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ACÓRDÃO N.º 163/2021

Processo n.º 702/20

2.ª Secção

Relatora: Conselheira Mariana Canotilho

 

 

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

 

 

I. Relatório

 

1.     Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), em que é recorrente A. e recorridos o Ministério Público e o Município de Santarém, foi pelo primeiro interposto recurso de constitucionalidade ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, adiante designada por LTC), do acórdão proferido por aquele Tribunal (fls. 212-235), em 21 de agosto de 2020, indicando, no requerimento de interposição, como objeto “o entendimento normativo dado pelo Supremo Tribunal de Justiça ao art. 432.º, n.º 1, a) do CPP, segundo o qual o acórdão do Tribunal da Relação proferido ao abrigo do n.º 3, do art. 135.º, do CPP, não constitui uma decisão proferida em 1.ª instância, é inconstitucional, por violação das garantias de defesa e do direito ao recurso, previsto no art. 32.º, n.º 1 da CRP” (fls. 246).

 

2.     No curso do processo a quo, o ora recorrente teve intentado contra si despacho de acusação pela prática, em coautoria material e em concurso real, de três crimes de prevaricação e de dois crimes de participação económica em negócio. O arguido-recorrente requereu a abertura da instrução e solicitou a prestação de depoimento de uma testemunha que, à data dos factos, era o advogado da sociedade de construções envolvida no diferendo com a Câmara Municipal de Santarém, a respeito de obras públicas, que deu origem ao processo penal. Neste contexto, aberta a instrução, o referido advogado comunicou nos autos o seu pedido de dispensa do segredo profissional, apresentado ao Conselho Regional do Porto da Ordem dos Advogados. Em seguida, ele próprio, sem intervenção judicial, veio informar que tal dispensa havia sido indeferida, impedindo-o, assim, de depor relativamente aos factos relevantes. Importa notar que a informação dada pelo advogado ao juízo contém apenas o ofício expedido pela Ordem dos Advogados, no sentido do indeferimento da dispensa requerida, sem que, no entanto, constem dos autos os fundamentos e razões que culminaram nessa decisão (cf. fls. 227).

Com isso, o arguido-recorrente suscitou perante o Juiz de Instrução Criminal o incidente processual de levantamento do sigilo profissional, na forma do artigo 135.º do CPP, a ser tramitado junto do Tribunal da Relação de Évora. Esse tribunal apreciou, então, o incidente da quebra de segredo devido pelo advogado (fls. 84-101), tendo considerado que o seu depoimento “não se mostra, no caso concreto, imprescindível à descoberta da verdade material, que se pretende alcançar e, na perspetiva da defesa do arguido, ora requerente, não se vislumbra que sem esse depoimento, fique inviabilizada a possibilidade de fazer prova da matéria que alegou”. Desta forma, o TRE julgou improcedente o incidente de quebra do segredo profissional.

 

3.       Inconformado, o ora recorrente interpôs recurso para o STJ (fls. 109-116), alegando que a gravidade do crime em causa justificaria a relevância do depoimento para a defesa, como interesse preponderante no litígio. Nesse aspeto, a par da argumentação sobre o direito infraconstitucional, formula, inicialmente, duas questões de constitucionalidade, a saber, quanto ao sentido extraído do artigo 135.º, n.º 3, do CPP de que o segredo profissional prevalece sobre o interesse da descoberta da verdade e da defesa do arguido, sem que se conheça a razão da recusa do seu levantamento e, também, quanto à eventual inadmissibilidade do recurso interposto contra a decisão do Tribunal da Relação, na hipótese de se concluir que ela não constitui uma decisão proferida em 1ª instância, à luz do artigo 432.º, n.º 1, al. a), do CPP face ao artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (conforme, efetivamente, sustentou o Ministério Público naquela sede). No julgamento, o STJ entendeu não se verificar qualquer inconstitucionalidade e, atendendo à questão prévia aventada pelo representante do Ministério Público, concluiu pela inadmissibilidade do recurso (fls. 174-193).

Ainda inconformado, o recorrente apresentou reclamação para a conferência do STJ, na forma do artigo 417.º, n.º 8, do CPP, argumentando o seguinte (fls. 200-202):

 

«1. O arguido, no recurso para este Supremo Tribunal, já se havia debruçado previamente sobre a admissibilidade de recurso do acórdão proferido pela Relação de Évora, que julgou improcedente o incidente de quebra do segredo profissional.

2. Na sua peça recursória, o Arguido já havia justificado a razão pela qual entende que a decisão da Relação de Évora é recorrível, nos termos do art. 423.º, n.º 1, a), do CPP, por ser uma decisão proferida em primeira instância.

