ACÓRDÃO Nº 639/2020
Processo n.º 238/2019
3ª Secção
Relator: Conselheira Joana Fernandes Costa
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. No âmbito dos presentes autos, vindos do Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Local Cível do Porto – Juiz 6, em que é recorrente o Ministério Público e recorrida A., foi interposto recurso, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (doravante «LTC»), do despacho proferido por aquele Tribunal, em 04 de dezembro de 2018, que recusou a aplicação «da norma do art. 248º n.º 4 do CIRE, na parte em que impede a obtenção do apoio judiciário, na modalidade de dispensa do pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo, aos devedores que tendo obtido a exoneração do passivo restante e cuja massa insolvente e o rendimento disponível foram insuficientes para o pagamento integral das custas e encargos do processo de insolvência e do incidente de exoneração, sem consideração pela sua concreta situação económica», e, em consequência dessa recusa, indeferiu o requerido pelo Ministério Público, no sentido de exigir da devedora o pagamento das custas e encargos em dívida.
2. A aqui recorrida requereu, aquando da sua apresentação à insolvência, que lhe fosse concedida a exoneração do passivo restante, tendo instruído o requerimento inicial com cópia da nomeação de Patrona no âmbito do apoio judiciário, juntando ainda a decisão proferida pelo I.S.S., I.P. que lhe concedeu, em 19 de março de 2013, o benefício do apoio judiciário, para além do mais, na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo.
Declarada que foi a insolvência da recorrida, realizou-se a assembleia de credores e de apreciação do relatório, tendo sido proferido despacho a determinar o encerramento do processo com fundamento na insuficiência da massa, bem como de admissão liminar do passivo restante.
Nos cinco anos correspondentes ao período de cessão, a recorrida não cedeu quaisquer montantes por falta de rendimentos, tendo sido proferido despacho final, concedendo-lhe a exoneração do seu passivo restante.
O Ministério Público promoveu o pagamento das custas e encargos que se mostravam em dívida, pretensão que foi indeferida no despacho ora recorrido.
3. Através do recurso interposto, pretende-se que este Tribunal aprecie a questão que decorre do excerto da decisão recorrida que seguidamente se transcreve:
«[…]
Dispõe o art. 304º do C.I.R.E. (diploma a que pertencerão todas as normas invocadas na presente decisão sem referência expressa da sua origem) que "As custas do processo de insolvência são encargo da massa insolvente ou do requerente, consoante a insolvência seja ou não decretada por decisão com trânsito em julgado", o que se mostra reiterado no art. 51º n.º 1 alínea a).
Estabelece o art. 240º n.º 1 que "A remuneração do fiduciário e o reembolso das suas despesas constitui encargo do devedor".
Já o art. 248º n.º 1, sob a epígrafe "Apoio Judiciário" preceitua que "O devedor que apresente um pedido de exoneração do passivo restante beneficia do diferimento do pagamento das custas até à decisão final desse pedido, na parte em que a massa insolvente e o seu rendimento disponível durante o período da cessão sejam insuficientes para o respetivo pagamento integral, o mesmo se aplicando à obrigação de reembolsar o organismo responsável pela gestão financeira e patrimonial do Ministério da Justiça das remunerações e despesas do administrador da insolvência e do fiduciário que o organismo tenha suportado."
A primeira perplexidade que a conjugação das normas citadas nos suscita consiste no facto da responsabilidade pelo pagamento das custas do processo de insolvência, no caso de insuficiência da massa e de rendimento disponível, acabar por a final reverter da massa para o próprio devedor, sem que qualquer norma expressamente o consagre.
Por outro lado e não menos importante, o requerente da exoneração do passivo restante beneficia do diferimento do pagamento das custas até à decisão final mas está-lhe vedada a possibilidade de beneficiar do apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de custas (n.º 4 do art. 248º).
Ou seja, o devedor a quem tenha sido concedida a exoneração do passivo restante, com uma insuficiência económica objetivamente comprovada no processo, já que aquando da sua apresentação à insolvência não dispunha de património de valor superior a €5.000,00 (art.s 230º n.º 1 alínea d) e 232º n. 7) e que nada cedeu no período de cessão, por falta de rendimentos que tal lhe permitissem, está absoluta e liminarmente impedido de beneficiar do apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de custas e demais encargos, tendo que arcar com o seu pagamento, no exato momento em que se vê exonerado do passivo.
