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TC > Jurisprudência > Acordãos > Acórdão 540/2022

 

ACÓRDÃO Nº 540/2022

 

Processo n.º 752/2022

1.ª Secção

Relator: Conselheiro José António Teles Pereira

 

 

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional

 

I – A Causa

 

1. A. (o ora recorrente) foi detido em execução de um Mandado de Detenção Europeu (doravante, MDE) emitido pelas autoridades do Reino Unido e executado nos termos da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto (que aprovou o Regime do MDE, doravante RMDE), e dos artigos 596.º e ss. do Acordo de Comércio e Cooperação entre a União Europeia e a Comunidade Europeia da Energia Atómica, por um lado, e o Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte, por outro (JO L 149 de 30/04/2021, pp. 14 e ss., doravante Acordo UE/RU). Realizada a audiência do detido no Tribunal da Relação de Lisboa (onde o processo correu com o número 1252/22.0YRLSB), o detido declarou consentir na execução do mandado e consequente entrega à autoridade judiciária do Reino Unido, não renunciando ao princípio da especialidade. Foi, então, proferida decisão no sentido da homologação do consentimento, sendo pedida a prestação de garantias às autoridades do Reino Unido, nos termos do artigo 604.º, alínea a), do Acordo UE/RU, à qual ficou condicionada a entrega.

 

1.1. Foram prestadas as garantias pelas autoridades do Reino Unido e, nessa sequência, foi determinada, por despacho, a execução do mandado.

 

1.1.1. O detido interpôs recurso das decisões referidas em 1. e 1.1., supra para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ). Das respetivas alegações consta, designadamente, o seguinte:

 

“[…]

26.º

Do Princípio da Recusa de Cooperação, a recusa de cooperação [alínea f) do n.º 1 do artigo 6.º da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto].

A Constituição da República Portuguesa proíbe a extradição «por crimes a que corresponda, segundo o direito do Estado requisitante, pena de morte ou pena de que resulte lesão irreversível da

integridade física» [artigo 33.º, n.º 6, da Constituição da República Portuguesa], proibição essa que fundamenta, de acordo com a lei ordinária, a recusa de cooperação [alínea f) do n.º 1 do artigo 6.º da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto].

27.º

No caso concreto, três dos crimes por que foram pedidos pelo Ministério Público a extradição são puníveis, em abstrato, em face do Código Penal do Reino Unido com pena de prisão perpétua.

28.º

O Reino Unido na sua garantia generalista não assegurou, caso fosse aplicado pelos tribunais uma pena superior, que esta seria reduzida a 25 anos de prisão, o que inviabiliza a cooperação e a extradição nos moldes propostos

29.º

A validade e a suficiência e do poder vinculativo das garantias prestadas pelo Estado requerente ao Estado Português, quanto à insusceptibilidade do extraditando vir a ser condenado numa pena superior a 25 anos de prisão será uma prerrogativa de imperativo Constitucional.

[…]

36.º

Na lei constitucional (artigo 33.º, n.º 4), só é admitida a extradição por crimes a que corresponda, segundo o direito do Estado requisitante, pena ou medida de segurança privativa ou restritiva da liberdade com carácter perpétuo ou de duração indefinida, se, nesse domínio, o Estado requisitante for parte de convenção internacional a que Portugal esteja vinculado e oferecer garantias de que tal pena ou medida de segurança não será aplicada ou executada (exigência Constitucional).

37.º

No caso concreto nenhuma garantia foi dada pelo Reino Unido, limitou-se ‘num brevíssimo resumo’ a elencar algumas regras da Prisão Perpétua não dando quaisquer garantias que tal pena ou medida de segurança não será aplicada ou executada.

38.º

No caso vertido caso o recorrente seja extraditado o Tribunal do reino Unido pode aplicar a ‘Prisão Perpétua’ com aquele tipo de acordo.

39.º

O Acordo celebrado entre o Reino Unido e a União Europeia e a garantia dada (ver neste processo) viola a lei constitucional Portuguesa numa forma geral e não casuística.

40.º

Encontra-se violado o artigo da lei Constitucional artigo 33.º, n.º 4, nos termos expostos. Artigo 280.º alínea b) da CRP (Fiscalização concreta da constitucionalidade e da legalidade) Cabe Recurso b) Que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. Artigo 72.º Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, Legitimidade para recorrer, 1 – Podem recorrer para o Tribunal Constitucional: b) As pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a decisão foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso.

41.º

A Constituição proíbe expressamente sanções de duração vitalícia, ilimitada ou indefinida. Ao impor um limite máximo de 25 anos na sentença condenatória, a Constituição República Portuguesa não perfilha a solução da lei Penal Britânica, estando assim em contradição.

[…]

[O processo e/ou a decisão está] em desacordo com a Lei fundamental viola a as exigências da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais.

[…]

Ou seja, no regime do Reino Unido um recluso pode estar detido em reclusão sempre para toda a vida, mesmo [com] as referidas revisões cumprindo uma só pena ate á morte. Daí o regime ser de prisão perpétua e não outro.

Ainda mais se porventura for libertado permanecerá ligado ao regime da prisão perpétua ate ao fim da vida.

Este regime vai contra a nossa lei constitucional que não admite que uma pessoa seja condenada a pena superior a 25 anos e viola o artigo 33.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa.

Entendemos que a garantia prestada pelo Reino Unido não serve e discordamos do Tribunal a quo, aplicando-se aqui a recusa de cooperação [alínea f) do n.º 1 do artigo 6.º da Lei n.º 144/99], de 31 de agosto e viola o artigo o artigo 33.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa havendo assim uma inconstitucionalidade.

[…]” (sublinhados acrescentados).

 

1.1.2. O recurso foi admitido apenas relativamente à decisão de homologação do consentimento do detido.

 

1.1.3. No STJ, o recurso foi rejeitado, por acórdão de 01/06/2022, com os fundamentos seguintes:

 

“[…]

Como supra se deixou transcrito, no caso foi proferida decisão homologatória do consentimento que, segundo o artigo 20.º, n.º 3, da Lei n.º 65/03, de 23 de agosto, equivale, para todos os efeitos, à decisão final do processo de execução do mandado de execução europeu.

E, nos termos do n.º 1 do citado normativo o consentimento na entrega à autoridade judiciária de emissão prestado pelo detido é irrevogável e tem como consequência a renúncia ao processo de execução do mandado de detenção europeu.

Ou seja, das citadas disposições legais, resulta que:

Só há recurso da decisão final. O detido ao dar o consentimento renunciou ao processo. A decisão de homologação equivale à decisão final, mas no caso não é decisão final porque houve renúncia ao processo.

Por seu turno do artigo 26.º da Lei n.º 65/03, de 23 de agosto, resulta que a decisão judicial de homologação do consentimento é definitiva.

O detido prestou o consentimento declarado expressamente com inteira consciência do seu significado e de livre vontade, como resulta do respetivo auto de audição do mesmo, motivo pelo qual foi homologado o consentimento, para todos os efeitos legais de acordo com o disposto nos artigos 20.º e 26.º da Lei 65/2003,

Foi prestada a garantia que foi solicitada pelo Tribunal da Relação de Lisboa ao Estado emissor, prevista no artigo 604.º, alínea a), do Acordo entre a União Europeia e o Reino Unido, e estando já homologado o consentimento livre do detido na entrega à autoridade judiciária de emissão do mandado, foi determinada que esta fosse executada no mais curto prazo possível.

Neste sentido, não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

[…]”.

 

1.1.4. Desta decisão pretendeu o detido reclamar, nos termos do artigo 405.º do CPP, para o Presidente do STJ.

 

1.1.5. A reclamação foi indeferida, por inadmissibilidade legal do meio processual.

 

1.2. O detido interpôs, então, recurso do acórdão do STJ de 01/06/2022 para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC – recurso que deu origem aos presentes autos –, tendo em vista um juízo de inconstitucionalidade [A/] da norma contida nos artigos 20.º, n.º 3, e 26.º do RMDE, interpretados no sentido segundo o qual “[…] o consentimento na entrega à autoridade judiciária de emissão prestado pelo detido é irrevogável e tem como consequência a renúncia ao processo de execução do mandado de detenção europeu”, e [B/] da norma contida no artigo 24.º do RMDE, interpretado no sentido segundo o qual “[…] o detido que deu o seu consentimento à extradição não pode recorrer do despacho que homologou o consentimento, para entrega à autoridade emissora do mandado de detenção e – após validação da garantia prestada – determinou a execução da sua entrega”.

 

1.2.1. O recurso foi admitido no STJ, com efeito suspensivo.

 

1.2.2. No Tribunal Constitucional, o relator proferiu despacho com o seguinte teor:

 

“[…]

1. Nos presentes autos, o recorrente tem em vista juízos de inconstitucionalidade relativamente [A/] à norma contida nos artigos 20.º, n.º 3, e 26.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto, interpretados no sentido segundo o qual ‘o consentimento na entrega à autoridade judiciária de emissão prestado pelo detido é irrevogável e tem como consequência a renúncia ao processo de execução do mandado de detenção europeu’, e [B/] à norma contida no artigo 24.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto, interpretado no sentido segundo o qual ‘o detido que deu o seu consentimento à extradição não pode recorrer do despacho que homologou o consentimento, para entrega à autoridade emissora do mandado de detenção e – após validação da garantia prestada – determinou a execução da sua entrega’.

2. O recurso visa o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01/06/2022 e foi apresentado no dia 18/06/2022. A notificação da decisão ao recorrente foi remetida em 01/06/2022 (quarta-feira), considerando-se o recorrente dela notificado no dia 06/06/2022 (segunda-feira). O prazo de 10 dias para interposição do recurso para o Tribunal Constitucional iniciou-se, pois, no dia 07/06/2022 e completou-se no dia 17/06/2022 (sexta-feira), visto que o dia 16/06/2022 foi feriado.

Na contagem deste prazo, ignorou-se a processualmente anómala interposição de uma reclamação nos termos do artigo 405.º do CPP, em 07/06/2022, uma vez que, tratando-se de ato ostensivamente inadmissível, não teve por efeito interromper a contagem do prazo previsto no artigo 75.º, n.º 1, da LTC – como se refere no Acórdão n.º 581/2017, ‘o Tribunal Constitucional, em jurisprudência consolidada, entende que sempre que se lança mão de incidentes pós-decisórios anómalos ou meios de impugnação processual legalmente inexistentes, tais vicissitudes não adiam o início da contagem do prazo para recorrer constitucionalmente, contando-se o mesmo nos termos gerais (i.e. a partir da notificação da decisão recorrida) (a título meramente exemplificativo, vejam-se os Acórdãos n.os 45/2012 e 604/2012)’.

O requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional foi apresentado no dia 18/06/2022 (sábado), ou seja, para lá do prazo previsto no artigo 75.º, n.º 1, da LTC, podendo, no entanto, ser praticado com a multa devida pela prática do prazo no primeiro dia útil posterior ao prazo perentório.

Adverte-se o recorrente que, face ao disposto no artigo 69.º da LTC, a multa em causa é devida nos termos do artigo 139.º, n.º 5, alínea a), e n.º 6, do Código de Processo Civil, e não nos termos do artigo 107.º-A, alínea a), do Código de Processo Penal.

Uma vez que o presente recurso emerge de processo no qual se impõem especiais exigências de celeridade, não se determinará a prévia notificação do recorrente, pela secretaria, para liquidação da multa. Excecionalmente, atentas as sobreditas exigências, o recorrente poderá pagar a multa e juntar o respetivo comprovativo com a apresentação das alegações, ficando a admissão do recurso e, consequentemente, das alegações condicionada ao referido pagamento e sua comprovação.

3. Sem prejuízo de melhor ponderação pelo Pleno da Secção, afigura-se que o recorrente se poderá considerar-se dispensado do ónus da prévia suscitação da questão de inconstitucionalidade relativamente à questão indicada em 1.-[B/] supra, por se tratar de interpretação normativa com a qual não poderia contar (cfr., designadamente, o artigo 26.º, n.os 1 e 3, da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto). Poderão as partes, se assim o entenderem, discutir a questão em sede de alegações.

4. O prazo de alegações e contra-alegações é reduzido a 10 dias, nos termos dos artigos 43.º, n.º 3, e 79.º, n.º 2, da LTC.

5. O prazo para apresentação de alegações e contra-alegações não se suspenderá durante o mês de agosto (artigo 43.º, n.º 4, da LTC).

