ACÓRDÃO Nº 348/2022
Processo n.º 333/2021
3.ª Secção
Relator: Conselheiro Gonçalo de Almeida Ribeiro
Acordam na 3.ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Comarca de Lisboa – Juízo Central Cível de Lisboa – Juiz 7, em que é recorrente A. e recorridos B., S.A. e C., S.A., foi interposto o presente recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional, referida adiante pela sigla «LTC»), da sentença daquele Tribunal, de 2 de dezembro de 2020.
2. A ora recorrente beneficiava de proteção jurídica, na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, na ação principal de que os presentes autos constituem apenso. Por sentença datada de 1 de julho de 2019, foi condenada como litigante de má fé, tendo a multa sido fixada em 20 UC. Tal condenação foi confirmada em recurso pelo Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão proferido em 20 de fevereiro de 2020, que, todavia, reduziu a multa para 10 UC.
Por decisão proferida em 23 de setembro de 2020, a Segurança Social cancelou a proteção jurídica da autora, ora recorrente, nos termos previstos na alínea d) do n.º 1 do artigo 10.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho. Tal decisão foi objeto de impugnação contenciosa, o que originou a sentença ora recorrida, que, recusando provimento ao recurso, confirmou a decisão administrativa de cancelamento da proteção jurídica.
Com interesse para o recurso de constitucionalidade, pode ler-se na sentença:
«O proémio e a alínea d) do n.° 1 do citado artigo 10.° da Lei n.° 34/2004, de 29 de julho, estabelecem o cancelamento da concessão da proteção jurídica, em qualquer das suas vertentes/modalidades ou na sua totalidade, para a hipótese de, em sede de recurso, ser confirmada a condenação do requerente do apoio judiciário como litigante de má fé.
Os membros da comunidade jurídica devem agir de boa fé, o que se traduz na exigência da adoção de uma conduta correta e proba, seja no âmbito da constituição das relações inter-subjetivas, seja no plano da sua execução (cfr. Ac. STJ de 26.02.1992, B.M.J. n." 414, pág. 492).
As partes devem, por seu turno, agir de boa fé e seguir os ditames da cooperação na condução e intervenção no processo (cfr. artigos 7.° e 8.° do Código de Processo Civil).
Tal significa que, quem deduziu em juízo pretensão ou oposição cuja falta de fundamento conhecia ou devia e podia conhecer, ou intencional e reprovavelmente fez uso do processo para obter uma finalidade ilegal, entorpecer a ação da justiça ou impedir a descoberta da verdade, atuou eivado de má fé (cfr. artigo 542.°, n.° 2, do Código de Processo Civil).
Tendo o requerente sido condenado como litigante de má fé e a respetiva decisão sido corroborada por via de recurso, deixa, por isso, de continuar a beneficiar do apoio judiciário que lhe tenha sido antes concedido.
Com efeito, a lei, inspirada pelo princípio da estabilidade do benefício do apoio judiciário exige, para efeitos da revogação da sua concessão, a reapreciação e confirmação, por um Tribunal superior (Relação ou Supremo Tribunal de Justiça, conforme os casos), do segmento decisório em causa. O inciso legal "em recurso" equivale a decisão transitada em julgado proferida em via de recurso (note-se que, independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso, em um grau, da decisão que condene por litigância de má fé (cfr. artigo 542.°, n.° 3, do Código de Processo Civil).
E as consequências são de tal modo graves que, se for retirado o benefício do apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo por litigância de má fé, não pode o mesmo requerente para a ação ou seus apensos solicitar novamente tal proteção, ainda que na modalidade diferente de patrocínio judiciário (cfr., em idêntico sentido e com uma atualidade que perdura, Ac. Rei. Coimbra de 18.01.2000, Col. Jur., ano XXV, tomo I - 2000, págs. 14 e 15).
De notar que, como é pressuposto deste normativo a confirmação da decisão em recurso da condenação por litigância de má fé, não lhe é subsumível a situação da parte que foi condenada, a esse título, no próprio Tribunal Constitucional (cfr. Ac. Tribunal Constitucional n.° 17/1991, de 05.02.1991, B.M.J. n.° 404, págs. 484 e 485).
Acresce dizer que o cancelamento em causa não tem por base qualquer avaliação de insuficiência económica, mas sim a previsão legal acima descrita. Aquela avaliação já foi realizada anteriormente - a montante - e pode, até, a situação económico-financeira ter-se agravado no decurso da lide. A verdade é que tal não releva.
O que, verdadeiramente, aqui se joga e importa é a gravidade/seriedade do instituto (litigância de má fé) aplicado e confirmado por Tribunal superior. Apenas isso.
E porque, somente, é essa a questão que interessa valorar, não se deslinda no que venha a contender com algum(ns) dos princípios constitucionais invocados pela Autora, mormente os contemplados nos citados artigos 18.°, n.° 2, 20.° e 34.°, n.° 4, todos da CRP (proporcionalidade, acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva e "perda de direito civil").