3. Ao invés, na decisão sumária ora reclamada, sustenta a Senhora Juíza Conselheira Relatora que a questão controversa foi suscitada no âmbito do Tribunal da Comarca de Santarém, razão pela qual a Relação de Évora atuou como um verdadeiro tribunal de 2ª instância.

[…]

6. Como decorre da jurisprudência divergente que tem vindo a ser produzida sobre esta matéria, a questão não é líquida.

7. Porém, salvo melhor opinião, não parece que assista razão à decisão sumária.

8. O tribunal da 1ª instância, ou seja, o tribunal onde corre o processo, analisa e decide da (i)legitimidade da escusa; mas a quebra do segredo só foi analisada e decidida pela Relação de Évora.

9. Ou seja, o tribunal de 1ª instância não julgou o incidente de quebra de segredo profissional oportunamente suscitado, quem o julgou foi o Tribunal da Relação, pelo que, independentemente da questão ter sido suscitada na 1ª instância, a única decisão tomada foi aquela que foi objeto do acórdão do TRE, ora recorrido.

10. In casu, a Relação de Évora apreciou pela primeira vez a questão da quebra do segredo, a qual não foi apreciada pelo Tribunal da Comarca de Santarém, que se limitou a verificar a legitimidade da escusa.

11. Pelo exposto, a garantia constitucional do direito ao recurso só é assegurada se efetivamente o julgamento efetuado em 1ª instância pelo Tribunal da Relação puder ser reapreciado, por via de recurso, pelo Supremo Tribunal de Justiça.

12. Como já se expendeu na motivação do recurso e na resposta ao Parecer do Ministério Público, entende-se que padece de inconstitucionalidade o entendimento normativo dado ao art. 432.º, n.º 1, al. a), do CPP, no sentido de que não é recorrível para o STJ o acórdão da Relação que, em 1ª instância, decide o incidente de levantamento do sigilo profissional previsto no art. 135.º, n.º 3, do CPP, por violação das garantias de defesa e do direito ao recurso, previsto no art. 32.º, n.º 1, da CRP.

[…]

20. Os arguidos são condenados ou absolvidos em função da prova produzida; se ao Arguido é cerceado o direito a produzir prova, pode de nada lhe servir ter direito ao recurso da decisão de mérito final.

21. Assim sendo, entendemos que o art. 432.º, n.º 1 do CPP não pode ser lido de forma restritiva, de forma a excluir do seu âmbito o recurso de uma decisão proferida pela Relação que decide em 1ª instância o incidente de quebra do sigilo profissional previsto no art. 135.º, n.º 3 do CPP.

22. Neste quadro, renova-se a inconstitucionalidade arguida, relativamente ao entendimento normativo adotado à norma do art. 432.º, n.º 1 do CPP, devidamente conjugado com o art. 434.º do mesmo código, no sentido supra exposto.»

 

 

Antes de mais, como é bom de ver desde logo, o recorrente, nesta que é a peça de suscitação prévia, no momento processualmente adequado, para efeitos do presente recurso de constitucionalidade e do preenchimento dos seus requisitos de admissibilidade, cinge-se a uma única questão jusconstitucional como objeto da sua pretensão submetido à apreciação, a saber, a dimensão normativa extraída da interpretação do artigo 432.º, n.º 1, alínea a) do CPP, no sentido de que não é recorrível para o STJ o acórdão da Relação que, em 1ª instância, decide o incidente de levantamento do sigilo profissional previsto no art. 135.º, n.º 3, do CPP, por violação das garantias de defesa e do direito ao recurso, previsto no art. 32.º, n.º 1, da CRP. Desta forma, há que se constatar que o recorrente abandonou a anteriormente explicitada (v. ponto 3, supra) questão quanto ao sentido extraído do artigo 135.º, n.º 3, do CPP, nos termos do qual o segredo profissional prevalece sobre o interesse da descoberta da verdade e da defesa do arguido, sem que se conheça a razão da recusa do seu levantamento.

Nesta sequência, a conferência do STJ, em 21 de agosto de 2020, proferiu o acórdão ora atacado, em que decidiu indeferir a reclamação, tendo determinado, no essencial, que:

 

«O Ministério Público junto deste STJ entende que o recurso, embora tendo sido tempestivamente interposto, não é admissível para o STJ, nos termos do artigo 432º do CPP, não cabendo a decisão proferida pelo Tribunal da Relação, enquanto tribunal imediatamente superior aquele onde foi suscitada a quebra de segredo, no conceito de “decisão das relações proferidas em 1ª instância” prevista no n.º 1, do artigo 432.º do CPP, pelo que deve ser rejeitado, por inadmissibilidade legal.