6. Perspetiva-se como possível o não conhecimento do objeto do recurso relativamente à questão indicada em 1.-[A/] supra, seja por falta de suscitação perante o STJ nos termos do artigo 72.º, n.º 2, da LTC, seja por falta de autonomia como critério normativo de decisão, de tal possibilidade se dando conhecimento às partes para, querendo, sobre ela se pronunciarem em sede de alegações (artigo 3.º, n.º 3, do CPC, ex vi artigo 69.º da LTC), sem prejuízo de o recorrente – caso se conforme com tal possibilidade e apenas nesse caso – poder desde logo restringir as alegações, em conformidade, ao objeto proposto.

7. Procedendo a uma correção meramente formal do enunciado da questão indicada em “1.-[B/]” supra, respeitando-se o seu sentido substancial, deve entender-se que a norma em causa é extraída do n.º 1 do artigo 24.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto.

8. Notifique as partes para alegações, com cópia do presente despacho, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 79.º da LTC, com redução do prazo supra determinada em “4.”.

[…]”.

 

1.2.3. O recorrente pagou a multa a que se refere o ponto 2. do despacho do relator e ofereceu alegações, que culminaram nas seguintes conclusões:

 

“[…]

I

As Autoridades inglesas não prestaram qualquer garantia concreta de que ao Recorrente não seria aplicada a pena de prisão perpétua.

II

O Recorrente concorda com o douto despacho do Senhor Juiz Conselheiro Relator onde considerou que ‘o recorrente poderá considerar-se dispensado do ónus da prévia suscitação da questão de inconstitucionalidade relativamente à questão indicada em 1.-[B/] supra, por se tratar de interpretação normativa com a qual não poderia contar – cfr. Designadamente, o artigo 26.º, n.º l e 3, da Lei n.º 65/2003. de 23 de agosto).’

III

O Recorrente não poderia em face do quadro normativo e constitucional vigente admitir, ainda que hipoteticamente, que o Supremo Tribunal de Justiça, por Acórdão, viria a rejeitar o Recurso apresentado pelo recorrente por entender que o mesmo era legalmente inadmissível.

IV

Acresce, ainda, que o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, admitiu o Recurso apresentado, motivo pelo qual o Recorrente não teve qualquer possibilidade, ainda que hipotética de suscitar a referida inconstitucionalidade

V

Em face do que acima se encontra exposto é forçoso concluir que o Recorrente "...não poderia razoavelmente antecipar o concreto problema de constitucionalidade, designadamente por ser confrontada com uma concreta interpretação normativa que se apresenta objetivamente como imprevisível e inesperada.

VI

Assim, deve admitir-se, porque apresentada em tempo, a inconstitucionalidade suscitada: n.º 1 do artigo 24.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto, interpretado no sentido segundo o qual "[...] o detido que deu o seu consentimento à extradição não pode recorrer do despacho que homologou o consentimento, para entrega à autoridade emissora do mandado de detenção e – após validação da garantia prestada – determinou a execução da sua entrega."

VII

Entende o Recorrente que também em relação à inconstitucionalidade suscitada relativamente à questão indicada em 1-[A/] o Recorrente não poderia contar com a mesma.

VIII

Foi o Supremo Tribunal de Justiça no seu Acórdão a considerar que:

"O detido ao dar o consentimento renunciou ao processo. A decisão de homologação equivale à decisão final, mas no caso não é decisão final porque houve renúncia ao processo."

IX

O entendimento sufragado pelo Supremo Tribunal de Justiça é manifestamente anómalo e imprevisível.

X

Assim, deve admitir-se, porque apresentada em tempo a inconstitucionalidade relativamente á questão indicada em l.-[A/] a norma contida nos artigos 20.º, n.º 3, e 26.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto, interpretado no sentido segundo o qual "[...] o consentimento na entrega à autoridade judiciária de emissão prestado peio detido é irrevogável e tem como consequência a renúncia ao processo de execução do mandado de detenção europeu"

XI

Do "Auto de Audiência de Detido" não consta o sentido e teor de quaisquer declarações do Arguido mas, apenas e só, a conclusão de que o mesmo consentiu na execução do mandado e consequente entrega à autoridade judiciária do Reino Unido que o emitiu, o que fez de forma voluntária e com plena consciência das suas consequências.

XII

Esta omissão torna-se mais notória quando, da compulsão dos autos anteriormente a essa diligência, também não consta o cumprimento do disposto no art.º 17.º, n.ºs 1 e 4 da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto, nomeadamente que, quando foi detido, tivesse sido informado (...) "da possibilidade de consentir ou não consentir em ser entregue à autoridade judiciária de emissão", sendo, conforme prescreve o n.º 4 desta disposição legal, "correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 57.ºa 67.º do Código de Processo Penal, devendo ser entregue à pessoa procurada, quando for detida, documento de que constem os direitos referidos nos números anteriores."

XIII

O “consentimento” na execução do mandado, para ter relevância, tem que ser livre, informado e autodeterminado e, acima de tudo, esclarecido, ponderado e refletido, com vista à manifestação da sua vontade, de forma inequívoca. De igual forma, o detido também não foi informado sobre a irrevogabilidade do “consentimento”, assim como de que, consentindo na entrega, renunciava ao procedimento de execução do mandado de detenção europeu.

XIV

Antes do presente processo transitar em julgado, e antes do mandado ser cumprido, o Requerente apresentou nos autos Declaração Revogatória do Consentimento apresentado.

XV

Se o consentimento é admitido ab initio, porque razão, uma vez (validamente expresso e prestado, não poderia ser ulteriormente revogado?

A admitir-se que o consentimento não é suscetível de retratação admite-se igualmente que o declarante deixa de ser livre na manifestação da sua vontade.

XVI

Quando o consentimento prestado não foi prévia e devidamente informado, como aconteceu no caso dos autos, vedar, impedir ou negar a retratação, significa que deixa de ter coerência lógica a ideia da liberdade do consentimento, porquanto quem presta um consentimento de forma informada e esclarecida evidentemente que não o vem, posteriormente, revogar.

XVII

O legislador a propósito de diversas matérias, nomeadamente, de natureza civil, definiu prazos de reflexão, ou seja, um período de tempo em que a declaração pode ser revogada; contudo, numa matéria tão relevante como a liberdade de pessoa suspeita da prática de crimes puníveis com prisão perpétua, não estabeleceu qualquer possibilidade de revogação do consentimento, inclusive no caso de não lhe ter sido explicado e entendido o alcance e consequências.

XVIII

São inconstitucionais os artigos 20.º, n.º 3 e 26.º da Lei n.º 65/03, de 23 de agosto, quando interpretados no sentido que: "O consentimento na entrega à autoridade judiciária de emissão prestado pelo detido é irrevogável e tem como consequência a renúncia ao processo de execução do mandado de detenção europeu."

Tais interpretações violam os artigos 2.º, 18.º, 20.º, 29.º, 32.º da Constituição da República Portuguesa, bem como o Artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

XIX

A norma contida no n.º l do artigo 24.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto, interpretado no sentido segundo o qual "[...] o detido que deu o seu consentimento à extradição não pode recorrer do despacho que homologou o consentimento, para entrega à autoridade emissora do mandado de detenção e – após validação da garantia prestada – determinou a execução da sua entrega." É inconstitucional por violação dos artigos 2.º, 18.º, 20.º, 29.º, 32.º da Constituição da República Portuguesa, bem como o Artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

XX

Viola, igualmente, os princípios da Segurança e Certeza Jurídicas e bem assim os princípios da equidade, "due Processo of law", e da igualdade de armas entre a defesa e a Acusação, todas as disposições previstas nos artigos 20.º, n.º 4 e artigo 29.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa;

XXI

O recorrente tem o direito de apesar de no auto de "Audiência de Detido" ter transmitido que aceitava a extradição, em sede de recurso, demonstrar a ilegalidade desse consentimento bem como das garantias prestadas pelo Estado Emitente.

XXII

Nos termos do artigo 33.º, n.º 4 da C.R.P.: "Só é admitida a extradição por crimes a que corresponda, segundo o direito do Estado requisitante, pena ou medida de segurança privativa ou restritiva da Uberdade com cará ter perpétuo ou de duração indefinida, se, nesse domínio, o Estado requisitante for parte de Convenção internacional a que Portugal esteja vinculado e oferecer garantias de que tal pena ou medida de segurança não será aplicada ou executada." (Negrito, Itálico e Sublinhado Nossos)

XXIII

Confrontando a informação prestada pela Autoridades Inglesas com o normativo constitucional previsto no artigo 33.º, n.º 4, facilmente constatamos que o mesmo não transmite ao Estado Português nenhuma garantia de que o Recorrente não será condenado a prisão perpétua.

XXIV

As autoridades Inglesas não prestaram qualquer garantia de que o Recorrente não será condenado a prisão perpétua.

XXV

Quando o Tribunal da Relação de Lisboa se conforma com a espécie de garantia prestada pelas Autoridades inglesas e determina que seja executada a extradição, o Recorrente tem o Direito de não concordar com essa decisão, recorrendo da mesma.

XXVI

A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem sido constante e uniforme na afirmação da equiparação do processo de extradição ao processo penal, quer do ponto de vista formal, quer substancial, na medida em que, implicando uma restrição à liberdade pessoal do extraditando, o escrutínio do juiz constitucional move-se num quadro constitucional especialmente garantístico, proporcionando a plena aplicação do regime jurídico dos direitos fundamentais, em especial, dos direitos, liberdades e garantias, para tutela dos direitos dos extraditandos contra possíveis arbítrios (princípio da igualdade, artigo 13.º, n.º 2, da CRP) e restrições desproporcionadas (princípio da proporcionalidade, artigo 18.º, n.º 2, da CRP) (cfr. Relatório do Tribunal Constitucional de Portugal, de novembro de 2012, acima citado, pág. 19)

XXVII

Constitui jurisprudência assente o entendimento de que o direito ao recurso, enquanto garantia do processo penal, obriga o legislador ordinário a que consagre a recorribilidade de decisões condenatórias e de atos judicias que, durante o processo, tenham como efeito a privação ou a restrição da liberdade ou de outros direitos fundamentais do arguido, admitindo-se, por isso, uma margem de conformação e de liberdade do legislador ordinário, que poderá determinar a irrecorribilidade de decisões que não contendam diretamente com o conteúdo essencial das garantias de defesa e essa limitação se justifique por outros valores relevantes em processo penal (cfr. Acórdão n.º 610/96).

XXVIII

Para assegurar a efetividade do direito ao recurso imposto pela Constituição, ao legislador ordinário incumbe a obrigação de prever a faculdade legal de o arguido recorrer, não só da sentença condenatória, mas também de quaisquer atos judiciais que, no decurso do processo, tenham como efeito a privação ou a restrição da liberdade ou de quaisquer outros direitos fundamentais.

XXIX

Mesmo que o Recorrente tivesse prestado um Consentimento consciente, esclarecido e informado, que não prestou, ao abrigo do artigo 33.º, n.º 4 da C.R.P. a extradição apenas poderia ocorrer se fossem prestadas garantias de que nunca seria aplicada prisão perpétua ao recorrente.

XXX

Garantindo a Constituição a judicialização do procedimento e da decisão de extradição, está subjacente o direito do Recorrente de contestar os fundamentos da extradição, nomeadamente, as garantias prestadas, o que pode fazer através do recurso.

XXXI

Seguindo o entendimento do STJ a partir do momento em que o Recorrente deu o seu consentimento pode inclusive ser sujeito a prisão perpetua, ou até pena de morte, porquanto não pode discutir Judicialmente as garantias dadas sobre essa matéria.

XXXII

No caso Sub Júdice estamos perante uma decisão do Tribunal da Relação de Lisboa que tem como efeito a privação ou restrição da liberdade e de outros direitos fundamentais constitucionalmente consagrados.

XXXIII

A norma contida no n.º l do artigo 24.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto, interpretado no sentido segundo o qual ‘[...] o detido que deu o seu consentimento à extradição não pode recorrer do despacho que homologou o consentimento, para entrega à autoridade emissora do mandado de detenção e – após validação da garantia prestada – determinou a execução da sua entrega.’

É inconstitucional por violação dos artigos 2.º, 18.º, 20.º, 29.º, 32.º da Constituição da República Portuguesa, bem como o Artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

Termos em que se requer a V. Exas que se dignem admitir o presente Recurso e julgando-o procedente declarem:

a) a norma contida nos artigos 20.º, n.º 3, e 26.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto, inconstitucional quando interpretada no sentido segundo o qual ‘[...] o consentimento na entrega à autoridade judiciária de emissão prestado pelo detido é irrevogável e tem como consequência a renúncia ao processo de execução do mandado de detenção europeu’;

b) a norma contida no n.º1 do artigo 24.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto, inconstitucional quando interpretada no sentido segundo o qual ‘[...] o detido que deu o seu consentimento à extradição não pode recorrer do despacho que homologou o consentimento, para entrega à autoridade emissora do mandado de detenção e – após validação da garantia prestada – determinou a execução da sua entrega.’