De todo o acima exposto se conclui que a entidade administrativa agiu dentro da lei e no quadro da Constituição vigente, carecendo a matéria alegada pela Recorrente de sustentação para infirmar o já decidido e mantido pela referida entidade, e inexistindo um qualquer juízo de inconstitucionalidade a proferir a esse nível.
Destarte, o Tribunal recusa o provimento ao recurso, por manifesta inviabilidade, confirmando a decisão de cancelamento da proteção jurídica, nos termos e para os fins previstos no artigo 10.°, n.° 1, al. d), da Lei n.° 34/2004, de 29 de julho - não proferindo qualquer juízo de inconstitucionalidade relativamente ao mencionado dispositivo legal».
3. Desta decisão foi interposto recurso de constitucionalidade, através de requerimento com o seguinte teor:
«A., impugnante nos autos à margem referenciados, não podendo conformar-se com a decisão de fls..., vem dela interpor recurso, a subir nos próprios autos e com efeito suspensivo, para o Tribunal Constitucional, o que faz nos termos e com os seguintes fundamentos:
1. O presente recurso é interposto ao abrigo da al. b) do n.° 1 artigo 70.° da Lei n.° 28/82 de 15 de novembro na sua atual redação.
2. Com o mesmo, pretende a Recorrente ver apreciada a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 10.° n.° 1 al. d) da Lei 34/2004 de 29 de julho, por referência aos artigos 18.° n.° 2, 20.° e 30.° n.° 4, todos da Constituição da República Portuguesa, porquanto a interpretação que lhes é dada, viola aqueles preceitos constitucionais.
Pretende-se assim:
3. Ver apreciada a inconstitucionalidade da al. d) do artigo 10.° n.° 1 da Lei 34/2004 de 29 de julho, por violação do artigo 18.° da CRP, quando interpretada no sentido em que o apoio judiciário deverá ser cancelado se o beneficiário for condenado em litigância de má-fé, e essa condenação for confirmada por Tribunal de recurso, porquanto o princípio da proporcionalidade é posto em causa uma vez que o beneficiário passará a ser triplamente sancionado por uma mesma conduta, pois que terá de suportar não apenas a multa que lhe tenha sido aplicada em função da má-fé, mas ainda as taxas de justiça e demais encargos com o processo, e as custas de parte à parte contrária.
4. Ver apreciada a inconstitucionalidade da al. d) do artigo 10.° n.° 1 da Lei 34/2004 de 29 de julho, por violação do artigo 20.° da CRP, quando interpretada no sentido em que o apoio judiciário deverá ser cancelado se o beneficiário for condenado em litigância de má-fé, e essa condenação for confirmada por Tribunal de recurso, independentemente da situação económica em que o beneficiário se encontra.
E,
5. Ver apreciada a inconstitucionalidade da al. d) do artigo 10.° n.° 1 da Lei 34/2004 de 29 de julho, por violação do artigo 30.° n.° 4 da CRP, quando interpretada no sentido em que o apoio judiciário deverá ser cancelado se o beneficiário for condenado em litigância de má-fé, e essa condenação for confirmada por Tribunal de recurso, porquanto tal cominação implica necessariamente a perda de um direito civil constitucionalmente consagrado no artigo 20.° da CRP.
6. As questões suscitadas supra foram já desencadeadas na pronúncia à proposta de decisão de cancelamento do apoio judiciário concedido a fls.. de 25 de agosto de 2020, e na impugnação judicial da decisão de cancelamento do apoio judiciário a fls... dos autos de 13 de outubro de 2020».
4. Por despacho do relator, foram as partes notificadas para produzir alegações «com vista à apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 10.º, n.º 1, alínea d), da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho, na redação dada pela Lei n.º 47/2007, de 28 de agosto, quando interpretada no sentido de que o apoio judiciário deverá ser cancelado se o beneficiário for condenado por litigância de má fé e essa condenação for confirmada por tribunal de recurso, independententemente da situação económica em que o beneficiário se encontre», tendo a recorrente concluído o seguinte:
«I. Pretende a Recorrente ver apreciada a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 10.° n.° 1 al. d) da Lei 34/2004 de 29 de julho, por referência aos artigos 18.° n.° 2, 30.° n.° 4 e 20.°, todos da Constituição da República Portuguesa, porquanto a interpretação que lhes é dada, viola aqueles preceitos constitucionais.
II. Da análise da evolução legislativa da norma constante da al. d) do n.° 1 do artigo 10.° da Lei 34/2004 de 29 de julho, resulta que a mesma surge em contexto político (e legislativo) autoritário e repressivo dos direitos liberdades e garantias dos cidadãos, com vista à limitação do direito de acesso à justiça e aos tribunais, tendo permanecido na sua formulação original (estatuída primeiramente na al. d) do n.° 1 da Lei 7/70 de 9 de julho), até aos dias de hoje, mantendo por isso a sua ratio legis originária, determinando a sua aplicação prática, por consequência, a limitação de acesso ao direito e aos tribunais e à justiça.