Cabe assim apreciar se o n.º 4 do art. 248º do CIRE padece de inconstitucionalidade por violação dos art.s 20º e 13º da C.R.P.
Resulta do disposto no art. 20.º da Constituição da República Portuguesa que «a todos é assegurado o acesso ao Direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos», dispondo o n.º 2 do mesmo preceito que «todos têm direito, nos termos da lei, à informação e consulta jurídicas, ao patrocínio judiciário e a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade».
Prescreve por sua vez o art. 1º n.º 1 da lei n.º 34/2004, de 29.07, que "o sistema de acesso ao direito e aos tribunais destina-se a promover que a ninguém seja dificultado ou impedido, em razão da sua condição social ou cultural ou por insuficiência de meios económicos, o conhecimento, o exercício ou a defesa dos seus direitos", Entendeu o Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 86/2017, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 70, de 7 de Abril de 2017, que «o acesso aos tribunais consagrado no artigo 20.º n.º 1, da Constituição é uma garantia imprescindível da proteção de direitos fundamentais e, como tal, inerente à ideia de Estado de direito: sem prejuízo da sua natureza de direito prestacionalmente dependente e de direito legalmente conformado, certo é que ninguém - pessoa singular ou pessoa coletiva, nacional ou não nacional - pode ser privado de levar a sua causa à apreciação de um tribunal (cfr. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2007, anoto I ao art. 20.º, p. 408). O conteúdo deste direito não pode ser esvaziado ou praticamente inutilizado por insuficiência de meios económicos. Se os serviços de justiça não têm de ser necessariamente gratuitos, também não podem ser "tão onerosos que dificultem, de forma considerável, o acesso aos tribunais», pelo que «os encargos [com tal acesso terão] de levar em linha de conta a incapacidade judiciária dos economicamente carecidos e observar, em cada caso, os princípios básicos do Estado de direito, como o principio da proporcionalidade e da adequação» (v. idem, ibidem, anot. VI ao art. 20.º, p. 411).
Nesta perspetiva, a concessão de proteção jurídica garantidora do direito de acesso aos tribunais corresponde a uma dimensão prestacional de um direito, liberdade e garantia (v. idem, ibidem); não a uma simples refração do direito à segurança social (cfr. idem, ibidem, p. 412)."
Ora, a norma aqui em apreço, ao coartar o acesso ao apoio judiciário na modalidade de dispensa do pagamento de custas e demais encargos com o processo por parte do devedor que obteve a exoneração do passivo restante, nas circunstâncias descritas no n.º 1 do art. 248º, independentemente da sua situação económica, contende com a extensão e o alcance do conteúdo essencial do segmento do artigo 20.º, n.º 1, da Constituição, porquanto o mero diferimento do pagamento não será bastante para concretizar o acesso à realização do seu direito, na medida em que não permite ir ao encontro da sua real situação económica.
Segundo o Ac. Tribunal Constitucional nº 437/06 "O princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa, é um princípio estruturante do Estado de direito democrático e postula, como o Tribunal Constitucional tem repetidamente afirmado, que se dê tratamento igual ao que for essencialmente igual e que se trate diferentemente o que for essencialmente diferente. Na verdade, o princípio da igualdade, entendido como limite objetivo da discricionariedade legislativa, não veda á lei a adoção de medidas que estabeleçam distinções.
Todavia, proíbe a criação de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, isto é, desigualdades de tratamento materialmente não fundadas ou sem qualquer fundamentação razoável, objetiva e racional. O princípio da igualdade, enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se numa ideia geral de proibição do arbítrio (cfr. por todos acórdão n.º 232/2003, publicado no Diário da República, I Série-A, de 17 de junho de 2003 e nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 56.º Vol., págs. 7 e segs.)".
Nesta perspetiva, também não poderá deixar de se ter por ofendido o princípio da igualdade, na medida em que tal limitação só existe para o devedor que requeira e beneficie da exoneração do passivo restante, o mesmo não sucedendo relativamente aos demais. Por outras palavras, o devedor que se apresente à insolvência e não requeira a exoneração do passivo restante, pese embora o pagamento da taxa de justiça a que está obrigado por força do impulso processual, vê a massa insolvência suportar, nos termos do disposto no art. 304º e 51º n.º 1 alínea a), com as custas do processo, inexistindo qualquer norma que consagre para si a reversão no caso da insuficiência da mesma.