O arguido vem defender e manter na reclamação, o contrário, ou seja, que a decisão do tribunal da Relação é uma decisão proferida em 1ª instância, sendo, por isso, recorrível, nos termos do disposto no artigo 432.º, n.º 1, al. a), do CPP.

Como se disse na decisão reclamada, e transcreve-se:

(…) a obtenção de prova sobre factos ou documentos abrangidos por segredo profissional, invocado como escusa a depor ou como recusa de apresentação, é suscetível de gerar um incidente processual com vista a obter a quebra do segredo mediante a intervenção do tribunal da 1.ª instância, destinada a verificar a legitimidade da recusa, e a intervenção do tribunal da Relação, destinada a decidir a quebra do segredo.

Concluindo o tribunal da 1.ª instância que a escusa ou a recusa são legítimas, por estarem legalmente protegidas por segredo, cabe ao “tribunal imediatamente superior” decidir da quebra do segredo.

A decisão de quebra do segredo forma-se, assim, através da participação de tribunais de dois diferentes níveis de hierarquia no procedimento a ela destinado – o da 1.ª instância, onde corre o processo, que é, em regra, o tribunal de comarca - artigo 80.º, da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto -, e o da 2.ª instância, que é, em regra, o tribunal da Relação - artigo 67.º, n.º 1, do mesmo diploma.

Trata-se de uma competência que é conferida ao tribunal da Relação pelo artigo 12.º, n.º 2, alínea e), do CPP: “exercer as demais atribuições conferidas por lei”; e, pelo artigo 73.º, alínea h), da Lei n.º 62/2013, a de “exercer as demais competências conferidas por lei”.

Sendo, na hierarquia dos tribunais, o tribunal imediatamente superior àquele em que o incidente foi suscitado – artigos 31.º a 33.º da Lei n.º 62/2013 e 67.º a 69.º do Código de Processo Civil (CPC) – é este, tribunal da Relação, o competente para o efeito.

A intervenção destes dois tribunais na decisão do incidente corresponde a duas fases processuais distintas.

Numa primeira fase, a que se refere o n.º 2, do artigo 135.º do CPP, em que intervém o tribunal da 1.ª instância, perante o qual corre o processo, trata-se de saber se a escusa ou a recusa são legítimas, isto é, se a pessoa se pode escusar a depor, ou se pode recusar fornecer documentos por estar vinculada a um dever de segredo profissional ou de funcionário. Esta questão - legitimidade da escusa ou recusa - deverá ser decidida após a realização das diligências necessárias.

No caso de o tribunal de 1.ª instância concluir pela ilegitimidade da escusa ou da recusa, ordena a prestação do depoimento ou a apresentação dos documentos.

A intervenção do tribunal da Relação surge, apenas, naquelas situações em que, reconhecida a legitimidade da escusa ou da recusa, a pessoa visada (in casu, uma testemunha arrolada pelo arguido) não está obrigada a depor ou a apresentar documento por força da decisão do tribunal da 1.ª instância, e enquanto “tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado”, nos termos do disposto no artigo 135.º, n.º 3, do CPP.

Não se trata de discutir a legitimidade da escusa ou da recusa. O que, nesta fase, há que apreciar e decidir é se, perante o conflito entre o dever de testemunhar - artigo 131.º, n.º 1, do CPP - e o dever de guardar segredo, se justifica a quebra do segredo segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente, tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento ou dos documentos para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos.

Pelo que o tribunal da Relação não age, deste modo, enquanto tribunal de 1.ª instância, ou seja, enquanto tribunal ao qual compete, em regra, preparar e julgar processos, uma vez que tal competência se limita aos casos previstos nas alíneas a), c) e d), do artigo 12.º, do CPP. Aliás, no caso da alínea a) deste preceito, aqui sim, trata-se de processo que correndo na Relação, em primeira instância, a competência para a decisão de quebra caberia ao Supremo Tribunal de Justiça, por, nesse caso, ser o tribunal imediatamente superior, nos termos do artigo 135.º, n.º 3, do CPP.

A decisão do tribunal da Relação, embora diga respeito a um processo que corre em primeira instância, não corresponde a uma decisão proferida no exercício de uma competência de tribunal de 1.ª instância, mas sim, a uma decisão da competência de “tribunal imediatamente superior” a este (1.ª Instância), dentro da hierarquia dos tribunais.