III. O artigo 10.° n.° 1 al. d) da Lei 34/2004 de 29 de julho ofende o princípio da proporcionalidade, uma vez que da relação entre a carga coativa decorrente da aplicação da norma e o ganho para o interesse público que se visa alcançar, resulta que o prejuízo sofrido por quem tenha perdido o apoio judiciário em virtude da condenação, em sede de recurso, como litigante de má-fé, suportando todas as custas judiciais, multa pela má-fé, custas de parte da contraparte e eventualmente, indemnização pela má-fé (o custo total), é muito superior ao custo que o Estado tinha vindo a suportar com o benefício concedido para a litigância, e o Estado já será ressarcido através da multa aplicada pela má-fé, uma vez que quer a multa quer as custas judiciais, reverterão para o IGFEJ, e por isso para o Estado.
IV. De igual modo, a medida é claramente excessiva, porque também limita o acesso do beneficiário à tutela jurisdicional efetiva, porquanto o mesmo coibir-se-á de litigar por constatar que o risco que corre em ver mantida a condenação como litigante de má-fé em sede de recurso, poderá colocá-lo numa situação de precariedade económica superior à que já se encontra (visto que o mesmo só teve direito ao apoio judiciário, por se encontrar numa situação de precariedade económica).
V. Aplicando-se o subprincípio da adequação (decorrente do princípio da proporcionalidade), retirar-se o apoio judiciário a quem, em sede de recurso, seja condenado enquanto litigante de má-fé, não é meio idóneo ou apto, em abstrato e enquanto meio típico, a impedir que o estado custeie quem litiga de má-fé.
VI. A norma constante da al. d) do n.° 1 do artigo 10.° da Lei 34/2004 de 29 de julho ofende o princípio da proporcionalidade previsto no artigo 18.° n.° 2 da CRP, quando interpretada no sentido em que o apoio judiciário deverá ser retirado se o beneficiário for condenado em litigância de má-fé, e essa condenação for confirmada por Tribunal de recurso, uma vez que o beneficiário passará a ser triplamente sancionado por uma mesma conduta, já que terá de suportara multa que lhe tenha sido aplicada pela litigância de má-fé, as taxas de justiça e demais encargos com o processo e as custas de parte à parte contrária, o que representa um custo muito superior ao prejuízo que visa ressarcir e à conduta que almeja prevenir.
VII. Para efeitos de aplicação do artigo 30.° da CRP, o conceito de pena integra toda e qualquer consequência negativa imposta por lei em virtude da prática de determinada conduta, e direitos civis contemplam todos os direitos constitucionalmente consagrados, reconhecidos à pessoa.
VIII. Pelo que o artigo 30.° da CRP, ao determinar que nenhuma sanção pode acarretar a perda de um direito civil, prevê que o legislador não pode sancionar determinada conduta com a perda de um direito constitucionalmente consagrado, a menos que o faça por respeito aos limites previstos naquele preceito constitucional.
IX. A aplicação da al. d) do n.° 1 do artigo 10 da Lei 34/2004 de 29 de julho, faz com que o beneficiário do apoio judiciário que recorra de decisão judicial em que tenha sido, além da parte dispositiva da sentença, condenado enquanto litigante de má-fé, e veja essa condenação confirmada pela instância recursiva, vê-lhe retirado o benefício que concretizava o respetivo direito de acesso à justiça, e por isso, é-lhe limitado esse direito
X. Nestes termos, é inconstitucional a al. d) do artigo 10.° n.° 1 da Lei 34/2004 de 29 de julho, por violação do artigo 30.° n.° 4 da CRP, quando interpretada no sentido em que o apoio judiciário deverá ser retirado se o beneficiário for condenado em litigância de má-fé, e essa condenação for confirmada por Tribunal de recurso, porquanto tal cominação implica necessariamente a perda do direito civil, constitucionalmente consagrado no artigo 20.° da CRP.
XI. O desígnio primário quer do artigo 20.° da CRP, quer da Lei 34/2004 de 29 de julho, é permitir que todas pessoas acedam ao direito e à justiça, independentemente dos respetivos meios económicos, pelo que a única condição de concessão e manutenção do apoio judiciário é a capacidade económica do cidadão.
XII. A ratio do artigo 20.° da CRP é estabelecer a todas as pessoas o direito de acesso ao direito e à justiça, independentemente da sua condição económica, sendo este o rácio mínimo da norma, absolutamente inegável e insuscetível de limitação pelo legislador ordinário, o que não se compagina com a avaliação da conduta processual do beneficiário do apoio judiciário, e o legislador constitucional não pretendeu que esta fosse critério determinante quer para a concessão, quer para a manutenção, do apoio jurídico - se o dolo ou negligência grave na conduta social da pessoa, levada a juízo, não releva para efeitos de manutenção do apoio jurídico, o dolo ou negligência grave na respetiva conduta processual não poderá ser relevante para a manutenção do apoio concedido, quando as carências económicas que determinaram o benefício concedido ainda se mantenham.