[…]”.

 

1.2.4. O recorrido apresentou contra-alegações, assim concluindo:

 

“[…]

1. No presente recurso, interposto por A., foi suscitada a apreciação das seguintes questões de constitucionalidade, a saber:

a) a inconstitucionalidade das normas ínsitas nos artigos 20.º, n.º 3 e 26.º da Lei n.º 65/03, de 23 de agosto quando interpretada no sentido que: ‘O consentimento na entrega à autoridade judiciária de emissão prestado pelo detido é irrevogável e tem como consequência a renúncia ao processo de execução do mandado de detenção europeu.’

b) a inconstitucionalidade do artigo 24.º da Lei n.º 65/03, de 23 de agosto, quando interpretada no sentido que: ‘O detido que deu o seu consentimento à extradição não pode recorrer do despacho que homologou o consentimento, para entrega à autoridade emissora do mandado de detenção e, – após validação da garantia prestada, – determinou a execução da sua entrega."

2. O parâmetro constitucional cuja violação é invocada são os artigos 2.º, 18.º, 20.º, 29.º, 32.º da Constituição da República Portuguesa, bem como o Artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, (…) e os princípios da Segurança e Certeza Jurídicas e bem assim os princípios da equidade, ‘due process of law’, e da igualdade de armas entre a defesa e a Acusação, todas as disposições previstas nos artigos 20.º, n.º 4, e artigo 29.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa.

3. Este recurso foi, assim, interposto com fundamento no artº 70.º n.º 1 al.  b) da LTC.

4. Sobre tal requerimento de interposição de recurso incidiu o douto despacho de fls.306 a 308, datado de 18 de julho de 2022, no qual, e para além do mais, é referido (sublinhados nossos):

Perspetiva-se como possível o não conhecimento do objeto do recurso relativamente à questão indicada em 1.-[A/] supra, seja por falta de suscitação perante o STJ nos termos do artigo 72º, n.º2, da LTC, seja por falta de autonomia como critério normativo de decisão, de tal possibilidade se dando conhecimento às partes para, querendo, sobre ela se pronunciarem sede de alegações (artigo 3.º, n.º 3, do CPC, ex vi artigo 69º da LTC) (…).

5. Respondendo a esta parte do despacho, começou o ora recorrente por alegar que deverá estar dispensado do ónus da suscitação prévia uma vez que o entendimento sufragado pelo Supremo Tribunal de Justiça é manifestamente anómalo e imprevisível e que o Recorrente não poderia antecipar a decisão que o Supremo Tribunal de Justiça viria a proferir, a qual muito o surpreendeu.

6. Não tem razão.

No recurso de constitucionalidade previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, como é o caso, exige-se, para além do mais, a prévia suscitação da questão de inconstitucionalidade normativa “durante o processo” e “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer” (n.º 2 do artigo 72.º da LTC).

7. No caso, o recorrente limita-se a afirmar que a decisão é inesperada, não demonstrando minimamente porque chegou a essa conclusão.

8. Na verdade, a decisão nada teve de inesperada, bastando ler o que a reclamante afirmou nas alegações de recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça. E esse seria, efetivamente, o momento apropriado para a suscitação.

9. Ora, nem no texto nem nas conclusões, a questão de inconstitucionalidade foi aí levantada.

10. No caso, nem sequer se trata de uma hipótese interpretativa, mas sim da letra da norma em questão.

11. O art.20.º n.º 1 da Lei do MDE é claro: o consentimento na entrega à autoridade prestado pelo detido é irrevogável.

12. Sendo esta a letra da norma, não se compreende como é que uma decisão em que se considera que o consentimento é irrevogável pode alguma vez se considerada uma decisão surpresa.

13. Acresce que, tal como também mencionado no douto despacho proferido pelo Exmo. Senhor Conselheiro relator, a questão de o consentimento para a extradição ser ou não revogável, carece de autonomia como critério normativo da decisão.

14. A decisão recorrida entendeu que a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa era irrecorrível não porque o consentimento dado pelo extraditando é irrevogável, mas sim porque tal consentimento implica a renúncia ao processo de extradição. É certo que na decisão é feita referência à irrevogabilidade de tal consentimento. Porém, a decisão não se baseia em tal irrevogabilidade, mas sim na consequência do consentimento. Atrevemo-nos, até, a afirmar que a decisão do STJ teria sido a mesma ainda que considerasse que o consentimento era reversível.

15.Assim, e por não se encontrarem reunidos os pressupostos a que alude o art.72º n.º 2 da LTC, não deverá ser conhecida a invocada inconstitucionalidade.

16. Quanto à invocada inconstitucionalidade do artigo 24º n.º 1 da Lei n.º65/03, de 23 de agosto, quando interpretado no sentido que o detido que deu o seu consentimento à extradição não pode recorrer do despacho que homologou o consentimento, para entrega à autoridade emissora do mandado de detenção e, – após validação da garantia prestada, – determinou a execução da sua entrega.

17. O recorrente foi detido ao abrigo dos arts. 596.º a 632º do Acordo de Comércio e Cooperação celebrado entre a União Europeia e o Reino Unido da Grã-Bretanha, publicado no Jornal Oficial da União Europeia L 149, em vigor desde 1 de maio de 2021.

18. Tendo em vista a aplicação interna de tal Acordo, a Lei n.º87/2021, de 15 de dezembro, introduziu alterações à Lei n.º144/99, de 3 de agosto, sendo-lhe aditados os arts.78º-A a 78º-G.

19. É, assim, o art.78º-B da Lei 144/99, de 31 de agosto que determina que aos procedimentos de emissão e aos processos de execução dos mandados de detenção decorrentes da aplicação do sobredito acordo, é aplicável, com as devidas adaptações, o regime do mandado de detenção europeu, aprovado pela Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto.

20. É por esta via que se chega, assim, à aplicação, ao caso, do art.24º n.º 1 da Lei 65/2003 (MDE), aqui em análise.

21. Entendeu o tribunal recorrido, interpretando tal norma em conjugação com o artigo 20.º, n.º 1 e n.º 3, da Lei n.º 65/03, de 23 de agosto, que dispõe que o consentimento na entrega à autoridade judiciária de emissão prestado pelo detido é irrevogável e tem como consequência a renúncia ao processo de execução do mandado de detenção europeu, que:

– só há recurso da decisão final;

– o detido ao dar o consentimento renunciou ao processo;

– a decisão de homologação equivale à decisão final;

– mas no caso não é decisão final porque houve renúncia ao processo.

22. Para, assim, concluir, o douto tribunal recorrido, que, no caso, não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

23. A Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto (Lei do MDE) transpôs para a ordem jurídica interna a Decisão-Quadro n.º202/584/JAI de 13 de junho, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados-Membros da União Europeia.

24. Analisada tal DQ, verifica-se que a mesma não se debruça sobre as circunstâncias e critérios em que é possível recurso de uma decisão de entrega, tendo tal regulação sido deixada aos Estados-Membros aquando da sua transposição.

25. Assim, não se mostra possível proceder a uma interpretação da Lei do MDE à luz do texto da Decisão-Quadro que aquela visa transpor, à qual estaríamos obrigados por força do chamado efeito indireto das decisões-quadro, estabelecido e desenvolvido pela jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia.

26. De igual forma, não encontramos qualquer referência às circunstâncias e critérios em que é possível recurso de uma decisão de entrega nos arts. 596.º a 632º do Acordo de Comércio e Cooperação celebrado entre a União Europeia e o Reino Unido da Grã-Bretanha.

27. O mesmo se diga no que se refere às consequências processuais, nomeadamente para efeitos de recurso da decisão final, do consentimento prestado pelo detido.

28. A Decisão-Quadro, no seu art. 13.º, limita-se a prever a possibilidade de o detido dar o seu consentimento à entrega, a garantir que os Estados-Membros asseguram que o consentimento é dado voluntariamente e com plena consciência do ato, a estabelecer que o consentimento é, em princípio, irrevogável, e, no art. 17.º, a estabelecer um prazo de 10 dias para a decisão definitiva sobre a execução do mandado.

29. De igual forma, não encontramos no Acordo de Comércio e Cooperação celebrado entre a União Europeia e o Reino Unido da Grã-Bretanha qualquer norma relativa às consequências processuais do dito consentimento – cfr. arts.611º e 615º n.º2.

30. Assim, quer o art.20.º n.º 1, quer o art.24º n.º 1 da Lei do MDE foram introduzidos por decisão exclusiva do legislador português aquando da transposição da Decisão-Quadro n.º 202/584/JAI de 13 de junho

31. E tiveram como inspiração a lei nacional base de toda a cooperação internacional em matéria penal: a Lei n.º 144/99, de 31 de agosto.

32. Efetivamente, esta lei já previa, no seu art.40.º, e continua a prever, a possibilidade de, nos processos de extradição, o detido consentir nesta e que tal implica a renuncia ao processo de extradição:

33. De igual forma, também aquela lei n.º 144/99 prevê no seu art. 49.º n.º 3 que, no processo de extradição só cabe recurso da decisão final.

34. Entendeu o Tribunal a quo, se bem compreendemos, que não havia lugar a recurso, nos presentes autos, porque o detido ao dar o consentimento renunciou ao processo, a decisão de homologação equivale à decisão final, mas no caso não é decisão final porque houve renúncia ao processo.

35. Desde já se diga que não se concorda com o entendimento de que não houve uma decisão final porque o detido renunciou ao processo.

36. O art. 20.º n.º 3 da Lei do MDE é claro ao afirmar que a decisão judicial de homologação do consentimento equivale, para todos os efeitos, à decisão final do processo de execução do mandado de detenção europeu.

37. Porém, concorda-se, na íntegra com a conclusão retirada que ao dar o consentimento à entrega/extradição o detido renunciou ao processo.

38. E nessa renúncia ao processo não poderá deixar de se incluir a renúncia ao recurso.

39. Aliás, o art. 40.º n.º 1 da Lei 144/99 é claro, no que se refere aos processos de extradição, ao concretizar que o detido renuncia ao processo de extradição regulado nos artigos 51.º a 62.º, renunciando, assim, também à possibilidade de recurso que lhe é conferida no art.58º.

40. Afigura-se que, pelos motivos referidos supra no que se refere «à história» do art. 20.º n.º1 da Lei do MDE, que a sua interpretação no que se refere ao segmento tem como consequência a renúncia ao processo de execução do mandado de detenção europeu, não poderá deixar de ter em conta o art. 40.º n.º1 da Lei n.º144/99.

41. Resta apurar se esta interpretação de que o consentimento do detido para a entrega implica a renúncia ao recurso da decisão de entrega é inconstitucional.

42. Desde já, e adiantando, afigura-se-nos que não.

43. Entende o recorrente que tal interpretação é inconstitucional por violação dos artigos 2.º, 18.º, 20.º, 29.º, 32.º da Constituição da República Portuguesa, bem como o Artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

44. Porém, à exceção do direito ao recurso, contemplado no art.32.º n.º 1 da Constituição, não desenvolve por que forma ocorrem as alegadas violações, sendo que, quando o faz, afigura-se-nos que está, por um lado, a insurgir-se quanto ao facto de o Tribunal a quo, se ter conformado com as garantias prestadas pelo Reino Unido, e por outro, a invocar que o consentimento dado pelo detido quanto à entrega devia ser revogável.

45. Ora, como referido supra, não é essa a questão em análise neste momento.

46. Em anotação a este artigo 32.º n.º 1 da Constituição, referem Germano Marques da Silva e Henrique Salinas,  que dado que o direito ao recurso é uma garantia estabelecida pela Constituição, não parece que o arguido possa renunciar antecipadamente ao seu exercício futuro e por isso se nos afiguram de muito duvidosa constitucionalidade as regras processuais que permitam que, por renúncia antecipada ou por vício processual não arguido atempadamente, o arguido fique privado do direito de recorrer de qualquer decisão.

47. Não se discorda deste entendimento. Porém, afigura-se-nos que há que distinguir entre situações de renúncia de recurso antecipado de uma decisão que o arguido não sabe qual vai ser, das situações, como a dos autos, em que o arguido já sabe qual vai ser a decisão e é a decisão por si desejada.

48. Toda a finalidade do MDE (ou da extradição) é a entrega do detido ao Estado requerente – Art.1º da Lei do MDE. A lei permite que o detido concorde, desde logo, com essa entrega. Nesse caso, não existe processo de execução e é proferida logo decisão. É essa a vontade do arguido, livremente manifestada, esclarecida e assistido por defensor.

49. Sendo a decisão final a pretendida, desejada e solicitada pelo detido – a entrega ao Estado requerente – não se vislumbra que garantia de defesa constitucionalmente consagrada fica prejudicada ao entender-se que ao renunciar ao processo está igualmente, o arguido, a renunciar a um eventual recurso.

