da impossibilidade de recurso na circunstância de condenações inovatórias não depende, pois, como destacado supra, da natureza da pena aplicada ex novo; o que, sim, releva é o direito de o arguido reagir, por seu próprio impulso, contra a mesma, pela primeira vez. É que o juízo condenatório comporta, inelutavelmente, uma afirmação pública de antijuridicidade e de censura pessoal, com ressonância negativa na consideração social do visado e a constrição da esfera jurídica do arguido e dos seus direitos fundamentais. Ora, se quanto à primeira questão – designadamente, acerca da alegada prática de atos que configuram crime de furto qualificado, que é confirmada pelo TRP – o arguido pôde aduzir argumentos nas suas contra-alegações de recurso, o mesmo não pode ser dito sobre a escolha da pena e da sua concreta medida – cuja dimensão restritiva de direitos fundamentais é inequívoca.

Com base no direito fundamental plasmado no artigo 32.º, n.º 1, da CRP, é, assim, incontornável admitir que se impõe, também para a dimensão normativa agora questionada, uma exigência de possibilidade real de objeção à condenação, mediante uma manifestação processual nova, através da qual o interessado possa rebater, de forma direta, a afetação negativa do seu status jusfundamental. Deste modo, reafirma-se que não é constitucionalmente admissível a restrição, na esfera dos direitos, liberdades e garantias - em que se insere a articulação do direito ao recurso com a mobilização de outros meios de defesa, para assegurar uma tutela jurisdicional efetiva -, operada, conforme consta dos autos, pela total supressão do direito ao recurso, no que respeita à escolha e determinação da medida da pena, que o artigo 400.º, n.º 1, alínea e) conjugado com o artigo 432.º, n.º 1, alínea b), do CPP, promove.

A impossibilidade de sindicar uma decisão condenatória ex novo em pena não privativa da liberdade (in concreto, uma pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com condição do pagamento de indemnização civil), após absolvição em 1.ª instância, não se compagina com a proteção das garantias de defesa em processo penal, em particular com o direito ao recurso, consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da CRP.

 

III. Decisão

 

Pelo exposto, decide-se:

 

a) Julgar inconstitucional a norma resultante da conjugação dos artigos 400.º, n.º 1, alínea e) e 432.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código de Processo Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, na interpretação segundo a qual não é admissível recurso, para o Supremo Tribunal de Justiça, de acórdãos proferidos em recurso, pelas Relações, que, inovatoriamente face à absolvição em 1.ª instância, condenem o arguido em pena de prisão não superior a cinco anos, suspensa na sua execução, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.

 

b) Julgar procedente o recurso interposto e ordenar a reforma da decisão recorrida, de acordo com o presente juízo de inconstitucionalidade.

 

Votam vencidos os Senhores Conselheiro Fernando Vaz Ventura e Pedro Machete, com declaração.

 

Sem custas.

 

 

Lisboa, 4 de fevereiro de 2021 - Mariana Canotilho - Pedro Machete - Fernando Vaz Ventura - Manuel da Costa Andrade

 

 

 

Declaração de voto

 

 

1. Vencido. Em linha com a posição que manifestei nas declarações de voto juntas aos Acórdãos n.ºs 429/2016 e 595/2018 quanto ao alcance do direito ao recurso em processo penal, previsto no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, que também fundou o voto discordante indicado no Acórdão n.º 31/2020 (desacompanhado de declaração, por impedimento de saúde), entendo que a solução normativa de irrecorribilidade em exame não padece de inconstitucionalidade.

2. A posição que fez vencimento retoma o entendimento acolhido no Acórdão n.º 31/2020 e, tal como este, diverge da orientação que vem sendo acolhida na matéria pela jurisprudência do Tribunal, de que são exemplo os Acórdãos n.ºs 255/2005, 487/2006, 682/2006, 353/2010, 778/2012, e, mais recentemente, os Acórdãos n.ºs 234/2020, 362/2020 e 369/2020, entendimento que continuo a sufragar.

3. Em primeiro lugar, a comunicação que se estabelece entre a modulação que o legislador ordinário conferiu ao exercício do contraditório pelo arguido no âmbito do recurso interposto para a relação por outro sujeito processual e a identificação de um núcleo irredutível do direito ao recurso consagrado no n.º 1 do artigo 32.º da Constituição, confunde os dois planos. Como observou a Conselheira Lúcia Amaral em declaração de voto aposta ao Acórdão n.º 412/2015, a eventual existência de um deficit de regulação de direito ordinário, de modo a permitir uma surpreendente, não antevista e por isso não contra-argumentada, imposição de sanção não privativa da liberdade, constitui problema que tem por objeto as normas que permitem um tal desequilíbrio, em prejuízo da defesa, e não propriamente as soluções normativas de irrecorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ).

Um tal problema não impõe, nem se supre ou resolve, com o acesso a um terceiro grau de jurisdição, atentas as limitações cognitivas que acarreta.