XIII. O cancelamento do apoio judiciário conferido ao beneficiário que veja, em sede de recurso, confirmada a sua condenação como litigante de má-fé, não tem em conta a sua capacidade económica, e nem a sua débil situação financeira (que determinou que o mesmo pudesse aceder ao apoio judiciário), a qual será, ainda, agravada com a responsabilidade pelo pagamento das custas judicias e demais encargos com o processo (acrescidas da multa pela má-fé processual, custas de parte da parte contrária, e eventualmente, indemnização à outra parte pela má-fé e honorários de advogado nomeado) - pelo que a aplicação da al. d) do n.° 1 do artigo 10.° da Lei 34/2004 de 28 de julho não só desrespeita o critério da insuficiência económica para concessão do apoio judiciário, como contribui para o agravamento da situação económica do beneficiário, colocando-o perante a impossibilidade económica de pagar as custas do processo.
XIV. A al. d) do n.° 1 do artigo 10.° da Lei 34/2004 de 29 de julho, na sua atual redação, viola o artigo 20.° n.° 1 da CRP, quando interpretada no sentido em que o apoio judiciário deverá ser retirado se o beneficiário for condenado como litigante de má-fé, e essa condenação for confirmada por Tribunal de recurso, independentemente da situação económica em que o beneficiário se encontra».
5. Não foram apresentadas contra-alegações.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
6. A norma que constitui o objeto do presente recurso foi extraída do artigo 10.º, n.º 1, alínea d), da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho, segundo o qual «[a] proteção jurídica é retirada, quer na sua totalidade quer relativamente a alguma das suas modalidades, [s]e, em recurso, for confirmada a condenação do requerente como litigante de má fé». De acordo com a sentença recorrida, «[t]endo o requerente sido condenado como litigante de má fé e a respetiva decisão sido corroborada por via de recurso, deixa, por isso, de continuar a beneficiar do apoio judiciário que lhe tenha sido antes concedido», não podendo «o mesmo requerente para a ação ou seus apensos solicitar novamente tal proteção» e não tendo o cancelamento «por base qualquer avaliação de insuficiência económica», mas apenas a «gravidade/seriedade» do instituto (litigância de má fé) aplicado». Assim, a lei foi interpretada no sentido de que a condenação, confirmada em recurso, do beneficiário de apoio judiciário como litigante de má fé, determina ipso facto – sem ponderação da sua situação económica ou dos fundamentos da condenação − o cancelamento definitivo da proteção jurídica no processo.
Tanto na impugnação contenciosa que originou a sentença recorrida, como no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, a recorrente invoca que a norma aqui em causa viola a proibição da denegação de justiça por insuficiência de meios económicos, o princípio da proporcionalidade na restrição de direitos, liberdades e garantias, e a proibição da perda de direitos civis como efeito necessário da aplicação de uma pena, consagrados – respetivamente − no n.º 1 do artigo 20.º, no n.º 2 do artigo 18.º e no n.º 4 do artigo 30.º da Constituição. No corpo da alegação produzida no Tribunal Constitucional, porém, a recorrente aflora uma questão de constitucionalidade orgânica a respeito da norma sindicada, embora sem indicar claramente o parâmetro que entende ter sido violado e sem formular a este propósito conclusão alguma. Ainda que tenha sido sua intenção suscitar uma questão adicional – o que, pelas razões aduzidas, é muito duvidoso –, nunca a mesma poderia constituir o Tribunal Constitucional num dever de pronúncia, pois quanto a ela não foi observado o ónus de suscitação prévia e processualmente adequada (v., neste sentido, os Acórdãos n.ºs 139/2003, 698/2016 e 33/2018). Em todo o caso, atendendo ao poder de conhecimento oficioso atribuído pelo artigo 79.º-C da LTC, vale a pena sublinhar que a disposição de que foi extraída a norma sindicada nos presentes autos consta de lei parlamentar desde que foi aprovado o regime de acesso ao direito e aos tribunais pela Lei n.º 34/2004, de 29 de julho, de modo que é manifesto não padecer de nenhum vício orgânico.
7. A conexão entre a condenação definitiva da parte como litigante de má fé e o cancelamento da proteção jurídica surge, num exame perfuntório, como uma evidência. Com efeito, partindo-se do pressuposto de que o litigante de má fé abusa do direito de ação ou de defesa num determinado processo, fazendo um uso indevido do sistema judicial – contrário ou estranho ao fim de tutelar direitos ou interesses legalmente protegidos −, é absurdo continuar a prestar-lhe um apoio destinado a «assegurar que a ninguém seja dificultado ou impedido, em razão da sua condição social ou cultural, ou por insuficiência de meios económicos, o conhecimento, o exercício ou a defesa dos seus direitos» (artigo 1.º, n.º 1, da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho). O Estado incorre em ostensiva contradição se, a respeito do mesmo sujeito num determinado processo, censurar o abuso do direito de acesso aos tribunais e continuar a subsidiar o exercício do mesmo. Se é certo que o inciso final do n.º 1 do artigo 20.º da Constituição proíbe a denegação da justiça por insuficiência de meios económicos, não é menos verdade que dela não se pode retirar nenhum argumento contra a denegação do abuso da justiça – pelo contrário, a dimensão objetiva do direito a uma justiça célere e equitativa, consagrado no n.º 4 do artigo 20.º, implica que o Estado tenha o dever de prevenir e reprimir o recurso malicioso, temerário ou leviano aos tribunais. Trata-se aqui – como refere doutrina com quase vinte séculos − daquelas «precauções que os primitivos juristas tomaram para que os homens não entrassem em litígio de ânimo leve; tal propósito foi sobretudo conseguido, umas vezes pela imposição de uma pena pecuniária ao aventureirismo tanto dos autores como dos demandados, outras graças ao temor respeitoso que o juramento inspira a uns e a outos» (Gaio, Instituições – Direito Privado Romano, tradução de J. A. Segurado e Campos, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010, §171 [p. 483]).