Assinale-se que a norma aqui em causa, assim interpretada e cuja rafio se não descortina, assume um carácter quase penalizado r da exoneração concedida já que no momento em que esta é deferida e se inicia o fresh stert, faz nascer para o devedor uma obrigação de pagamento de custas, sem qualquer hipótese, ao contrário dos demais cidadãos, de obter a isenção do seu pagamento, pese embora a comprovada insuficiência económica, que o próprio processo atesta.
E, face ao exposto, recusa-se a aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, por violação dos artº.s 20.º, n.º 1 e 13º n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, da norma do art. 248.º n.º 4 do C.I.R.E., na parte em que impede a obtenção do apoio judiciário, na modalidade de dispensa do pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo, aos devedores que tendo obtido a exoneração do passivo restante e cuja massa insolvente e o rendimento disponível foram insuficientes para o pagamento integral das custas e encargos do processo de insolvência e do incidente de exoneração, sem consideração pela sua concreta situação económica .
Como consequência da recusa da aplicação do art. 248º n.º 4 há que retirar os efeitos do concedido apoio judiciário, na modalidade de dispensa do pagamento de taxa de justiça e encargos com o processo.
E nessa sequência, mais não resta do que indeferir o doutamente promovido».
4. O requerimento de interposição do recurso tem o seguinte teor:
«O Ministério Público, notificado do douto despacho de 4 de dezembro de 2018, proferido nos autos à margem referenciados, onde se decidiu não aplicar a norma prevista no art° 248°, nº 4 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, na parte em que impede a obtenção do apoio judiciário na modalidade de dispensa do pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo aos devedores que obtiveram a exoneração do passivo restante e cuja massa insolvente e o rendimento disponível foram insuficientes para o pagamento integral das custas e encargos do processo de insolvência e do incidente de exoneração sem consideração pela sua concreta situação económica, considerando que tal norma padece de inconstitucionalidade material por violação dos art°s 20°, nº 1 e 13°, nº 2 da Constituição da República Portuguesa
vem interpor recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional,
para apreciação da declarada inconstitucionalidade do art° 248°, nº4 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, ao abrigo do disposto no art° 280°, nº1 a) e nº 2 da Constituição da República Portuguesa e dos artºs 70°, nº 1 a) e nº 3 da Lei nº 28/82 de 15/11 (Lei Orgânica do Tribunal Constitucional).
O despacho recorrido não invoca qualquer outra razão para o sentido decisório que não seja a da desaplicação da norma em causa.
O recurso deve subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo, nos termos do disposto no artº 78°, nº4 da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, sendo as alegações de recurso produzidas no Tribunal Constitucional (art° 79° da citada Lei)».
5. Notificado para o efeito, o recorrente produziu alegações, concluindo pela improcedência do recurso nos termos seguintes:
«III
(Conclusões)
«1.ª) Vem interposto recurso, pelo Ministério Público, para si obrigatório, nos termos do disposto nos artigos 280.º, n.º 1, al. a), e n.º [3], da Constituição da República Portuguesa e arts. 70.º, n.º 1, al. a), 72.º nº 1 a) e n.º 3, ambos da LOFPTC, “do douto despacho de 17 de dezembro de 2018, proferido nos autos à margem referenciados [proc. n.º 615/13.7TJPRT, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto / Instância Local Cível do Porto – Juiz 6 (Insolvência pessoa singular (Apresentação), fls. 308 a 310] onde se decidiu não aplicar a norma prevista no artº 248º, nº 4 do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, considerando que tal norma padece de inconstitucionalidade material por violação dos art.ºs 20º nº 1 e 13º nº 2 da Constituição da República Portuguesa”.
2.ª) O sentido normativo imputado à norma jurídica enunciada no n.º 4 do artigo 248.º do CIRE pelo despacho recorrido, tem por efeito privar os membros da categoria legal de “devedores que obtiveram a exoneração do passivo restante...”, dos direitos fundamentais de acesso aos tribunais e ao patrocínio judiciário que para tanto seja necessário, sem embargo decorrente da insuficiência de meios económicos, através das pertinentes “modalidades” da lei concretizadora desses direitos fundamentais, que visa “assegurar que a ninguém seja dificultado ou impedido, em razão da sua condição social ou cultural, ou por insuficiência de meios económicos (…) a defesa dos seus direitos” [RADT, arts. 1.º, n.º 1, e 16.º, n.º 1, alínea a)].