50. Aliás, afigura-se que sempre se colocaria a questão do interesse em agir uma vez que o arguido estaria a recorrer de uma decisão que lhe é favorável. O arguido estaria a recorrer da decisão que quis que fosse proferida: a da sua entrega ao Estado requerente.

51. Decidindo o Tribunal executar a entrega ao Estado requerente, tal como desejado pelo detido e tal como o detido sabia que iria ocorrer, não se pode afirmar que a impossibilidade de recurso desta decisão configura um encurtamento inadmissível, um prejuízo insuportável e injustificável das possibilidades de defesa do arguido.

52. Face a todo o exposto, entendemos que o artigo 24.º n.º1 da Lei n.º65/03, de 23 de agosto, quando interpretado no sentido que o detido que deu o seu consentimento à extradição não pode recorrer do despacho que homologou o consentimento, para entrega à autoridade emissora do mandado de detenção e, – após validação da garantia prestada, – determinou a execução da sua entrega, não padece das constitucionalidades assacadas, nem de quaisquer outras.

[…]”.

 

Cumpre apreciar e decidir o recurso.

 

II – Fundamentação

 

2. O recorrente indicou como objeto do recurso [A/] a norma contida nos artigos 20.º, n.º 3, e 26.º do RMDE, interpretados no sentido segundo o qual “[…] o consentimento na entrega à autoridade judiciária de emissão prestado pelo detido é irrevogável e tem como consequência a renúncia ao processo de execução do mandado de detenção europeu”, e [B/] a norma contida no artigo 24.º do RMDE, interpretado no sentido segundo o qual “[…] o detido que deu o seu consentimento à extradição não pode recorrer do despacho que homologou o consentimento, para entrega à autoridade emissora do mandado de detenção e – após validação da garantia prestada – determinou a execução da sua entrega”.

Mostra-se oportuno ter presentes os seguintes preceitos do RMDE:

 

Artigo 13.º

Garantias a fornecer pelo Estado-Membro de emissão em casos especiais

1 – A execução do mandado de detenção europeu só terá lugar se o Estado-Membro de emissão prestar uma das seguintes garantias:

a) Quando a infração que motiva a emissão do mandado de detenção europeu for punível com pena ou medida de segurança privativas da liberdade com carácter perpétuo, só será proferida decisão de entrega se estiver prevista no sistema jurídico do Estado-Membro de emissão uma revisão da pena aplicada, a pedido ou o mais tardar no prazo de 20 anos, ou a aplicação das medidas de clemência a que a pessoa procurada tenha direito nos termos do direito ou da prática do Estado-Membro de emissão, com vista a que tal pena ou medida não seja executada;

b) Quando a pessoa procurada para efeitos de procedimento penal for nacional ou residente no Estado-Membro de execução, a decisão de entrega pode ficar sujeita à condição de que a pessoa procurada, após ter sido ouvida, seja devolvida ao Estado-Membro de execução para nele cumprir a pena ou a medida de segurança privativas da liberdade a que foi condenada no Estado-Membro de emissão.

2 – À situação prevista na alínea b) do número anterior é correspondentemente aplicável o disposto na parte final do n.º 4 do artigo 12.º.

Artigo 18.º

Audição do detido

1 – A entidade que proceder à detenção comunica-a de imediato, pela via mais expedita e que permita o registo por escrito, ao Ministério Público junto do tribunal da relação competente.

2 – A pessoa procurada é apresentada ao Ministério Público, para audição pessoal, imediatamente ou no mais curto prazo possível.

3 – O juiz relator procede à audição do detido, no prazo máximo de quarenta e oito horas após a detenção, e decide sobre a validade e manutenção desta, podendo aplicar-lhe medida de coação prevista no Código de Processo Penal.

4 – O juiz relator nomeia previamente defensor ao detido, se não tiver advogado constituído.

5 – O juiz relator procede à identificação do detido, elucidando-o sobre a existência e o conteúdo do mandado de detenção europeu e sobre o direito de se opor à execução do mandado ou de consentir nela e os termos em que o pode fazer, bem como sobre a faculdade de renunciar ao benefício da regra da especialidade.

6 – O consentimento na entrega à autoridade judiciária de emissão prestado pelo detido, o teor da informação que lhe foi transmitida sobre a regra da especialidade e a declaração do detido são exarados em auto, assinado pela pessoa procurada e pelo seu defensor ou advogado constituído.

Artigo 19.º

Audição do detido pelo tribunal de 1.ª instância

1 – Sempre que o detido não possa, por qualquer razão, ser ouvido pelo tribunal da relação é apresentado ao Ministério Público junto do tribunal de 1.ª instância da sede do tribunal competente.

2 – No caso previsto no número anterior, a audição tem lugar exclusivamente para efeitos de validação e manutenção da detenção ou de aplicação de medida de coação prevista no Código de Processo Penal pelo juiz do tribunal de 1.ª instância, devendo o Ministério Público tomar as providências adequadas à apresentação do detido no primeiro dia útil subsequente.

Artigo 20.º

Execução do mandado de detenção com consentimento da pessoa procurada

1 – O consentimento na entrega à autoridade judiciária de emissão prestado pelo detido é irrevogável e tem como consequência a renúncia ao processo de execução do mandado de detenção europeu.

2 – O juiz deve certificar-se de que o consentimento a que se refere o número anterior foi prestado voluntariamente e com plena consciência das suas consequências.

3 – A decisão judicial de homologação do consentimento equivale, para todos os efeitos, à decisão final do processo de execução do mandado de detenção europeu.

Artigo 24.º

Recurso

1 – Só é admissível recurso:

a) Da decisão que mantiver a detenção ou a substituir por medida de coação;

b) Da decisão final sobre a execução do mandado de detenção europeu.

2 – O prazo para a interposição do recurso é de cinco dias e conta-se a partir da notificação da decisão ou, tratando-se de decisão oral reproduzida em ata, a partir da data em que tiver sido proferida.

3 – O requerimento de interposição do recurso é sempre motivado, sob pena de não admissão do recurso. Se o recurso for interposto por declaração na ata, a motivação pode ser apresentada no prazo de cinco dias, contado da data da interposição.

4 – O requerimento de interposição do recurso e a motivação são notificados ao sujeito processual afetado pelo recurso, para que possa responder, no prazo de cinco dias.

5 – O julgamento dos recursos previstos neste artigo é da competência das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça.

6 – O processo é remetido ao Supremo Tribunal de Justiça imediatamente após a junção da resposta ou findo o prazo para a sua apresentação.

Artigo 26.º

Prazos e regras relativos à decisão sobre a execução do mandado de detenção europeu

1 – Se a pessoa procurada consentir na sua entrega ao Estado membro de emissão, a decisão definitiva sobre a execução do mandado de detenção europeu deve ser tomada no prazo de 10 dias a contar da data em que foi prestado o consentimento.

2 – Nos outros casos a decisão definitiva sobre a execução do mandado de detenção europeu deve ser tomada no prazo de 60 dias após a detenção da pessoa procurada.

3 – Quando o mandado de detenção europeu não puder ser executado nos prazos previstos nos n.os 1 ou 2, nomeadamente por ter sido interposto recurso da decisão proferida, a autoridade judiciária de emissão será informada do facto e das suas razões, podendo os prazos ser prorrogados por mais 30 dias.

4 – Serão asseguradas as condições materiais necessárias para a entrega efetiva da pessoa procurada enquanto não for tomada uma decisão definitiva sobre a execução do mandado de detenção europeu.

5 – Sempre que, devido a circunstâncias excecionais, não for possível cumprir os prazos fixados no presente artigo, a Procuradoria-Geral da República informará a EUROJUST do facto e das suas razões.

 

2.1. O relator, perspetivando como possível o não conhecimento do objeto do recurso relativamente à questão indicada em 2.-[A/], por falta de suscitação perante o STJ nos termos do artigo 72.º, n.º 2, da LTC e por falta de autonomia como critério normativo de decisão, deu conhecimento às partes de tal possibilidade para, querendo, sobre ela se pronunciarem em sede de alegações (artigo 3.º, n.º 3, do CPC, ex vi artigo 69.º da LTC), sem prejuízo de o recorrente – caso se conforme com tal possibilidade e apenas nesse caso – poder desde logo restringir as alegações, em conformidade, ao objeto proposto.

O recorrente não se conformou com o referido enquadramento e sustenta que deve ser conhecido também aquela primeira questão. Vejamos, pois, se lhe assiste razão, tendo presentes os dois fundamentos assinalados pelo relator: falta de suscitação da questão perante o STJ nos termos do artigo 72.º, n.º 2, da LTC e falta de autonomia como critério normativo de decisão.

O enunciado do recorrente reproduz, quase ipsis verbis, o texto de um preceito legal – o do artigo 20.º, n.º 1, RMDE. Como tal, não pode afirmar-se, como faz o recorrente, que a interpretação do STJ, quanto a essa norma, é imprevisível. Assim, não há razões para considerar o recorrente dispensado do ónus previsto no artigo 72.º, n.º 2, da LTC.

De todo o modo, e decisivamente, aquele primeiro enunciado não tem autonomia como critério de decisão. O acórdão recorrido pronunciou-se no sentido da irrecorribilidade – a norma que corresponde ao fundamento jurídico desta decisão só pode dizer respeito à recorribilidade. O STJ entendeu que a decisão em causa é irrecorrível (essa é a norma). Uma das razões que invocou para isso prende-se com a circunstância de o consentimento na entrega à autoridade judiciária de emissão prestado pelo detido ser irrevogável e ter como consequência a renúncia ao processo de execução do mandado de detenção europeu. Só que essa razão não é, em si, a norma do caso: é um antecedente lógico na argumentação do STJ. Só poderia integrar-se, de algum modo, na norma do caso se renunciar ao processo significasse renunciar ao recurso, o que, desde logo, contraria a própria argumentação do recorrente.

Para assim concluir basta considerar o seguinte: se o Tribunal aceitasse também o primeiro enunciado como norma do caso e julgasse inconstitucional essa norma, mas não inconstitucional a segunda, então o STJ não teria de modificar a decisão que proferiu, porque a regra da irrecorribilidade ficaria incólume. Assim se demonstra que só uma eventual decisão de inconstitucionalidade da norma correspondente ao segundo enunciado terá utilidade e assim é porque só essa norma corresponde à ratio decidendi.

Em face do exposto, não se conhecerá do objeto do recurso relativamente à primeira questão do respetivo requerimento de interposição, indicada em 2.-[A/], supra.

 

2.2. Já quanto à segunda questão não se prefiguram obstáculos ao respetivo conhecimento.

Por um lado, ela constitui ratio decidendi, como se viu no item anterior.

Por outro lado, não era exigível ao recorrente que antecipasse a irrecorribilidade da decisão, desde logo porque a letra da lei sugere a possibilidade de recurso da decisão final no caso de a pessoa procurada consentir na sua entrega ao Estado-Membro de emissão (cfr. artigo 26.º, n.º 3, do RMDE, quando lido em conjugação com o n.º 1 do mesmo artigo), assim dando a entender aos seus destinatários que a renúncia ao processo de execução não implica a renúncia ao recurso da decisão final (entendimento que, de resto, foi também o do Tribunal da Relação, ao admitir o recurso). Considera-se, pois, o recorrente dispensado do ónus previsto no artigo 72.º, n.º 2, da LTC, quanto à questão indicada em 2.-[B/], supra.

Não obstante, considera-se – na linha do que foi perspetivado pelo relator – que o preceito relevante do qual a norma se extrai se pode reduzir ao n.º 1 do artigo 24.º do RMDE, corrigindo-se, formalmente, o objeto do recurso em conformidade (não devendo onerar-se o recorrente com qualquer consequência de uma eventual imprecisão, uma vez que a sua aplicação na decisão recorrida não foi clara e expressa).

Por fim, cumpre assinalar que se poderia considerar, de algum modo, duvidoso que o recurso tenha por objeto o “[…] despacho que homologou o consentimento, para entrega à autoridade emissora do mandado de detenção e – após validação da garantia prestada – determinou a execução da sua entrega”, uma vez que houve dois momentos decisórios, e não apenas um (cfr. itens 1. e 1.1., supra). No entanto, foi a própria decisão recorrida que assim enquadrou o objeto do recurso apreciado: “[…] no caso em apreço o recorrente vem interpor recurso do Despacho que homologou o consentimento por ele prestado, para entrega á autoridade emissora do mandado de detenção e, – após validação da Garantia prestada, – determinou a execução da sua entrega – art. 24.º, n.º 1, al. b) – da Lei 65/2003 de 23/8” (cfr. segmento inicial da fundamentação do acórdão recorrido).