Sucede que todo este raciocínio repousa num pressuposto errado: o de que há uma relação necessária entre litigância de má fé e mérito da causa, ou seja, o de que a sucumbência é, no atual estado da questão, uma condição necessária (ainda que obviamente insuficiente) da má fé processual. Não há dúvida de que essa era a fisionomia originária do instituto, como revela o seguinte passo das Ordenações Filipinas, a propósito da condenação da parte vencida em custas: «[e] no caso em que, o vencido foi em culpa somente de fazer demanda, que não devera, sem outra malícia, será condenado em custas singelas. E sendo achado em malícia será condenado nas custas em dobro, ou tresdobro, segundo a malícia, em que for achado. E porque acerca disto não se pode dar certa regra, ficará em arbítrio do Julgador» (Ord., Livro III, Título 67, §1). Porém, o artigo 465.º do Código de Processo Civil de 1939 já dava de litigante de má fé uma definição muito mais ampla do que a antiga, como «não só o que tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não podia razoavelmente desconhecer, como também o que tiver conscientemente alterado a verdade dos factos ou omitido factos essenciais e o que tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal ou de entorpecer a ação da justiça ou de impedir a descoberta da verdade». Dissipando toda a dúvida sobre a matéria que nos ocupa, acrescentava o § único que «[a] parte vencedora pode ser condenada como litigante de má fé, mesmo na causa principal, quando tenha procedido com dolo instrumental».
Em anotação a esta disposição, Alberto dos Reis distinguia entre um dolo substancial, que «diz respeito ao fundo da causa, ou melhor, à relação jurídica material ou de direito substantivo», e um dolo instrumental, que «diz respeito à relação jurídica processual», esclarecendo que «no primeiro caso o litigante usa de dolo ou má fé para obter decisão de mérito que não corresponde à verdade e à justiça», ao passo que «no segundo caso a parte procura sobretudo cansar e moer o seu adversário, ou somente pelo espírito de fazer mal, ou na expectativa condenável de o desmoralizar, de o enfraquecer, de o levar a uma transacção injusta» (Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 3.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1948, reimp. 2005, pp. 263-64). Este quadro legal manteve-se substancialmente inalterado no Código de Processo Civil de 1961, merecendo de Manuel de Andrade a observação de que «[o] dolo substancial só pode dar-se na parte vencida, mas o dolo instrumental pode dar-se também na parte vencedora» e que «pode haver má fé, tanto substancial como instrumental, por parte do litigante que desiste ou que confessa o pedido» (Noções Elementares de Processo Civil, edição com a colaboração de Antunes Varela, Coimbra: Coimbra Editora, 1976, p. 358). Com a entrada em vigor do Decreto–Lei n.º 180/96, de 25 de setembro – um dos diplomas que operou a denominada Revisão de 1995-1996 do Código de Processo Civil −, foi eliminada a referência expressa à possibilidade de condenação da parte vencedora, sem que a doutrina deixasse de assinalar que «[o] desaparecimento deste preceito não implica que a parte vencedora tenha deixado de poder ser condenada como litigante de má fé; basta, para o verificar, considerar a violação do dever de cooperação» (José Lebre de Freitas/A. Montalvão Machado/Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2.º, Coimbra: Coimbra Editora, 2001, p. 196).
No Código de Processo Civil vigente, o n.º 2 do artigo 542.º prevê quatro tipos de litigância de má fé: a dedução de pretensão ou oposição cuja falta de fundamento a parte não devia ignorar; a alteração da verdade dos factos ou omissão de factos relevantes para a decisão da causa; a «omissão grave do dever de cooperação» (em bom rigor: a omissão grave de cooperação devida); e o uso manifestamente reprovável do processo ou dos meios processuais, com o fim de se conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão. Só o primeiro tipo parece absolutamente incompatível com o vencimento da causa, correspondendo em boa medida ao paradigma histórico do litigante malicioso ou calunioso como aquele que «sabe que não tem razão e que, não obstante o conhecimento desta circunstância, intervém processualmente, quer deduzindo uma pretensão que sabe não lhe assistir, quer apresentando uma defesa que sabe ser destituída de fundamento» (Paula Costa e Silva, Litigância de Má Fé, Coimbra: Coimbra Editora, 2008, p. 290). Até mesmo no caso de alteração da verdade dos factos, como a adulteração de documentos relevantes ou o aproveitamento de testemunhos falsos, não está excluído que a parte tenha razão quanto ao fundo da causa. Em suma, não se pode inferir do mero facto de alguém ter sido definitivamente condenado como litigante de má fé que abusou do direito de acesso aos tribunais em sentido substancial – o mesmo é dizer, que não atuou com base na convicção razoável de que estava a defender os seus direitos ou interesses legalmente protegidos.