3.ª) E não decorre da lei justificação material e constitucionalmente adequada para a emanação desta restrição legal (Constituição, art. 18.º, n.º 2).
4.ª) Nestes termos, por privação, desprovida de justificação material e constitucionalmente adequada para o efeito, do direito fundamental de “todos” terem acesso aos tribunais, e ao patrocínio judiciário que para tanto seja necessário, em ordem à defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, sem embargo decorrente de insuficiência de meios económicos, concorre violação do princípio da universalidade dos direitos fundamentais consignados na Constituição (arts. 12.º, n.º 1, 18.º, n.º 2, e 20.º, n.ºs 1 e 2).
5.ª) Por outra parte, do sentido normativo imputado à norma jurídica em apreço no despacho recorrido, decorre que os “devedores que obtiveram a exoneração do passivo restante…”, não obstante se poderem encontrar em situação de “insuficiência de meios económicos”, estão legalmente impedidos de aceder ao regime do apoio judiciário e assim, nomeadamente, de virem a beneficiar da “dispensa da taxa de justiça e demais encargos do processo”.
6.ª) Deste modo, é legal e praticamente comprometido o exercício do direito de ação judicial, para defesa dos respetivos direitos e interesses, sem embargo decorrente de insuficiência de meios económicos dos interessados.
7.ª) Portanto, tomada a mesma questão de outro ponto de vista, o sentido normativo imputado à norma jurídica enunciada no n.º 4 do artigo 248.º do CIRE, consubstancia uma norma especial, veiculando a discriminação de tratamento dos “devedores que obtiveram a exoneração do passivo restante…”, face à generalidade dos demais interessados, na medida em define um âmbito pessoal de aplicação da lei recortado com base em critério que tem cariz meramente subjetivo.
8.ª) Importa recordar, a este propósito, a linha jurisprudencial assente sobre o ponto, desde os primórdios da justiça constitucional: “O princípio da igualdade não proíbe, pois, que a lei estabeleça distinções. Proíbe, isso sim, o arbítrio, ou seja, proíbe as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, que o mesmo é dizer sem qualquer justificação razoável, segundo critérios de valor objetivo, constitucionalmente relevantes” (acórdão n.º 39/88, proc. n.º 136/85, de 9 de fevereiro, do Tribunal Constitucional – 2.ª secção).
9.ª) Por outra parte, não decorre da lei justificação material e constitucionalmente adequada para a emanação desta restrição legal (Constituição, art. 18.º, n.º 2).
10.ª) Nestes termos, o sentido normativo imputado à norma jurídica enunciada no n.º 4 do artigo 248.º do CIRE, consubstancia uma norma especial, veiculando a discriminação de tratamento da categoria legal dos “devedores que obtiveram a exoneração do passivo restante…”, face à generalidade dos demais interessados, na medida em que define um âmbito pessoal de aplicação da lei recortada com base em critério que tem cariz meramente subjetivo, desprovido de justificação material e constitucionalmente adequada, concorrendo assim violação do princípio da igualdade, enquanto proibição do arbítrio (Constituição, arts. 13.º, n.ºs 1 e 2, e 18.º, n.º 2)».
6. Apesar de para o efeito notificada, a recorrida não contra-alegou.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
7. Tal como definido no respetivo requerimento de interposição, o objeto do recurso interposto nos presentes autos é integrado pela «norma constante do artigo 248.º, n.º 4, do CIRE, na parte em que impede a obtenção do apoio judiciário, na modalidade de dispensa do pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo, aos devedores que obtiveram a exoneração do passivo restante e cuja massa insolvente e o rendimento disponível foram insuficientes para o pagamento integral das custas e encargos do processo de exoneração, sem consideração pela sua concreta situação económica», cuja aplicação foi recursada pelo Tribunal recorrido com fundamento na violação dos artigos 20.º, n.º 1, e 13.º, n.º 2, da Constituição.
Tal norma foi recentemente apreciada no Acórdão n.º 489/2020, que se pronunciou no sentido da respetiva inconstitucionalidade.
O juízo positivo de inconstitucionalidade assentou nos fundamentos seguintes:
«[…]
9. Apurados o traços gerais do sistema normativo em que se inscreve a norma questionada, importa retomar o problema colocado à apreciação do Tribunal, começando por assinalar que o recorrente não interpela a conformidade constitucional do mecanismo de alocação do rendimento disponível cedido ou a precipuidade das custas quando a essa disciplina jurídica atinge o desiderato de satisfação da dívida de custas.