Cabe apenas corrigir a referência à “extradição”, que decorre de lapso evidente, substituindo-a por “entrega”, mais consentânea com o regime legal aplicável.

Constitui, pois, objeto do recurso a norma contida no artigo 24.º, n.º 1, da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto, interpretado no sentido segundo o qual o detido que deu o seu consentimento à entrega não pode recorrer do despacho que homologou o consentimento, para entrega à autoridade emissora do mandado de detenção e – após validação da garantia prestada – determinou a execução da sua entrega.

 

2.3. O Reino Unido (Estado de emissão) não é, atualmente, Estado-Membro da União Europeia. Não obstante, o pedido observa os termos dos artigos e 596.º e ss. do Acordo UE/RU, pelo que, face ao disposto nos artigos 78.º-A e 78.º-B da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto, o RMDE é aplicável, com as devidas adaptações, ao processo de execução.

 

2.4. A discussão, nos presentes autos, prende-se, como vimos, com as garantias do detido em execução de um MDE, nos termos do RMDE. Considerando a evidente afinidade entre o RMDE e o regime da extradição, recordar-se-á, antes de mais, a jurisprudência constitucional relativa às garantias do visado no âmbito do segundo.

No Acórdão n.º 45/84, o Tribunal pronunciou-se no sentido da inconstitucionalidade, por violação do princípio do contraditório previsto no artigo 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa (CRP), a norma constante do n.º 2 do artigo 33.º do Decreto-Lei n.º 437/75, de 16 de agosto, no segmento em que define a ordem de intervenção das partes para alegar, com os seguintes fundamentos:

 

“[…]

5 – Esquematicamente traçada a marcha do procedimento extraditivo na sua fase judicial (fase doravante identificada pela expressão «processo de extradição»), importa agora determinar a sua natureza. É que só se lhe for reconhecido o carácter de processo criminal, será de pôr a questão da violação do princípio do contraditório manifestado no artigo 32.º, n.º 5, da Constituição, pela norma constante do n.º 2 do artigo 33.º do Decreto-Lei n.º 437/75.

Dispõe o artigo 26º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 437/75, que da decisão final, tomada pela respetiva Relação, cabe recurso, competindo o seu julgamento à secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça. Ora, ao tempo, estava em vigor o Estatuto Judiciário aprovado pelo Decreto-Lei n.º 49 278, de 14 de Abril de 1962 (muitas vezes depois alterado), cujo artigo 19.º, n.º 1, alínea a), dispunha que às secções cíveis e criminal do Supremo Tribunal de Justiça, conforme a natureza dos processos, competia conhecer, em via de recurso, nos termos da lei, das decisões proferidas pelas Relações. Consequentemente, e ainda que por via reflexa, o citado artigo 26.º, n.º 3, reconheceu a índole criminal do processo de extradição. Ou, noutros termos: da condição penal da jurisdição solicitada em grau de recurso decorre que aquele processo pertence à ordem criminal (as diversas jurisdições são autónomas e infungíveis, pelo que a natureza de cada uma é inseparável da natureza dos processos que lhe cabe julgar).

Também os artigos 14.º, 34.º, n.º 2, e 50.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 437/75, ao remeterem supletivamente para a «lei de processo penal comum», implicitamente consideram o processo de extradição como processo penal, ainda que de uma espécie diferente da comum (a sua exata caracterização será feita adiante).

A conclusão extraída da indagação do direito positivo compagina-se, aliás, com a que resulta de um exame estrutural da situação.

A essência de qualquer processo é também definível em função da natureza do direito substantivo cuja concretização é visada, em cada caso, pela jurisdição que o utiliza como meio de atuação. Nesta perspetiva, o processo penal é constituído por aquele «complexo de atos dirigidos à decisão jurisdicional sobre um caso-crime ou sobre a subsistência das condições exigidas por cenas providências dirigidas à repressão de um crime ou à modificação de relações jurídico-penais preexistentes «(Giovanni Leone, Novíssimo Digesto Italiano, vol. XIII, p. 1163).

O processo penal pretende, pois, através de sucessivos procedimentos, que teleologicamente se unificam, regular a aplicação do direito penal. E porque o âmbito deste tem sido sucessivamente alargado, o processo penal, como instrumento da sua administração pelos tribunais, foi sendo paralelamente ampliado.

Daqui que, o processo penal, como flui da definição transcrita de Giovanni Leone, já não tenha hoje o papel restrito que lhe cabia como quando, em fins do século passado, o direito penal se restringia ao binómio crime-pena.

Existem, pois, dentro do processo penal, e para lá dos procedimentos comuns e especiais, procedimentos complementares. «São os procedimentos – escreve Giovanni Leone, obra citada, p. 1170 – a que dão lugar as ações penais complementares [...]. Caracterizam-se pelo facto de, sendo embora procedimentos autónomos, estarem, todavia, ligados a uma relação processual já extinta ou ainda em início.

«Cada procedimento complementar tem a sua disciplina.

Procedimentos complementares são: o procedimento de extradição passiva [...]».

O processo de extradição, assente sobre uma relação jurídico-penal preexistente, é, nesta linha, considerado expressamente como processo penal por Furtado dos Santos, «Direito Internacional Penal e Direito Penal Internacional», in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 92, p. 182.

Embora o processo de extradição seja muitas vezes avulsamente disciplinado (em Portugal, pelo Decreto-Lei n.º 437/75, na República Federal da Alemanha por lei de 23 de Dezembro de 1929 – Deustsches Auslieferungsgesetz – DAG, modificada pela última vez em 1964, em França por lei de 10 de Março de 1927), já em Itália tal matéria insere-se no lugar que lhe pertence dentro da ordem jurídica, ou seja, no Código de Processo Penal (artigos 661.º e seguintes).

6 – Aceite que o processo de extradição é processo criminal, ainda que complementar, terá ele na fase de julgamento de obedecer ao princípio do contraditório referido no n.º 5 do artigo 32.º da Constituição. É certo que este preceito afirma que o «processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os atos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório».

[…]” (sublinhados acrescentados).

 

Esta conclusão no sentido da aplicabilidade ao processo de extradição das garantias do processo criminal previstas no artigo 32.º da CRP foi retomada, com novos argumentos, no Acórdão n.º 192/85:

 

“[…]

1 — Em Portugal, não existia uma lei interna sobre extradição, sendo esta regulada por tratados bilaterais. Como estes, por sua natureza, se limitavam a dispor sobre as relações jurídicas de extradição entre Portugal e cada um dos Estados contratantes, o processo de extradição, não se achando regulamentado ao nível da lei, obedecia a simples práticas administrativas.

Foi o Decreto-Lei n.º 437/75, de 16 de agosto, que veio estruturar, no nosso direito o regime jurídico da extradição, definindo as condições de forma e de fundo em que ela pode ter lugar e regulando o respetivo processo.

O processo de extradição passiva compreende duas fases: uma fase administrativa e uma outra judicial (v. artigo 24.º, n.º 1).

A fase administrativa destina-se à apreciação do pedido de extradição pelo Governo, que pode pronunciar-se no sentido do seu prosseguimento ou que, por razões de ordem política ou de oportunidade ou conveniência, o pode indeferir liminarmente (v. artigo 24.º, n.º 2). De notar que a pronúncia do Governo no sentido do prosseguimento do pedido não vincula os tribunais (artigo 24.º, n.º 4).

A fase judicial, que é da exclusiva competência dos tribunais judiciais, destina-se a decidir, com audiência do interessado, a eventual entrega do extraditando ao país que o reclamou, sendo que a extradição deverá ser concedida no caso de procederem as respetivas condições de forma e de fundo (v. artigo 24.º, n.º 1, em conjugação com os artigos 2.º, 3.º, 4.º, 21.º e 22.º).

Formulado um pedido de extradição por um Estado estrangeiro e pronunciando-se o Governo pelo seu prosseguimento, será ele remetido pelo Ministro da Justiça ao Procurador-Geral Adjunto junto do tribunal da Relação em cujo distrito judicial residir ou se encontrar o extraditando, acompanhado dos elementos que o instruírem e de informação sobre a decisão favorável do Governo, a fim de se promover o cumprimento daquele pedido (artigo 27.º referido aos artigos 25.º e 26.º).

Distribuído o processo no respetivo tribunal da Relação, o relator, se, no despacho liminar, se pronunciar pela suficiência dos elementos que instruem o pedido e pela viabilidade deste, ordena a passagem de mandado de captura contra o extraditando (artigo 28.º).

Capturado o extraditando, procede o relator à sua audiência pessoal, na presença do magistrado do Ministério Público e na do defensor ou na do advogado daquele (artigos 30.º e 31.º, n.º 1).

Após a audiência do extraditando, no caso de ele declarar que se opõe à extradição, o processo é facultado ao seu defensor ou advogado constituído para deduzir por escrito os fundamentos dessa oposição e indicar os meios de prova (artigo 32.º, n.º 1). A oposição só pode fundar-se em não ser o detido a pessoa reclamada ou em não se verificarem os pressupostos da extradição (artigo 32.º, n.º 2).

Apresentada a oposição ou findo o prazo em que o devia ser, é o processo continuado com vista ao magistrado do Ministério Público para requerer o que tiver por conveniente, maxime para arrolar testemunhas (artigo 32.º, n.º 3).

Efetuadas, com a presença do extraditando, do seu advogado ou defensor e do Ministério Público, as diligências requeridas ou aquelas que o relator entender necessárias, terão visto dos autos, para alegações, sucessivamente, o defensor ou advogado do extraditando e o magistrado do Ministério Público (artigo 33.º, n.os 1 e 2).

Produzidas as alegações e examinado o processo pelo relator, vai ele aos vistos dos juízes-adjuntos, após o que é apresentado na sessão, para decisão final — concessão ou denegação da extradição (artigo 34.º) —, podendo haver recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão que se proferir (artigos 26.º, n.º 3, e 35.º).

Transitado em julgado, o acórdão que ordene a extradição é título não apenas necessário, como também suficiente para a entrega do extraditado ao Estado requerente (v. artigo 37.º, n.º 1).

Não poderia, de resto, ser de outro modo.

De facto, o artigo 33.º, n.º 3, da Constituição preceitua que «a extradição […] só pode(m) ser decidida(s) por autoridade judicial».

2 — Descrita, assim, sumariamente — e tão-só no que aqui importa — a fase judicial do processo de extradição passiva, pode concluir-se que se está, aí, perante um processo que foi organizado no propósito de assegurar a intervenção do extraditando para defesa da sua liberdade, designadamente dando-lhe a oportunidade de contradizer o pedido e de pugnar por que sejam respeitadas as condições de fundo e de forma da extradição. De um processo também, que coloca a entrega do extraditando ao Estado requerente na efetiva dependência de uma decisão judicial. De um processo que, além disso, «mexe» com a liberdade das pessoas: não apenas se ordena, nele, a prisão do extraditando, como ainda, quando culmina com a sua entrega ao Estado que o reclama, isso se faz para que ele cumpra uma pena privativa da liberdade ou para que se submeta a um julgamento por crime a que corresponde pena de prisão superior a um ano (v. artigo 2.º do citado Decreto-Lei n.º 437/75).

É, assim, um processo que, não sendo um processo penal típico (nele, não se suscita uma pretensão punitiva do Estado Português), contudo, inscreve-se na área criminal, aplicando-se, de resto, nalguns dos seus passos, a «lei de processo penal comum» (v. artigos 14.º, 34.º, n.º 2, e 50.º, n.º 1). Para o descaracterizar, não chega o facto de só poder iniciar-se precedendo decisão governamental favorável ao prosseguimento do pedido. A necessidade dessa decisão governamental favorável apenas vem introduzir, no nosso sistema processual penal, onde rege o princípio da legalidade [v. Decreto-Lei n.º 35 007, de 13 de Outubro de 1945 (artigo 26.º) e Código de Processo Penal (artigos 1.º, 165.º e 349.º)] — e tão-só para este tipo de processos —, o princípio da oportunidade, que, de resto, vigora, em maior ou menor medida, noutros sistemas processuais penais (v. sobre estes princípios Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, primeiro volume, Coimbra, 1981, pp. 125 e segs.).

3 — «A fase judicial do processo de extradição fundado num crime é, sem dúvida — escreve Jorge de Figueiredo Dias, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 118.º, p. 14, nota 3 —, tanto formal como substancialmente, processo penal, mesmo no seu sentido mais estrito: por isso mesmo a tendência é hoje para integrar as normas do processo de extradição nos códigos do processo penal (v., por exemplo, os artigos 317.º e segs. do Progetto preliminare del Codice di Procedura Penale italiano, de 1978, e a respectiva Relazione, pp. 277 e segs.), ou pelo menos, para fazer constar daqueles uma norma de reenvio para a legislação especial em matéria de extradição».