8. A inexistência de uma conexão necessária entre a condenação por litigância de má fé e o abuso do direito de acesso aos tribunais – por outras palavras, a possibilidade de alguém poder litigar de má fé sem deixar de prosseguir no processo a defesa dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos – altera radicalmente os termos da questão de constitucionalidade que se coloca nos presentes autos.
Assim é porque, ao comportar a possibilidade de denegação de justiça por insuficiência de meios económicos, a norma sindicada – nos termos da qual a condenação definitiva como litigante de má fé implica ipso facto o cancelamento da proteção jurídica – constitui uma restrição severa do direito de acesso aos tribunais. Dela resulta que a parte que tenha violado com gravidade o dever de cooperação ou tenha entorpecido a ação da justiça, sem que a pretensão que procura fazer valer no processo seja manifestamente infundada, se pode ver na contingência de não gozar, por insuficiência de meios económicos, de tutela jurisdicional efetiva. Imagine-se a seguinte situação extrema: o beneficiário de apoio judiciário obtém pleno vencimento de causa em primeira instância, sendo ainda condenado por litigância de má fé instrumental, vindo a parte que decaiu a interpor recurso da decisão quanto ao fundo e a parte vencedora da condenação como litigante de má fé; ambas as condenações são confirmadas pela segunda instância, sendo a decisão quanto à litigância de má fé definitiva e a decisão quanto ao fundo passível de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça; destituído de meios para pagar a taxa de justiça e suportar os demais custos do recurso de revista, e vendo ser-lhe cancelada a proteção jurídica com fundamento no disposto no artigo 10.º, n.º 1, alínea d), da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho, o recorrido é efetivamente privado do seu direito de defesa. Em casos deste tipo, o sistema de justiça não realiza o imperativo constitucional de que «os litigantes carecidos de meios económicos para a demanda se não vejam, por esse facto, impedidos de defender em juízo os seus direitos, nem tão-pouco sejam colocados em situação de inferioridade perante a contraparte com capacidade económica» (Acórdãos n.ºs433/87, 127/08 e 582/2014). Coloca-se, pois, a questão de saber se a norma sindicada deve ser julgada inconstitucional, por restringir de forma excessiva o direito de acesso aos tribunais, em violação das disposições conjugadas do n.º 1 do artigo 20.º e do n.º 2 do artigo 18.º da Constituição.
A respeito da metódica de aplicação do princípio da proibição do excesso, lê-se no Acórdão n.º 123/2018:
«Como reconhece, há muito, a jurisprudência constitucional (v., por todos, o Acórdão n.º 187/2001), o princípio da proibição do excesso analisa-se em três subprincípios: idoneidade, exigibilidade e proporcionalidade. O subprincípio da idoneidade determina que o meio restritivo escolhido pelo legislador não pode ser inadequado ou inepto para atingir a finalidade a que se destina; caso contrário, admitir-se-ia um sacrifício frívolo de valor constitucional. O subprincípio da exigibilidade determina que o meio escolhido pelo legislador não pode ser mais restritivo do que o indispensável para atingir a finalidade a que se destina; caso contrário, admitir-se-ia um sacrifício desnecessário de valor constitucional. Finalmente, o subprincípio da proporcionalidade determina que os fins alcançados pela medida devem, tudo visto e ponderado, justificar o emprego do meio restritivo; o contrário seria admitir soluções legislativas que importem um sacrifício líquido de valor constitucional».
Porém, como se explica no Acórdão n.º 349/2018, a aplicabilidade do princípio da proibição do excesso depende da verificação de dois pressupostos – por um lado, uma restrição legal de um direito, liberdade e garantia ou um direito fundamental de natureza análoga; por outro, que a restrição seja um meio de prosseguir uma finalidade legítima, segundo o quadro de valores constitucional:
«[A] aplicação do princípio da proibição do excesso, desdobrado nos seus três «testes» ou subprincípios», pressupõe dois passos omitidos na decisão recorrida. O primeiro passo é verificar da existência de uma restrição a um direito fundamental ou da afetação negativa de uma outra grandeza axiológica a cujo respeito e promoção a ordem constitucional vincula o legislador ordinário; a proibição do excesso que decorre do princípio do Estado de direito é a proibição do sacrifício desproporcionado do que seja valioso, pelo que é imprescindível determinar-se a natureza e o alcance do desvalor que atinge o comportamento estadual. O segundo passo é a identificação de um fim legítimo a cuja prossecução o comportamento estadual restritivo se encontra ordenado; se a finalidade de uma medida que sacrifica valores constitucionais for censurada ou proscrita pela ordem constitucional, não há nenhuma razão válida para ponderar a admissibilidade do sacrifício – nenhum bem cuja promoção possa justificar o emprego de um meio desvalioso».