Atente-se nos casos de julgamento do recurso pelo tribunal supremo, relativamente ao qual, por definição, não pode existir recurso para órgão judicial distinto e superior, não sendo impossível que surja apenas nesse momento processual uma primeira compressão de um direito, liberdade e garantia do arguido, ou a modificação inovatória de anterior compressão. Basta pensar, no regime processual penal vigente, na hipótese normativa do n.º 2 do artigo 409.º do Código de Processo Penal (CPP), ou no recurso per saltum para o STJ de acórdãos finais proferidos pelo tribunal de júri ou do tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, nos termos admitidos pela alínea c) do n.º 1 do artigo 432.º do CPP. Ou, ainda, no plano do recurso para a relação, por via da impugnação ampla do julgamento em matéria de facto, cujo julgamento não pode ser reexaminado e substituído em recurso pelo STJ, circunscrito na sua cognição à matéria de direito, sem prejuízo do controlo (oficioso) compreendido na revista alargada, de acordo com os artigos 410.º e, nºs 2 e 3, e 434.º do CPP. Em todas essas situações, em que é manifesta a legitimação da solução normativa de irrecorribilidade, está o legislador vinculado a assegurar que o arguido tenha efetiva possibilidade de se defender, disciplinando o sistema de julgamento do recurso perante os tribunais da relação e do STJ em função das exigências do direito a um duplo grau de jurisdição e do processo equitativo.

Ainda que autónomo, o direito fundamental ao recurso não comporta em si mesmo todo o valor garantístico que o direito de defesa do arguido reclama, nem constitui condição suficiente para um exercício efetivo das garantias de defesa constitucionalmente consagradas. Por isso se estatui no texto constitucional que o direito ao recurso se inclui no direito fundamental de defesa, do qual constitui, por certo, uma das vertentes principais, mas não a única.

4. Por outro lado, a ponderação que suporta a aceitação da estabilização do juízo de culpabilidade por via do exercício do duplo grau de jurisdição, mesmo com reversão de decisão absolutória – o que representa uma evolução relativamente ao entendimento expresso no Acórdão n.º 31/2020 (cfr. ponto 13) -, vale por igualdade de razão perante a única vertente relativamente à qual se entende constitucionalmente imposto o acesso a um terceiro grau de jurisdição: a questão da determinação da pena ou medida de segurança, qualquer que seja a sua espécie e medida concreta.

Desde logo, não é exato que toda a decisão criminal que declare a culpabilidade do arguido comporte necessariamente a declaração de uma sanção penal. Pode suceder que o juízo condenatório seja acompanhado da verificação dos pressupostos da dispensa de pena (artigo 74.º do Código Penal), pronunciamento que o legislador processual penal qualifica, mormente para efeitos de recorribilidade, como decisão condenatória (artigo 375.º, n.º 3, do CPP). Nesses casos, como reconhece o Acórdão, a solução normativa que veda o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça não é merecedora de censura constitucional, à luz do direito fundamental ao recurso, porquanto, relativamente aos factos e crimes imputados de que foi absolvido, o arguido «pôde aduzir argumentos nas suas contra-alegações de recurso» (cfr. ponto 14) e desse modo influenciar autonomamente o sentido do julgamento do recurso, mesmo que, naturalmente, desconheça o exato teor do ato judicativo futuro. 

Ora, o mesmo pode ser dito quanto à determinação da pena. Também nessa vertente, a cognição do tribunal de recurso encontra-se balizada pelo pedido formulado no recurso, no quadro da delimitação temática do objeto do processo operada pela acusação (e pronúncia, quando proferida), estando o tribunal do julgamento em 1.ª instância, mesmo em caso de absolvição, vinculado a inscrever na decisão os pressupostos de facto relevantes para uma (eventual e futura) determinação da espécie e medida da pena (cfr., sobre a questão, o  Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do STJ, n.º 4/2016, proferido pelo STJ em 21 de janeiro de 2016, publicado no Diário da República, 1.ª Série, n.º 36). O sistema normativo vigente permite ao arguido confrontar todos os argumentos e questões especificadas nos fundamentos do recurso (artigos 412.º e 413.º do CPP); designadamente, em caso de impugnação da decisão proferida em matéria de facto, pode fazer valer a sua posição sobre os pontos de facto indicados como incorretamente julgados e as provas que se considera imporem decisão diversa (alíneas a) e b) do n.º 3 do artigo 412.º do CPP), bem como sobre as provas cuja renovação o recorrente pretende (alínea c) do mesmo número e preceito), em condições de igualdade de armas com os demais sujeitos processuais.

Por assim ser, a determinação concreta da pena não pode ser tida como questão nova, não antecipável pelo arguido absolvido, na posição de recorrido, uma vez que o objeto do recurso se encontra perfeitamente delimitado, balizando o conteúdo da pronúncia a proferir.

5. Assegurado que o arguido encontra na regulação do recurso para um segundo grau de jurisdição salvaguarda do essencial das suas garantias de defesa, mostra-se justificado e razoável que o legislador, prosseguindo o objetivo de racionalização do acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, de modo a assegurar que a decisão penal definitiva seja proferida em tempo côngruo, condição de realização efetiva do direito de acesso à justiça, com assento no artigo 20.º da Constituição - como sublinhado na declaração de voto subscrita pelo Conselheiro Pedro Machete, aposta no Acórdão n.º 31/2020, que acompanho por inteiro -, reserve a intervenção do tribunal supremo aos casos de maior merecimento penal, aferidos em função da intensidade acrescida da necessidade de proteção de bens jurídicos com respaldo constitucional que vai pressuposta na reação punitiva a partir de um certo limite.

Fernando Ventura

DECLARAÇÃO DE VOTO

 

Vencido, no essencial, pelas razões constantes da declaração junta pelo Conselheiro Fernando Ventura.

Pedro Machete

 




 


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