Com efeito, a questão de inconstitucionalidade radica nas hipóteses em que o funcionamento do aludido mecanismo de cessão não permite o pagamento das custas em dívida, a saber, quando a massa insolvente é insuficiente para a respetiva liquidação até ao encerramento da insolvência, e, concomitantemente, o mecanismo de cedência do rendimento disponível não confere ao fiduciário meios financeiros idóneos para pagar tais créditos. A que, pela natureza das coisas, postulada a exiguidade ou mesmo ausência de rendimentos granjeados pelo devedor, se irá juntar, por força do artigo 303.º, outra dívida de custas, em sentido amplo, incluindo encargos e despesas, também ela da responsabilidade do devedor insolvente, gerada pela tramitação do procedimento de exoneração do passivo restante durante os cinco anos do período de cedência. Assim sucedeu no caso vertente, conforme relatado supra, na medida em que a massa insolvente não permitiu sequer o pagamento das custas da insolvência, a que se seguiu o decurso do período de cedência sem que fosse recebido qualquer rendimento disponível, inexistindo, por conseguinte, qualquer afetação ao pagamento das custas do processo de insolvência ainda em dívida ou ao pagamento/reembolso dos montantes de remunerações e despesas do administrador da insolvência ou do próprio fiduciário, nos termos prescritos pelo artigo 241.º.
Por conseguinte, a crítica de inconstitucionalidade assenta na conjugação da permanência da responsabilidade por custas do devedor insolvente nesse quadro de circunstâncias com o regime especial em matéria de apoio judiciário consagrado pelo legislador no artigo 248.º do CIRE.
10. Efetivamente, o regime referido comporta um benefício especial, atribuído ope legis e sem necessidade de qualquer iniciativa por parte do devedor, consubstanciado no diferimento da exigibilidade da dívida de taxa de justiça e encargos processuais para momento posterior à decisão final do pedido de exoneração do passivo restante, uma vez recuperada a plena disponibilidade dos rendimentos angariados (n.º 1 do preceito), a que acresce a possibilidade de pagamento faseado do remanescente a pagar, através de remissão para o disposto no artigo 33.º do Regulamento das Custas Processuais (n.º 2), que estatui os pressupostos e limites para a autorização judicial do pagamento das custas em prestações em qualquer processo.
A ratio de tal normação radica no propósito de reforçar a proteção jurídica do devedor insolvente que requeira a exoneração do passivo restante, em atenção à forte compressão de recurso financeiros que o próprio e o seu agregado familiar passa a estar sujeito. Entendeu o legislador do CIRE que a exigência do pagamento imediato de taxa de justiça ou encargos ao próprio devedor (e não à massa insolvente ou ao acervo patrimonial gerado pela cedência de créditos futuros), significaria uma restrição adicional de recursos, e inerente acréscimo de dificuldades em fazer face às despesas comuns, em antinomia com o princípio da salvaguarda dos meios de sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, consagrado no artigo 239.º, n.º 3, alínea b), inciso i), do CIRE.
Neste quadro normativo, feita a liquidação da dívida remanescente, atinente a taxa de justiça e encargos, e notificada a parte para a pagar, com subsequente invocação por esta de que lhe havia sido concedido apoio judiciário, na modalidade de dispensa de tal pagamento, entendeu o tribunal a quo que esse benefício não podia ser reconhecido na fase do processo em questão, por a tal obstar o disposto no n.º 4 do artigo 248.º do CIRE. Na expressão da decisão recorrida, a norma legal deve ser tida como aplicável a casos como o presente, e interpretada como vedando, de forma absoluta e liminar, o benefício do apoio judiciário ao requerente de exoneração do passivo restante, salvo na modalidade de nomeação e pagamento de honorários de patrono, incluindo nos casos previstos no n.º 1 do mesmo preceito, ou seja, nas hipóteses em que, proferida a decisão final sobre esse pedido, persistem em dívida montantes de taxa de justiça e encargos.