Tendo-se firmado o carácter restritivo do direito de acesso aos tribunais da norma sindicada, importa agora determinar se a mesma está orientada a uma finalidade legítima. Trata-se, em bom rigor, de indagar se a norma sindicada observa a exigência – constante do n.º 2 do artigo 18.º da Constituição − de que as restrições de direitos tenham por finalidade exclusiva «salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos». Ora, a finalidade mais óbvia da solução prevista na alínea a) do n.º 2 do artigo 10.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho, pelo menos na interpretação que lhe foi dada nos presentes autos, não pode ser reconduzida a nenhum direito ou interesse com expressão constitucional – o que autoriza a conclusão de que se trata de uma restrição proibida.
Vejamos.
A multa em que o litigante de má fé é condenado, segundo o disposto no n.º 1 do artigo 542.º do Código de Processo Civil, tem o carácter de uma sanção punitiva. A respeito do preceito homólogo na lei processual então vigente, referia Alberto dos Reis que «[a] multa tem o carácter de pena; a má fé no litígio aparece, aos olhos da lei, como procedimento imoral que carece de sanção. A multa visa desempenhar a função de qualquer pena: punir o delito cometido (função repressiva), evitar que o mesmo ou outros o pratiquem no futuro (função preventiva)» (Código de Processo Civil Anotado, cit., p. 269). Se a lei determina que a condenação definitiva − «em recurso» − da parte por litigância de má fé importa ainda, em qualquer caso, a perda do direito à proteção jurídica que lhe havia sido concedida por insuficiência de meios económicos, alimenta-a o juízo de que o beneficiário deixou de merecer essa proteção, sem a qual não pode exercer o direito fundamental de acesso aos tribunais. Só que ninguém pode ser penalizado pelo mero facto de ter sido condenado por certo delito e sancionado nos termos legais, como se a sanção cobrisse o agente de estigma e ignomínia, justificando a privação de outros direitos de que é titular e debilitando a sua dignidade. Como se escreveu no Acórdão n.º 354/2021, ainda que num contexto diverso, «a dignidade pessoal e os direitos fundamentais não honram a excelência cívica de algumas pessoas, antes radicam na humanidade de que todas participam igualmente. Numa democracia constitucional, ao contrário de um regime aristocrático, timocrático ou oligárquico, a dignidade é um atributo da pessoa enquanto tal, não do cidadão exemplar ou da personalidade ilustre».
Ao determinar que o litigante de má fé perde automaticamente o direito a proteção jurídica no processo, a norma sindicada parece ser informada por uma finalidade censória ou retributiva, que não encontra nenhum fundamento na axiologia constitucional. Na medida em que não discrimina − nem autoriza que se pondere − o fundamento da condenação, abrangendo indistintamente os casos em que se verifica abuso do direito de acesso aos tribunais e aqueles em que a parte violou deveres processuais que têm por fito salvaguardar os imperativos de verdade, equidade e celeridade da justiça, a norma repousa no juízo de que o beneficiário, em virtude da sua conduta censurável, deixou de merecer a proteção jurídica que lhe havia sido concedida por insuficiência de meios económicos – como se essa proteção não fosse um verdadeiro direito, antes uma manifestação de generosidade condicionada pela demonstração continuada de probidade e gratidão de quem dela beneficia. Importa sublinhar que, ao contrário do que sucede em todos os demais casos previstos no n.º 1 do artigo 10.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho, o cancelamento a que respeita a alínea d) não é determinado por uma modificação do juízo sobre a necessidade do apoio ou a comprovação dessa necessidade; é uma consequência automática da condenação definitiva do beneficiário como litigante de má fé, como se a conduta processual deste o tornasse um pária no processo e o desmerecesse dos direitos ou interesses que no processo procura fazer valer. Trata-se, pois, de uma norma restritiva que não se destina a salvaguardar nenhum direito ou interesse constitucionalmente protegido, o que só por si justifica que seja julgada inconstitucional.
9. A única finalidade legítima que se pode atribuir a um regime que determina o cancelamento da proteção jurídica, quando o beneficiário é condenado em recurso como litigante de má fé, é a de controlar o abuso do direito de acesso aos tribunais, evitando que o Estado seja colocado na posição insustentável de subsidiar o que julga − a título definitivo − constituir uma utilização indevida do sistema de justiça. Mas se essa fosse a finalidade da norma aqui em causa, seria de concluir que, não obstante idónea ou adequada, a mesma seria manifestamente inexigível ou desnecessária, uma vez que abrange sem distinção alguma os casos de litigância de má fé substancial e instrumental. É de notar que se o propósito do legislador fosse o de prevenir o abuso do sistema de justiça subsidiado pelos contribuintes, o regime bem poderia devolver ao aplicador do direito a ponderação das circunstâncias do caso concreto ou estabelecer uma conexão necessária entre o cancelamento da proteção jurídica e o tipo de ilícito previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo 10.º da
Lei n.º 34/2004, de 29 de julho, porventura acompanhada de uma possibilidade residual de aplicação ponderada da mesma consequência em casos de outro tipo em que se pudesse concluir que se verifica um abuso da justiça. A desnecessidade da restrição operada pelo regime vigente – o cancelamento da proteção jurídica – prende-se precisamente com o seu âmbito demasiado extenso de aplicação: um regime alternativo aplicável apenas a situações de má fé substancial alcançaria a mesma finalidade com eficácia semelhante e menor carga restritiva. Está claro que compete ao legislador, no uso da sua liberdade de conformação política, articular um quadro legal com essas características gerais neste domínio.