No acórdão deste Tribunal n.º 45/84, publicado no Diário da República, 2.a série, de 10 de novembro de 1984, caracterizou-se o processo de extradição, justamente, como um «processo criminal, ainda que complementar».

Algo diferente parece ser, no entanto, o entendimento de Cavaleiro de Ferreira. De facto, depois de qualificar o processo de extradição como um processo misto, afirma: «A concessão da extradição é reservada ao Governo; a verificação da legalidade dos seus pressupostos cabe à jurisdição» (Direito Penal Português, I, Verbo, 1981, p. 154).

4 — Os princípios jurídico-constitucionais do processo penal consagrados no artigo 32.º da Lei Fundamental hão de, assim, valer para a fase judicial do processo de extradição. Conclusão a que, aliás, sempre se chegaria pela consideração de que tais princípios, para além de aplicáveis ao «processo penal comum», valem também — como se acentuou no Acórdão n.º 164 da Comissão Constitucional, publicado no Apêndice ao Diário da República, de 31 de Dezembro de 1979, p. 81 — para todo o processo judicial sancionatório, sempre que, nele, esteja em causa «uma direta consequência do pensamento do Estado de Direito democrático» e, de modo particular, a dignidade da pessoa humana, que é o gonzo em torno do qual aquele há-se sempre girar (v. neste sentido Jorge de Figueiredo Dias, Revista citada, p. 14, nota 3).

Ora — já atrás se viu —, o processo de extradição, na sua fase judicial, é um processo que «mexe» com a liberdade do extraditando: para além do mais, do que, nele, se trata é de tornar possível a outro Estado o exercício do seu ius puniendi sobre alguém que infringiu valores fundamentais da comunidade. Valores que, também em Portugal, constituem condições sociais básicas necessárias à livre realização da personalidade de cada homem, e cuja tutela, por isso, também aqui, se assegura lançando mão de reações criminais.

De facto, os crimes que fundamentam a extradição têm que ser duplamente incrimináveis: hão de ser crimes pela lei do Estado que solicita a extradição e também pela lei penal portuguesa [v. artigo 2. artigo 3.º, n.º 1, alínea d), do Decreto-Lei n.º 437/75].

Neste sentido, assume tal processo natureza sancionatória.

[…]” (sublinhados acrescentados).

 

O Tribunal reiterou esta conclusão, ainda, nos Acórdãos n.os 147/86, 54/87 e, recentemente, 273/2022. Na fundamentação deste último, pode ler-se, designadamente, o seguinte:

 

“[…]

A decorrência lógica tributária desta qualificação do processo de extradição consiste na sua vinculação aos princípios constitucionais em matéria de processo criminal, em especial, as garantias inscritas no artigo 32.º da CRP, reconhecendo que ao extraditando assistem igualmente os direitos e garantias previstos naquele preceito, designadamente, que o processo de extradição deverá assegurar todas as garantias de defesa, que também ele tem uma estrutura acusatória e estando a fase de julgamento (ou produção de prova) igualmente sujeita ao princípio do contraditório.

[…]

Como tal, a jurisprudência deste Tribunal tem sido constante e uniforme na afirmação da  equiparação do processo de extradição ao processo penal, quer do ponto de vista formal, quer substancial, na medida em que, implicando uma restrição à liberdade pessoal do extraditando, o escrutínio do juiz constitucional move-se num quadro constitucional especialmente garantístico, proporcionando a plena aplicação do regime jurídico dos direitos fundamentais, em especial, dos direitos, liberdades e garantias, para tutela dos direitos dos extraditandos contra possíveis arbítrios (princípio da igualdade, artigo 13.º, n.º 2, da CRP) e restrições desproporcionadas (princípio da proporcionalidade, artigo 18.º, n.º 2, da CRP) (cfr. Relatório do Tribunal Constitucional de Portugal, de novembro de 2012, acima citado, pág. 19).

Nesta linha, inserem-se, ainda, os Acórdãos n.ºs 228/97, 505/97, que recaíram sobre os regimes de detenção dos extraditandos, à luz dos Decretos-Leis n.ºs 437/75, de 16 de agosto, e 43/91, de 22 de janeiro, que desempenharam um papel relevante na reflexão do Tribunal sobre o enquadramento da medida de detenção antecipada nas restrições constitucionalmente admitidas ao direito à liberdade (artigo 27.º da CRP) e, subsequentemente, sobre se a mesma passava pelo crivo do princípio da proporcionalidade (artigo 18.º, n.º 2, da CRP). Posteriormente, nos Acórdãos n.º 113/95 e 35/2000, foram novamente apreciadas as garantias de defesa com respeito ao direito de oposição do extraditando ao pedido de extradição, por referência ao princípio da igualdade de armas, no que respeita ao prazo estabelecido na lei para o efeito, e por referência as garantias de defesa, no tocante a impossibilitar o extraditando de impugnar os factos que lhe são imputados como fundamento do pedido de extradição.

Tais premissas vieram a ser novamente aprofundadas no Acórdão n.º 219/2004, que não julgou inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 5.º da Lei n.º 15/98, de 26 de Março, quando interpretada no sentido de que a pendência do processo de concessão de asilo político apenas suspende a decisão do processo de extradição e não a execução dessa mesma decisão, entretanto proferida, bem assim como no Acórdão n.º 360/2012, que se debruçou sobre o direito de acesso aos tribunais (artigo 20.º da CRP) e o princípio da tutela jurisdicional efetiva que se extrai do princípio do Estado de Direito (artigo 2.º da CRP), em processo de extradição, por parte do Estado requerente (pessoa coletiva de direito internacional), concluindo-se pela não inconstitucionalidade da norma extraída dos artigos 47.º, n.º 4, e 58.º, n.º 1, da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto, e do artigo 401.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Penal, segundo a qual não tem legitimidade para recorrer de uma decisão condenatória que afeta os seus direitos o Estado requerente de um processo de extradição já depois da entrega do extraditado às autoridades desse mesmo Estado. 

Por sua vez, no Acórdão n.º 596/2015, sobre matéria relacionada com a competência para a tramitação do processo de extradição, durante o período de férias judiciais, concluiu-se pelo julgamento de não inconstitucionalidade da norma do n.º 1 do artigo 36.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, interpretado no sentido de que é obrigatória a participação de Relator originário a tomar parte e a integrar a conferência que julga o pedido de extradição passiva, quando o respetivo julgamento é realizado durante férias judiciais, sendo aquele substituído por outro de turno, foi convocada e sopesada a garantia prevista no n.º 9 do artigo 32.º da CRP, onde que radica o princípio do juiz natural.   

[…]”.

 

Em suma, encontra-se estabilizado na jurisprudência constitucional o entendimento seguindo o qual são aplicáveis ao processo de extradição os parâmetros previstos no artigo 32.º da CRP [cfr. Miguel João Costa e Pedro Caeiro, relatório relativo a Portugal, em Giuseppe Contissa, Giulia Lasagni, Michele Caianiello e Giovanni Sartor (eds.), Effective Protection of the Rights of the Accused in the EU Directives – A Computable Approach to Criminal Procedure Law, Brill, 2022, pp. 173/174; dos mesmos autores, em detalhe, sobre algumas exigências decorrentes do sistema constitucional português em matéria penal transnacional, o relatório relativo a Portugal em Martin Böse, Maria Bröcker e Anne Schneider (eds.), Judicial Protection in Transnational Criminal Proceedings, Springer, 2021, pp. 271 e ss.].

Aqui chegados, impõe-se questionar se a mesma conclusão deve valer para o MDE e, nessa medida, para os juízos relativos às normas do RMDE.

A resposta é inequivocamente positiva, não só pelas afinidades entre o RMDE e o regime da extradição (sendo o regime do primeiro decalcado, em boa medida, da fase judicial do segundo, ambos prevendo atos que mimetizam o ritualismo do processo penal – veja-se, a título de exemplo, os artigos 15.º, n.º 2, 16.º, n.º 6, 17.º, n.os 2, 3 e 4, e 18.º, n.os 3, 5 e 6,  do RMDE), reveladoras de uma verdadeira identidade de natureza, mas também porque, se o primeiro reclama alguma diferença, ela será no sentido do reforço das garantias processuais, face à extradição. Efetivamente, ao significativo estreitamento de elenco de fundamentos de não entrega que se encontra no RMDE, face ao congénere regime da extradição, não corresponde necessariamente um estreitamento dos direitos processuais que aí são conferidos às pessoas visadas [analisando algumas dimensões processuais das garantias, cfr. Miguel João Costa e Pedro Caeiro, últ. ob. cit., e Pedro Caeiro e Raquel Cardoso, “First Periodic Country Report [on the application of the FD EAW by Portuguese courts: Portugal”, in STREAM – Strengthening Trust in the European Criminal Justice Area through Mutual Recognition and the Streamlined Application of the European Arrest Warrant, Centre for European Policy Studies – CEPS / União Europeia, 2022, disponível em https://stream-eaw.eu/]. O Direito da União Europeia tem, aliás, mais recentemente, caminhado justamente no sentido do aprofundamento desses direitos processuais, pela via da harmonização – considere-se, por exemplo, a Diretiva 2013/48/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de outubro de 2013, relativa ao direito de acesso a um advogado em processo penal e nos processos de execução de mandados de detenção europeus, e ao direito de informar um terceiro aquando da privação de liberdade e de comunicar, numa situação de privação de liberdade, com terceiros e com as autoridades consulares, e a Diretiva (UE) 2016/1919 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de outubro de 2016, relativa ao apoio judiciário para suspeitos e arguidos em processo penal e para as pessoas procuradas em processos de execução de mandados de detenção europeus, para além das obrigações que resultam, no âmbito mais geral dos direitos processuais em processo penal, da Diretiva 2010/64/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de outubro de 2010, relativa ao direito à interpretação e tradução em processo penal, da Diretiva 2012/13/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2012, relativa ao direito à informação em processo penal, da Diretiva (UE) 2016/343 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de março de 2016, relativa ao reforço de certos aspetos da presunção de inocência e do direito de comparecer em julgamento em processo penal e da Diretiva (UE) 2016/800 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de maio de 2016, relativa a garantias processuais para os menores suspeitos ou arguidos em processo penal.

 

2.5. Como observa o Ministério Público nas suas contra-alegações, a Decisão-Quadro 202/584/JAI de 13 de junho, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados-Membros da União Europeia “[…] não se debruça sobre as circunstâncias e critérios em que é possível recurso de uma decisão de entrega, tendo tal regulação sido deixada aos Estados-Membros aquando da sua transposição. Assim, não se mostra possível proceder a uma interpretação da Lei do MDE à luz do texto da Decisão-Quadro que aquela visa transpor, à qual estaríamos obrigados por força do chamado efeito indireto das decisões-quadro, estabelecido e desenvolvido pela jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia”.

Assim é, efetivamente.

A Decisão-Quadro 202/584/JAI deixa aos Estados, nesta matéria, uma margem de conformação legislativa para adaptação do processo às suas exigências de garantias das pessoas procuradas. Como se pode ler no Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 30/05/2013, no processo n.º C‑168/13 (PPU):

 

“[…]

39. [A] própria decisão‑quadro permite assegurar que as decisões relativas ao mandado de detenção europeu gozem de todas as garantias que são específicas a este tipo de decisões.

40. Assim, para começar, o artigo 1.º, n.º 3, da decisão‑quadro recorda expressamente que esta não tem por efeito alterar a obrigação de respeito dos direitos fundamentais e dos princípios jurídicos fundamentais conforme consagrados pelo artigo 6.º do Tratado UE, obrigação que, por outro lado, vincula todos os Estados‑Membros, nomeadamente, tanto o Estado‑Membro de emissão como o de execução.

41. Em seguida, embora respondendo ao objetivo, recordado no n.º 35 do presente acórdão, de facilitar e acelerar a cooperação judiciária com vista a contribuir para realizar o objetivo, atribuído à União, de se tornar num espaço de liberdade, de segurança e de justiça, a própria decisão‑quadro, como precisado no primeiro parágrafo do seu considerando 12, respeita igualmente os direitos fundamentais e observa os princípios reconhecidos pelo artigo 6.º do Tratado UE e consignados na Carta, nomeadamente no seu capítulo VI, relativamente à pessoa que é objeto de um mandado de detenção europeu.

[…]

51. Em segundo lugar, há, contudo, que constatar que, independentemente das garantias expressamente previstas na decisão‑quadro, a inexistência de regulamentação nesta última sobre um eventual direito de recurso suspensivo das decisões relativas ao mandado de detenção europeu não impede os Estados‑Membros de preverem esse direito.