Cabe observar que a aplicabilidade desse regime a tais casos, designadamente da norma restritiva da primeira parte do n.º 4 do preceito, tem sido discutida na jurisprudência, obtendo resposta maioritariamente negativa, de que são exemplo os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 6 de fevereiro de 2018 (Proc. n.º 749/16.6 T8OAZ.P2), de 13 de junho de 2018 (Proc. n.º 1525/12.0TBPRD.P1), de 11 de setembro de 2018 (Processo n.º 1825/12.0TBPRD.P1), de 25 de setembro de 2018 (Processo n.º 2075/12.0TBFLG.P1), de 15 de novembro de 2018 (Processo n.º 1741/11.2TBLSD-C.P1), de 15 de novembro de 2018 (Processo n.º 2079/12.3TJPRT.P1) e de 11 de abril de 2019 (Processo n.º 3933/12.8TBPRD.P1), o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 21 de novembro de 2019 (Processo n.º 1780/13.9TBOLH.E1), e os acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 17 de maio de 2012 (Processo n.º 1617/11.3TBFLG.G1) e de 10 de maio de 2018 (Processo n.º 2645/13.0TBBRR.L1-6), todos acessíveis em www.dgsi.pt. Em sentido contrário posicionou-se o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24 de novembro de 2018 (Processo n.º 944/12.7 TBAMT.P1), acessível no mesmo sítio Não cabe, porém, a este Tribunal tomar posição sobre a correção da determinação do direito infraconstitucional aplicável, impondo-se nesta sede de fiscalização concreta tomar o entendimento adotado pelo tribunal a quo como um dado.
Certo é que, nesse pressuposto, entendeu-se na decisão recorrida que um tal sentido normativo ofende os princípios da igualdade e do acesso ao direito e a tutela jurisdicional efetiva, com referência aos artigos 13.º, n.º 2, e 20.º, n.º 1, da Constituição, por comportar denegação de acesso à justiça e tratamento discriminatório do requerente de exoneração de passivo restante que padeça de insuficiência de meios económicos para satisfazer a tributação e encargos processuais, face aos requerentes da declaração de insolvência que não formulem idêntico pedido.
11. O artigo 20.º, n.º 1, da Constituição consagra o princípio de que a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, estabelecendo a garantia de que a justiça não pode ser denegada a quem não disponha de meios económicos para suportar os custas da litigância. Desse modo, sem consagrar a gratuidade dos serviços de justiça, a Lei Fundamental é incompatível com tributação processual que, pela sua onerosidade, impeça ou dificulte de forma desproporcionada o acesso aos tribunais, ao mesmo tempo que impõe ao legislador a consagração de um sistema adequado de apoio judiciário, injunção a que o regime do acesso ao direito e aos tribunais, regulado pela Lei n.º 34/2004, de 29 de julho, procura dar cumprimento. É vasta a jurisprudência do Tribunal sobre a dimensão prestacional do instituto do apoio judiciário. Diz-se, entre muitos outros, no Acórdão n.º 411/2008:
«Trata-se, deste modo, de um instrumento jurídico-financeiro que dá cumprimento à dimensão “prestacional” compreendida naquele direito fundamental, devendo cumprir a função constitucional de “garantir uma igualdade de oportunidades no acesso à justiça, independentemente da situação económica dos interessados”, como tem sido reconhecido em vários momentos pelo Tribunal Constitucional (cf., a título de exemplo, os Acórdãos n.ºs 433/87 e 352/91).
Mas se é assim, temos que a igualdade de oportunidades no acesso à justiça que releva é uma igualdade material referida aos elementos pertinentes do sistema de justiça que são suscetíveis de impedir ou dificultar a motivação do cidadão de recorrer a ela, na defesa dos seus direitos e interesses legítimos, decorrendo, desde logo, do art.º 13.º, n.º 2, da Constituição.
E perante o nosso sistema de justiça são, essencialmente, dois os fatores que são suscetíveis de motivar os cidadãos no acesso e utilização dos sistema de justiça: a possibilidade de motivar os cidadãos: a possibilidade económica de suportar os honorários do patrono jurídico ou judiciário e a de arcar com as custas da respetiva ação judicial, no caso de se ter de recorrer a juízo.
Daí que a previsão do benefício, por parte do legislador ordinário, se traduza nas modalidades de informação jurídica e de proteção jurídica, decompondo-se esta, por seu turno, na consulta jurídica e no apoio judiciário (cf. artºs. 4.º e 6.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho).»