Enfim, mesmo que fosse de concluir que o efeito restritivo do direito de acesso aos tribunais gerado pela norma sindicada é necessário para alcançar a finalidade legítima de controlar a utilização indevida do sistema judicial, nunca se poderia duvidar seriamente da sua desproporcionalidade. A denegação da justiça por insuficiência de meios económicos, a que este regime conduz inevitavelmente num conjunto mais ou menos alargado de casos, é uma das medidas mais gravosas que se pode conceber num Estado de direito. A contrapartida do monopólio estatal da violência legítima e do carácter excecional da autotutela lícita de direitos é o acesso universal aos tribunais. E a contrapartida de a justiça não ser gratuita – melhor dizendo, integralmente financiada através de receitas fiscais –, quer porque os interessados têm de suportar os custos de parte, quer porque têm de pagar a taxa de justiça e financiar os encargos do processo, é a existência de um sistema de proteção jurídica, sobretudo na vertente de apoio judiciário, de que se possam valer aqueles que não têm meios para defenderem os seus direitos em tribunal. A repressão da litigância de má fé e a prevenção do abuso do sistema de justiça, sem deixarem de ser desideratos legítimos, não podem de modo algum justificar que a cada direito não corresponda efetiva e razoavelmente uma ação ou defesa judicial. Acresce que tais finalidades são já em larga medida asseguradas pela multa em que o litigante de má fé é condenado, multa essa – importa sublinhá-lo – que o beneficiário de apoio judiciário não está dispensado de pagar. Por isso, é manifesto que a norma sindicada, sem prejuízo do mais que se argumentou, não passa no crivo da proporcionalidade em sentido estrito, consubstanciando uma restrição excessiva do direito de acesso aos tribunais. É quanto basta para se conceder provimento ao presente recurso.
10. Não tendo os recorridos apresentado contra-alegações, são isentos de custas, segundo o disposto no n.º 3 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 91/2008, de 2 de junho.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) Julgar inconstitucional, por violação das disposições conjugadas do n.º 1 do artigo 20.º e do n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, o artigo 10.º, n.º 1, alínea d), da Lei n.º 34/2004, de 29 de junho, na redação dada pela Lei n.º 47/2007, de 28 de agosto, quando interpretado no sentido de que que a condenação do beneficiário de apoio judiciário como ligante de má fé confirmada em recurso determina ipso facto – sem nenhuma ponderação da sua situação económica ou dos fundamentos da condenação − o cancelamento definitivo da proteção jurídica no processo.
b) Conceder provimento ao recurso, determinando-se a reforma da decisão recorrida em conformidade com o presente juízo de inconstitucionalidade.
Não são devidas custas.
Lisboa, 12 de maio de 2022 - Gonçalo Almeida Ribeiro - Afonso Patrão
O relator atesta o voto de conformidade do Senhor Presidente Juiz Conselheiro João Pedro Caupers, da Senhora Conselheira Joana Fernandes Costa e dos Senhores Conselheiros Lino Ribeiro e Afonso Patrão (com declaração de voto), que participaram na sessão por videoconferência.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Subscrevo a decisão e a sua fundamentação. Considero, no entanto, que o julgamento de inconstitucionalidade deveria ter recaído também na proibição de efeitos automáticos das penas, decorrente do n.º 4 do artigo 30.º da Constituição.
Atento o caráter punitivo da condenação definitiva em litigância de má fé (uma pena civil), a circunstância de a lei, sem atender à variedade de situações potencialmente em causa, determinar como sua consequência necessária o cancelamento da proteção jurídica — direito de que depende o exercício da garantia de acesso aos tribunais — só pode ser entendida como um desmerecimento do visado, cobrindo-o de estigma e ignomínia. Sobretudo porquanto, como bem se assinala nos pontos 7. e 8. da fundamentação, não existe conexão convincente entre as condutas subjacentes à condenação e a necessidade do efeito automático sancionatório.
Considero, pois, que a teleologia e a axiologia do disposto no n.º 4 do artigo 30.º da Constituição não se cingem ao domínio criminal, sob pena de se aceitar a conclusão de que condutas sancionadas à margem do aparelho penal (que serão, prima facie, menos graves) admitem um lastro estigmatizante da pena e uma punição para além da sua estrita necessidade.
Afonso Patrão