52. Com efeito, na falta de maiores esclarecimentos nas próprias disposições da decisão‑quadro e atendendo ao artigo 34.º UE, que atribui às instâncias nacionais a competência quanto à forma e aos meios necessários para se atingir o resultado pretendido pelas decisões‑quadro, há que constatar que a decisão‑quadro deixa às autoridades nacionais uma margem de apreciação quanto às modalidades concretas de implementação dos objetivos que prossegue, nomeadamente no que respeita à possibilidade de prever um recurso suspensivo das decisões relativas ao mandado de detenção europeu.

53. A este respeito, há que recordar que, desde que não seja posta em causa a aplicação da decisão‑quadro, esta não impede um Estado‑Membro, como salienta o segundo parágrafo do seu considerando 12, de aplicar as suas normas constitucionais respeitantes, nomeadamente, ao respeito do direito a um processo equitativo.

54. Por outro lado, no que respeita à decisão de execução do mandado de detenção europeu, a possibilidade de beneficiar de um direito de recurso decorre implícita mas necessariamente dos termos «decisão definitiva», constantes do artigo 17.º, n.os 2, 3 e 5, da decisão‑quadro […].

[…]” (sublinhados acrescentados).

 

Em suma, é inequívoco que o Estado português pode prever um recurso da decisão final, sem que essa possibilidade se limite aos casos de ausência de consentimento na entrega por parte da pessoa visada, desde que não ponha em causa os objetivos da Decisão-Quadro 202/584/JAI, designadamente os prazos máximos de decisão ali previstos (cfr. o citado acórdão no processo n.º C‑168/13, pontos 56. e ss.).

Saber se o legislador a isso está obrigado é, consequentemente, uma questão a apreciar unicamente à luz do sistema jurídico-constitucional interno do Estado português – o Direito da União Europeia não pretendeu regular essa dimensão do regime. O mesmo é dizer que a resposta se encontrará na Constituição da República Portuguesa, impondo-se, antes de mais, a consideração do seu artigo 32.º, que, como vimos, encerra parâmetros aplicáveis ao caso.

 

2.6. Ora, estabelece o artigo 32.º, n.º 1, da CRP que “[o] processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso”.

No processo penal em sentido estrito, esta garantia de pelo menos um grau de recurso (ou, por outro ponto de vista, de um segundo grau de jurisdição) tende a circunscrever-se, por princípio, à decisão final do processo e a decisões interlocutórias que contendam com a liberdade ou outros direitos fundamentais (assim, Acórdãos n.os 178/88 e 610/96). Como se pode ler no Acórdão n.º 390/2004, “[a] consagração de um duplo grau de jurisdição em  matéria penal decorre essencialmente da exigibilidade constitucional de se conferir um grau elevado de asseguramento, de concretização e de realização aos direitos e garantias fundamentais da liberdade e segurança dos cidadãos (sendo igualmente invocável relativamente a outros direitos e garantias fundamentais), dado que estes são diretamente atingidos pelas decisões condenatórias e outras decisões judiciais que limitem ou restrinjam a liberdade. A existência de um segundo grau de reexame jurisdicional das medidas de privação, limitação ou restrição desses direitos fundamentais corresponde assim ao patamar que a Constituição tem como minimamente tolerável para que se possam haver por arredados os perigos de uma ofensa inconsistente de tais direitos”. O recurso de outras decisões interlocutórias poderá ser limitado pelo legislador ordinário, embora a admissibilidade dessa limitação obrigue a ponderar, em cada caso, se não resulta “[…] atingido o conteúdo essencial das garantias de defesa e [se] a limitação [é] justificada por outros valores relevantes no processo penal” [Germano Marques da Silva e Henrique Salinas, em anotação ao artigo 32.º da Constituição, in Jorge Miranda e Rui Medeiros (org.), Constituição Portuguesa Anotada, volume I, 2.ª edição revista, Lisboa, 2017, p. 521].

Mais recentemente, pelo Acórdão n.º 595/2018, a jurisprudência constitucional veio impor um segundo grau de jurisdição ao declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma que estabelece a irrecorribilidade do acórdão da Relação que, inovadoramente face à absolvição ocorrida em primeira instância, condena os arguidos em pena de prisão efetiva não superior a cinco anos, constante do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do CPP, por violação do artigo 32.º, n.º 1, conjugado com o artigo 18.º, n.º 2 da CRP. Aí se ponderou, designadamente, o seguinte:

 

“[…]

19. Na verdade, para se aferir sobre a respetiva conformidade constitucional importa determinar em que medida a norma sub judicio afeta as garantias de defesa do arguido. Neste plano, na linha do que acima se deixou consignado a respeito da relação existente entre direito ao recurso e duplo grau de jurisdição, é imprescindível verificar se a norma permite a apreciação do caso por dois tribunais de grau distinto, para depois determinar se corresponde a uma tutela suficiente das garantias de defesa constitucionalmente consagradas.

Logo no primeiro momento, da verificação de um duplo grau de jurisdição, é de identificar um problema. Como se sublinha no Acórdão n.º 429/2016, ponto 19:

«Nos casos em que existe uma absolvição da primeira instância revogada por decisão condenatória em pena de prisão da segunda instância, não é assegurada no julgamento do recurso uma reapreciação das consequências jurídicas do crime. Trata-se, pelo contrário, de uma decisão inovadora com consequências fundamentais na posição jurídica do arguido, designadamente na sua liberdade, relativamente à qual é negado o acesso a uma reapreciação por um tribunal superior.

Na verdade, uma situação em que a uma absolvição de primeira instância sucede a condenação em pena de prisão, no tribunal de recurso, implica necessariamente o surgimento de uma parte da decisão que se apresenta como integralmente nova: o processo decisório concernente à determinação da medida da pena a aplicar. A decisão que define a pena de prisão é proferida pelo Tribunal da Relação sem que anteriormente, designadamente em primeira instância, haja qualquer apreciação sobre a pena a impor ao arguido. O arguido vê-se confrontado com uma pena de privação de liberdade cujo fundamento e medida não tem oportunidade de questionar em sede alguma. Existem, portanto, nesta situação, dimensões do juízo condenatório que não são objeto de reapreciação. Pelo menos quanto a estas matérias, existe uma apreciação pela primeira vez apenas na instância de recurso, sem que exista a previsão legal de um segundo grau de jurisdição.

Neste contexto, aceitar a irrecorribilidade da decisão condenatória, em situações como a configurada pela norma em apreciação, seria admitir que o direito fundamental ao recurso, enquanto expressão das garantias de defesa do arguido, consagradas no artigo 32.º, n.º 1 da Constituição, não garante sequer a reapreciação por uma segunda instância da decisão que define a pena de prisão efetiva. Esta seria, assim, uma decisão do juiz que se apresentaria como livre de qualquer controlo».

É de realçar, a este propósito, que na norma em apreciação apenas se encontram abrangidos casos em que o tribunal de 2.ª instância procede ele mesmo à determinação da sanção – «condena os arguidos em pena de prisão efetiva não superior a cinco anos» –, não reenviando o processo para o tribunal de 1.ª instância. Essa é, aliás, a regra interpretativamente estabelecida pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2016, que fixou a seguinte jurisprudência: «em julgamento de recurso interposto de decisão absolutória da 1.ª instância, se a Relação concluir pela condenação do arguido deve proceder à determinação da espécie e medida da pena, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374.º, n.º 3, alínea b), 368.º, 369.º, 371.º, 379.º, n.º 1, alíneas a) e c), primeiro segmento, 424.º, n.º 2, e 425.º, n.º 4, todos do Código de Processo Penal».

Nestas circunstâncias, a irrecorribilidade do acórdão do tribunal de 2.ª instância tem como consequência que a tão relevante matéria da determinação da espécie e medida da pena seja apreciada uma única vez – pelo tribunal de recurso – e escape, assim, ao controlo de uma segunda instância (destaca este ponto Damião Cunha, ‘Algumas questões do atual regime de recursos em processo penal’, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 22, n.º 2, abril-junho 2012, p. 298). Nessa parte, não se encontra garantindo, na verdade, um duplo grau de jurisdição.

20. Ora, o apuramento da proporcionalidade de uma qualquer restrição ao direito ao recurso não pode alhear-se, desde logo, do tipo de intervenção do tribunal superior que assegura o duplo grau de jurisdição. Do ponto de vista das garantias de defesa do arguido, quanto maior for o conteúdo inovatório da decisão condenatória do tribunal de 2.ª instância, tanto mais insustentável será a sua irrecorribilidade.

No caso da norma em apreciação, o tribunal de 2.ª instância não procede a uma reapreciação de matéria já apreciada pelo tribunal de 1.ª instância, mas sim a uma apreciação ex novo: pronunciando-se o tribunal a quo pela absolvição do arguido, não chega, naturalmente, a apreciar a matéria da sanção, que pressupõe uma decisão positiva quanto à questão da culpabilidade (cfr. artigos 368.º e 369.º do CPP). Essa parte da decisão da 2.ª instância é, por definição, inovatória. Desta forma, não é assegurada no julgamento do recurso uma reapreciação das consequências jurídicas do crime.

Sendo de há muito dado adquirido na dogmática das consequências jurídicas do crime que a determinação judicial da pena concreta constitui «estruturalmente aplicação do direito», deixando «por toda a parte de ser considerado como uma questão relevando exclusiva ou predominantemente da subjetividade do julgador, da sua arte de julgar» (cfr. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas - Editorial Notícias, 1993, pp. 40-41, no mesmo sentido, v. Anabela Miranda Rodrigues, A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, Coimbra Editora, 1995, p. 13), não se afigura sustentável uma ausência absoluta de controlo do processo decisório de escolha e determinação da medida da pena de prisão, como se concluiu no Acórdão n.º 429/16, ponto 19.

21. Mais decisivo para a questão de constitucionalidade que importa aqui resolver, em todo o caso, é que tal ausência de controlo compromete excessivamente as garantias de defesa do arguido constitucionalmente consagradas.

Desde logo, importa notar que uma tal solução não se apresenta como inevitável para alcançar os fins prosseguidos. Dentro da discricionariedade deixada ao legislador para definir o regime processual de recursos, são, com efeito, diversificadas as soluções configuráveis no sistema de recursos em processo penal com vista à harmonização do interesse na otimização dos recursos e o célere funcionamento da justiça com os direitos de defesa do arguido, designadamente o direito de recorrer de uma condenação em pena privativa da liberdade (para uma perspetiva das várias soluções avançadas pela doutrina, v. Sandra Oliveira e Silva, ob. cit., pp. 283 e ss.).  Ponto é que a racionalização do acesso ao Supremo não seja alcançada à custa da negação da possibilidade de exercício do direito ao recurso, enquanto direito fundamental de defesa do arguido, designadamente quando está em causa o valor da sua liberdade.

Para além disso, esse sacrifício do direito ao recurso não é compensado pela possibilidade de contra-alegar no âmbito do recurso interposto pelo Ministério Público ou assistente da decisão absolutória da 1.ª instância ou através da garantia do contraditório. Nestes casos de reversão no tribunal de recurso de uma absolvição em condenação as consequências jurídicas do crime só são definidas no julgamento do recurso. Assim, apesar de o duplo grau de jurisdição facultar ao arguido a possibilidade de contra-alegar no âmbito do recurso interposto da sentença absolutória, esta faculdade não lhe assegura a possibilidade de sindicar o processo decisório subjacente à escolha e à determinação da medida concreta da pena de prisão que será aplicada no futuro e a consequente reapreciação dos respetivos fundamentos. Na verdade, o arguido vê-se confrontado com uma pena de privação de liberdade cujo fundamento e medida não tem oportunidade de questionar em sede alguma. Neste caso, os critérios judiciais de determinação, em concreto, da medida adequada da pena escapam a qualquer controlo.

Desta forma, além de deixar livre de qualquer controlo parte da decisão condenatória, a norma em apreciação implica uma intensa e grave restrição ou compressão do direito ao recurso, uma vez que resulta totalmente excluído da sua proteção o poder de recorrer de uma parte da decisão, precisamente aquela que acarreta o maior potencial de lesão dos direitos fundamentais do arguido.

[…]” (sublinhados acrescentados).

 

Posteriormente (embora o argumento já se encontrasse no Acórdão n.º 595/2018) o Plenário do Tribunal teve oportunidade de sublinhar, nos Acórdãos n.os 523/2021, 524/2021 e 525/2021, que o caráter inovador das questões a apreciar não constitui o único critério a atender na ponderação da admissibilidade da restrição do direito ao recurso, sendo igualmente relevante a distinção entre as penas privativas e as penas não privativas da liberdade, conferindo as primeiras menos liberdade ao legislador para restringi-lo.