Deve, então, concluir-se pela ilegitimidade constitucional de medida «sempre que, por insuficiência de [meios económicos», o cidadão pudesse ver frustrado o seu direito à justiça, tendo em conta o sistema jurídico-económico em vigor para o acesso aos tribunais na ordem jurídica portuguesa», pois a Constituição, «indo além do mero reconhecimento de uma igualdade formal no acesso aos tribunais», propõe-se «afastar neste domínio a desigualdade real nascida da insuficiência de meios económicos, determinando expressamente que tal insuficiência não pode constituir motivo para denegação da justiça» (Acórdão n.º 602/2006).
12. A esta luz, a interpretação normativa efetuada pelo tribunal a quo do preceituado no n.º 4 do artigo 248.º do CIRE oferece motivos de censura constitucional, pela desproteção - e decorrente afastamento material do acesso ao sistema de justiça - que acarreta para o devedor exonerado do passivo restante na parte não amparada pelo mecanismo do diferimento do pagamento das custas.
Com efeito, a limitação à concessão do benefício do apoio judiciário mostra-se racionalmente justificada nos casos em que o devedor não se encontra obrigado a pagar qualquer taxa de justiça ou encargos, designadamente pela atuação do mecanismo de diferimento do pagamento das custas até à decisão final do pedido de exoneração passivo restante. Como é bom de ver, afastada a exigibilidade de qualquer pagamento a título de taxa de justiça ou encargos, o devedor que requeira simultaneamente a declaração de insolvência e a exoneração do passivo restante não carece do benefício do apoio judiciário nas modalidades em que a prestação consiste, justamente, na dispensa, total ou parcial, de tais pagamentos. A mesma solução preside, aliás, aos casos em que o legislador estabelece isenção de custas (artigo 4.º do Regulamento das Custas Processuais), relativamente aos quais não tem cabimento, por desnecessidade, a concessão ao interveniente processual isento do benefício do apoio judiciário na modalidade de dispensa ou pagamento faseado das custas. Permanece, apenas, a carência da modalidade de apoio judiciário tendo com objeto a representação forense, sem a qual estaria impedida de pleitear em juízo a parte desprovida de meios económicos, incluindo o pagamento pelo Estado dos respetivos honorários.
Sucede, todavia, e ao contrário do que acontece com os casos de isenção, que o benefício concedido ao devedor insolvente que deduziu pedido de exoneração do passivo restante é apenas temporário, comportando não mais do que um diferimento; projeta, desse modo, o legislador, a exigibilidade e o cumprimento de tais obrigações de cariz pecuniário para momento posterior, uma vez concedida a exoneração do passivo restante e retomada a sua habilitação legal para a prática de atos que atinjam o seu património (o seu património é gerido em primeira linha pelo administrados de insolvência e, subsequentemente, pelo fiduciário, cabendo a cada um deles, na fase respetiva, efetuar o pagamento de dívida, mormente de dívidas resultantes de custas judiciais, nos termos do artigos 55.º, n.º 1, alínea a), e 241.º, n.º 1, alínea a), ambos do CIRE), mas fá-lo sem margem de aferição da suficiência da situação económica do devedor nessa fase da sua vida patrimonial para fazer face ao remanescente das custas judiciais.
Ora, decorrido o período de cessão, não existem garantias de que o devedor insolvente tenha melhorado substancialmente a sua capacidade de obter rendimentos, ao menos em termos equivalentes aos que legitimam, no âmbito do regime do apoio judiciário, o cancelamento da proteção jurídica e exigência ao beneficiário do pagamento de custas de que foi dispensado, integral ou parcialmente, a saber, a aquisição superveniente, pelo requerente ou respetivo agregado familiar, de «meios suficientes» para dispensar o benefício (artigo 16.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 34/2004). Pelo contrário, o funcionamento do mecanismo de cedência, e a sua imputação nos termos estipulados no artigo 241.º, n.º 1, do CIRE, é de modo a fazer esperar que a condição de melhor fortuna permitirá extinguir pelo pagamento o remanescente da taxa de justiça e encargos da responsabilidade do devedor insolvente. Quanto tal não sucede, sendo parco ou inexistente o rendimento disponível suscetível de cessão (artigo 239.º, n.º 3), estamos, como os presentes autos ilustram, perante a manutenção de um quadro de baixos rendimentos, nos limites do razoavelmente necessário para sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar [artigo 239.º, n.º 3, alínea b), i)]. Exigir, mesmo que em prestações, perante tal quadro de carência de rendimentos, ao sujeito processual, o pagamento do remanescente de custas e encargos que a massa insolvente e o período de cinco anos não permitiu satisfazer, significa recolocar o devedor na mesma situação de incapacidade que fundou a sua apresentação à insolvência, e inviabilizar o desiderato de criação de condições para uma nova vida económica (fresh start), a que está votada a exoneração do passivo restante, o que constitui, materialmente, frustração do seu direito à justiça por motivo de insuficiência de meios económicos.
13. Por outro lado, a solução normativa em exame também merece censura à luz do princípio da igualdade, pela discriminação que opera relativamente aos devedores que requeiram e vejam concedida a exoneração do passivo restante face aos demais devedores que não impulsionem esse instituto. Como referido supra, e assinalado na decisão recorrida, ao direito a obter uma decisão justa e equitativa para a tutela da respetiva posição jurídico-subjetiva de quem reúne os requisitos para uma tal libertação patrimonial, associa o legislador, em caso de insuficiência da massa insolvente, a permanência da responsabilidade por custas e encargos dessa categoria de devedores, impondo-lhes, mesmo em caso de insuficiência económica (no quadro dos critérios legais que definem o que deve entender-se por tal insuficiência), o pagamento dessas quantias e correspondente sacrifício patrimonial. Diferentemente, os demais devedores decretados insolventes, que escolham não requerer o benefício da exoneração do passivo restante ou não reúnam os respetivos pressupostos, nunca são chamados a suportar qualquer montante, a título de custas e encargos, as quais recaem unicamente sobre a massa insolvente (artigos 51.º, n.º 1, alíneas a) e b), e 304.º do CIRE), qualquer que seja a evolução do respetivo património nos anos subsequentes ao decretamento da insolvência. Opera-se, pois, na norma em exame, uma desvantagem infundada dos requerentes da exoneração do passivo restante, onerados por presunção de capacidade económica que não têm meios de ilidir através do instituto do apoio judiciário, diferenciação que se tem como ofensiva da proibição das discriminações com base nas categorias subjetivas contidas no n.º 2 do artigo 13.º da Constituição, na vertente da proibição de discriminação fundada na situação económica do sujeito.
14. Assim sendo, é de concluir que a dimensão normativa em exame não garante o acesso à justiça, com referência ao incidente de exoneração do passivo restante, por parte daqueles que careçam de meios económicos suficientes para suportar os encargos inerentes ao respetivo desenvolvimento processual, ofendendo a garantia de não denegação de justiça por insuficiência de meios económicos, e comporta tratamento discriminatório ilegítimo fundado na situação económica do sujeito, violando os artigos 20.º, n.º 1, e 13.º, n.º 2, da Constituição.»
Reiterando-se, nos seus precisos e integrais termos, o juízo formulado Acórdão n.º 489/2020, haverá que concluir também aqui pela inconstitucionalidade da norma do artigo 248.º, n.º 4, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), na parte em que impede a obtenção do apoio judiciário, na modalidade de dispensa do pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo, aos devedores que obtiveram a exoneração do passivo restante e cuja massa insolvente e o rendimento disponível foram insuficientes para o pagamento integral das custas e encargos do processo de exoneração, sem consideração pela sua concreta situação económica, por violação dos artigos 20.º, n.º 1, e 13.º, n.º 2, da Constituição.
III – Decisão
Em face do exposto, decide-se:
a )Julgar inconstitucional a norma do artigo 248.º, n.º 4, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), na parte em que impede a obtenção do apoio judiciário, na modalidade de dispensa do pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo, aos devedores que obtiveram a exoneração do passivo restante e cuja massa insolvente e o rendimento disponível foram insuficientes para o pagamento integral das custas e encargos do processo de exoneração, sem consideração pela sua concreta situação económica, por violação dos artigos 20.º, n.º 1, e 13.º, n.º 2, da Constituição; e, consequentemente,
b )Julgar improcedente o recurso interposto pelo recorrente, confirmando-se a decisão recorrida.
Sem custas, por não serem legalmente devidas.
Lisboa, 16 de novembro de 2020 - Joana Fernandes Costa - Maria José Rangel de Mesquita - Gonçalo Almeida Ribeiro - João Pedro Caupers
Atesto o voto de conformidade do Juiz Conselheiro Lino Ribeiro, nos termos do disposto no artigo 15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março (aditado pelo artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 20/2020, de 1 de maio).
Joana Fernandes Costa