 

2.7. Vertendo sobre a norma sub judice o sentido da jurisprudência constitucional –adaptado ao RMDE a partir do direito penal clássico –, começa-se por observar que a conformidade constitucional da supressão de um grau de recurso só seria inequívoca se, com a prestação do consentimento na entrega, ficasse precludida toda e qualquer questão relevante para a defesa da pessoa visada.

Não é esse, todavia, o caso.

A prestação de consentimento diminui drasticamente as questões jurídicas passíveis de discussão, mas não as elimina por completo. Basta pensar, por exemplo, nas hipóteses i) de o consentimento ser prestado antes da prestação das garantias – de que o caso dos autos constitui exemplo –, abrindo discussão sobre o seu alcance e verdadeiro objeto e efeitos sobre o consentimento (veja-se, por exemplo, o caso apreciado pelo Tribunal Constitucional da África do Sul no caso Mohamed e outro contra Presidente da República da África do Sul, citado por M. Cherif Bassouini, Internation Extradition, 6.ª ed., Ofxord University Press, Oxford, 2014, pp. 625 e ss.), ii) de discussão dos próprios pressupostos explícitos e implícitos da homologação do consentimento, iii) de superveniência, face ao consentimento, de factos consubstanciadores de hipóteses previstas nos artigos 11.º e 12.º do RMDE (embora nem todas sejam compatíveis com a superveniência, algumas são-no); iv) de, após o consentimento, terem sido reconhecidas pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos ou pelo Tribunal de Justiça da União Europeia deficiências sistémicas graves no sistema de justiça penal do estado de emissão (Acórdão LM, de 25/07/2018, no processo C-216/18 PPU). Hipóteses de verificação rara, certamente, mas que mostram a possibilidade abstrata de existirem dimensões relevantes para a defesa da pessoa visada pelo pedido de entrega que subsistem ou sobrevêm após a prestação do consentimento [num lugar paralelo – neste ponto convocável como tal – da extradição com consentimento (artigo 40.º da Lei da cooperação judiciária internacional em matéria penal, Lei n.º 144/99, de 31 de agosto), refere Miguel João Costa: “[na] tramitação simplificada (art. 40.º LCJ), o juiz tem igualmente de ‘verifica[r] se estão preenchidas as condições para que a extradição possa ser concedida’. Assim – e tendo em conta que o consentimento do extraditando não logra afastar as (várias) causas de recusa que, pelo menos parcialmente, visam proteger interesses públicos –, constata-se que esta tramitação não resulta tão mais “simplificada” assim do que a comum: as condições que o consentimento do extraditando é inidóneo a afastar terão sempre de ser objeto de uma análise detida por parte do tribunal. […] Há causas de recusa que visam mais diretamente acautelar interesses do Estado e outras interesses do extraditando. Porém, esta distinção não pode ser vista de modo estanque. Na verdade – e, diremos, em consequência da mudança de paradigma que em tempos recentes se verificou no direito da extradição (cf. supra, ponto 2) –, independentemente de visarem proteger em primeira linha uns ou outros interesses, a generalidade das causas de recusa protege-os em simultâneo” – Dedere Aut Judicare? A Decisão de Extraditar ou Julgar à Luz do Direito Português, Europeu e Internacional, Coimbra, 2014, p. 30 e nota 40. Aponta, ainda o autor – ob. cit., p. 148 – que “[…] dificilmente a vontade [da pessoa visada] poderá sobrepor-se aos resultados da ponderação dos elementos (total ou parcialmente) objetivos que exprimem o seu interesse e dos demais interesses que estão em jogo na decisão em análise” (de algum modo na mesma linha, já anteriormente, Manuel António Lopes Rocha e Teresa Alves Martins, Cooperação judiciária internacional em matéria penal – comentários, Lisboa, 1992, pp. 86/87), interesses à luz dos quais (agora se acrescenta) se poderão discutir, enfim, os limites da relevância do consentimento].

Este entendimento é, ademais, coerente com a interpretação que encontra no artigo 26.º, n.º 3, do RMDE, quando lido em conjugação com o n.º 1 do mesmo artigo, uma expressa previsão de recurso nesse caso, significando que a “renúncia ao processo” prevista no artigo 20.º, n.º 1, do RMDE não envolve renúncia ao recurso, mas apenas a renúncia ao conjunto de atos desencadeados pela oposição à entrega (artigo 21.º do RMDE). Tudo isto torna difícil retirar do ato voluntário de “renúncia ao processo” uma renúncia ao recurso (para além das dificuldades inerentes à própria admissibilidade da renúncia – cfr. Germano Marques da Silva e Henrique Salinas, ob. cit., p. 519).

Trata-se, como se vê, de um difícil equilíbrio de interesses (dificuldade a que não serão alheias soluções como a que se encontra no n.º 5 do artigo 4.º do 3.º Protocolo à Convenção de Extradição do Conselho da Europa, que deixa aos Estados signatários margem para ponderação da possibilidade de revogação do consentimento).

Concluindo-se que a prestação de consentimento não preclude todo o âmbito da defesa da pessoa visada, importa, então, ter em conta que o RMDE se aplica quando estejam em causa factos puníveis, pela lei do Estado membro de emissão, com pena ou medida de segurança privativas da liberdade de duração máxima não inferior a 12 meses ou para cumprimento de pena ou de medida de segurança, desde que a sanção aplicada tenha duração não inferior a 4 meses, sendo que, no caso de pedidos sem controlo de dupla incriminação, se os factos, de acordo com a legislação do Estado membro de emissão, constituam certas infrações puníveis no Estado membro de emissão com pena ou medida de segurança privativas de liberdade de duração máxima não inferior a três anos (no caso dos autos, alguns factos integram crimes passíveis de punição, no Reino Unido, com pena de prisão perpétua), ou seja, a entrega da pessoa detida colocá-la-á em situação idêntica à que reclama do legislador maiores limitações na restrição de recursos (Acórdãos n.os 595/2018, 523/2021, 524/2021 e 525/2021). Para além de que a entrega propriamente dita envolve um ato privativo da liberdade.

Ademais, a letra da lei contém, como vimos, uma forte sugestão no sentido da admissibilidade do recurso (artigo 26.º, n.º 3, do RMDE, quando lido em conjugação com o n.º 1 do mesmo artigo, uma vez que vai prevista a possibilidade de recurso por referência, também, aos casos de consentimento; v., também, artigo 20.º, n.º 3, quando lido em conjugação com o artigo 24.º, n.º 1, alínea b), do RMDE – sublinhe-se, ainda, que, enquanto os artigos 20.º, n.º 3, e 24.º, n.º 1, alínea b), se referem a decisão final, o artigo 26.º, n.º 1, do RMDE refere-se a decisão definitiva), ou seja, e pelo menos, é pouco clara a inadmissibilidade do recurso, isto para quem não veja no referido artigo 26.º a sua consagração expressa (que é uma das leituras possíveis do preceito – verdadeiramente, não ver essa consagração expressa obrigará a reconhecer que o legislador se expressou mal, uma vez que a segunda oração do n.º 3 está subordinada à anterior, que refere ambos os casos dos números 1 e 2), fazendo com que a não admissão do recurso se distancie da confiança criada não só pela letra da lei, mas também pela regra geral de recorribilidade de decisões finais tendentes à aplicação de penas privativas da liberdade, resultado que a decisão de entrega proporciona, ainda que não se trate da decisão condenatória.

Por fim, algumas das dimensões da utilidade do recurso, acima referidas, não resultam, sequer, inteiramente definidas no momento em que a pessoa visada presta o seu consentimento na entrega. Esta poderá ser confrontada com circunstâncias novas que podem ter consequências determinantes para a sua defesa (por exemplo, a posterior prestação de garantias incompleta ou inconclusiva), posteriores ao facto do qual se pretende extrair a irrecorribilidade, sem ter a possibilidade de argumentar em que medida as mesmas podem condicionar a homologação do consentimento.

Neste contexto, em que o legislador, por um lado, sugere a recorribilidade e, por outro, a situação jurídica da pessoa visada dificilmente comporta outra solução, a supressão do recurso mostra-se injustificada, desproporcional e, nessa medida, contrária à garantia do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.

As razões acabadas de expor não cedem perante o lugar paralelo do regime da extradição invocado nas contra-alegações do Ministério Público, seja porque se trata de uma solução infraconstitucional, que pouco adianta quanto às exigências constitucionais, seja porque não é essa a norma sub judice, seja porque nesse outro caso o legislador previu expressamente a irrecorribilidade, enquanto no caso em apreço sugeriu a recorribilidade (o que pode, inclusivamente, sustentar, pelo afastamento pontual do decalque dos regimes, que se pretendeu, aqui, consagrar solução diversa, por oposição ao regime da extradição), seja, enfim, porque, como já se referiu anteriormente, o MDE, com o significativo estreitamento das razões de recusa de entrega que o caracteriza, face à extradição, tende a (re)equilibrar a posição das pessoas visadas com acrescidos direitos processuais.

 

2.8. Se é verdade que as considerações precedentes apontam para a inconstitucionalidade da norma sub judice, impõe-se esclarecer que essa conclusão não traz consigo todas as consequências pretendidas pelo recorrente nas suas alegações.

O que resulta, antes de mais, é que o STJ não pode refugiar-se no artigo 24.º do RMDE para, simplesmente, negar o recurso à partida. Tal não significa que a pessoa visada pelo MDE tenha à sua disposição o mais amplo recurso em matéria de facto e de direito: efetivamente, o consentimento estreita, necessária e significativamente, o âmbito das possíveis discussões subsequentes. Do mesmo modo, a presente decisão não implica qualquer posição do Tribunal sobre a irrevogabilidade do consentimento ou qualquer outra matéria objeto do recurso. Decorre do exposto, apenas, que o STJ não pode qualificar a decisão como legalmente irrecorrível e que, em coerência com os fundamentos supra, deverá indagar se as pretensões do recorrente são ou não compatíveis com o consentimento prestado (e com aquilo que a pessoa procurada conhecia ou devia conhecer no momento em que o prestou – v., a propósito, M. Cherif Bassouini, ob. cit., pp. 582/583) e, em caso afirmativo, apreciar o respetivo mérito, não cabendo ao Tribunal Constitucional tomar posição relativamente a qualquer um destes juízos.

 

2.9. Face ao exposto, conclui-se por um juízo de inconstitucionalidade da norma contida no artigo 24.º, n.º 1, da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto, interpretado no sentido segundo o qual o detido que deu o seu consentimento à entrega não pode recorrer do despacho que homologou o consentimento, para entrega à autoridade emissora do mandado de detenção e – após validação da garantia prestada – determinou a execução da sua entrega, determinando-se a remessa dos autos ao Supremo Tribunal de Justiça, para que este reforme a decisão recorrida em conformidade com tal juízo (artigo 80.º, n.º 2, da LTC).

 

III – Decisão

 

3. Em face do exposto, decide-se, na procedência do recurso:

a) não tomar conhecimento do objeto do recurso relativamente à primeira questão do respetivo requerimento de interposição, indicada em “2.-[A/]”, supra;

b) julgar inconstitucional a norma contida no artigo 24.º, n.º 1, da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto, interpretado no sentido segundo o qual o detido que deu o seu consentimento à entrega não pode recorrer do despacho que homologou o consentimento, para entrega à autoridade emissora do mandado de detenção e – após validação da garantia prestada – determinou a execução da sua entrega, por violação do disposto no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa; e, consequentemente,

c) determinar a remessa dos autos ao Supremo Tribunal de Justiça, para que este reforme a decisão recorrida em conformidade com o decidido em b).

 

3.1. Sem custas, mesmo verificado o não conhecimento parcial, por delas estar isento o processo do qual emerge o presente recurso (cfr. artigo 73.º, n.º 1, da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto, aplicado ao processo de execução do MDE por identidade de razão – veja-se, por exemplo, o acórdão do STJ de 22/06/2022, proferido no processo n.º 48/21.1YRGMR.S3, disponível em www.dgsi.pt, no ponto 28. da respetiva fundamentação, aderindo-se ao sentido maioritário ali afirmado, não obstante a declaração de voto aposta à decisão).

 

3.2. Atenta a urgência do processo, assim que se mostre registada e notificada a presente decisão, remeta os autos de imediato ao STJ, sem aguardar o trânsito em julgado, ficando neste Tribunal traslado integral para que seja processado qualquer eventual incidente pós-decisório. Uma vez transitada em julgado a decisão e, sendo caso disso, também a decisão de eventual incidente pós-decisório, o traslado será igualmente remetido ao STJ, para incorporação no processo.

 

 

Lisboa, 16 de agosto de 2022 - José Teles Pereira - João Pedro Caupers

(o relator atesta o voto de conformidade do Conselheiro José João Abrantes, que participou por meios telemáticos)

José Teles Pereira

 




 



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