Pelo que, não correndo e não devendo o processo ser julgado no tribunal da Relação e tendo a decisão recorrida sido proferida por este tribunal por, nos termos do n.º 3, do artigo 135.º, do CPP, ser o imediatamente superior ao tribunal onde foi suscitado o incidente, não pode esta decisão ser considerada como uma “decisão da relação proferida em 1.ª instância”, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 432.º, n.º 1, al. a), do CPP, segundo o qual se recorre para o Supremo Tribunal de Justiça “de decisões das relações proferidas em 1.ª instância”. (…)

Deste modo, entendemos que da decisão recorrida nestes autos, não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça com fundamento no disposto no citado preceito, artigo 432.º, n.º 1, al. a), do CPP, pelo que carece de razão o reclamante (conclusões 5 a 10).

[…]

Não colhe, desta forma, a invocação feita pelo ora reclamante na sua peça que o acórdão do TRE é uma decisão de primeira instância e, como tal recorrível, aliás, como tem sido defendido pela larga maioria da jurisprudência do STJque atrás se citou.

[…]

8. Da (in)constitucionalidade

Invoca, ainda que o reclamante nos pontos 11, 12, 13, que a garantia constitucional do direito ao recurso só é assegurada se efetivamente o julgamento efetuado em 1.ª instância pelo Tribunal da Relação puder ser reapreciado, por via de recurso, pelo Supremo Tribunal de Justiça. Aliás como expendeu na motivação do recurso e na resposta ao Parecer do Ministério Público, entende o reclamante que padece de inconstitucionalidade o entendimento normativo dado ao artigo 432. °, n.º 1, al. a), do CPP, no sentido de que não é recorrível para o STJ o acórdão da Relação que, em 1.ª instância, decide o incidente de levantamento do sigilo profissional previsto no artigo 135. °, n.º 3 do CPP, por violação das garantias de defesa e do direito ao recurso, previsto no artigo 32. °, n.º l, da CRP.

Entende o reclamante que neste segmento a Decisão Sumária procede a uma interpretação errónea do disposto nos artigos 432. °, n.º 1, a), e 434. °, ambos do CPP.

Aderimos também, neste passo, a fundamentação da Decisão recorrida, quando diz:

(…) Dispõe o artigo 20.º, n.ºs 1 e 4, da Constituição da República Portuguesa (CRP), sob a epígrafe “acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva”, que: “1. A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos (…). 4. Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão (…) mediante processo equitativo.”.

E o disposto no artigo 32.º, n.º 1, da CRP, preceito este alegado pelo recorrente, sobre “garantias de processo penal”, segundo o qual “o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso”.

A jurisprudência e a doutrina têm salientado que o artigo 20.º, da CRP não impõe ao legislador que garanta aos interessados o acesso a diferentes graus de jurisdição, por via de recurso. Embora se reconheça uma certa margem de conformação neste domínio, de modo a garantir o direito ao recurso a todos os intervenientes processuais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, impõe-se, contudo, que, no âmbito do processo penal, seja garantido um direito ao recurso enquanto componente do direito de defesa (artigo 32.º, n.º 1), ou seja, o direito do arguido a um duplo grau de jurisdição.

Dito de outro modo, se é certo que ninguém pode ser privado de levar a sua causa à apreciação de um tribunal não é menos certo que essa forma de tutela fundamental não é irrestrita. Necessário se torna que haja relação “com a defesa de um direito ou interesse legítimo” ainda que difuso e que seja vedada ao interessado o reconhecimento desse direito através da via judiciária.

De resto, é jurisprudência constitucional firmada a de que a garantia do duplo grau de jurisdição no âmbito do processo penal releva da alguma situação que contenda com a privação, limitação ou restrição de direitos dos sujeitos processuais, podendo admitir-se que a faculdade de recorrer seja restringida ou limitada em certas fases do processo e relativamente a certos atos judiciais.

O Tribunal Constitucional (TC) no acórdão n.º 589/05, diz, para além do mais, que e cita-se “ (…) do n.º 1 do artigo 20.º da Constituição não decorre um direito geral ao recurso”, e que “é entendimento pacífico na jurisprudência constitucional que o direito de acesso à justiça não comporta o sistemático exercício do direito ao recurso”, e ainda que “ainda que se considere (…) que a decisão da Relação foi proferida em primeira instância, tal não implica a procedência das razões invocadas pela recorrente”, pelo que “não é possível sustentar que do artigo 20.º, n.º 1, da Constituição decorre, sem mais, o direito do titular do direito ao sigilo profissional, a quem foi ordenada a prestação de depoimento em processo penal com quebra desse mesmo sigilo, de interpor recurso da correspondente decisão judicial, para obter a reapreciação dessa decisão”.

No caso em apreço, não está em causa o direito do arguido ao recurso (artigo 32.º, n.º 1), mas sim, o direito de acesso ao direito e aos tribunais (tutela jurisdicional efetiva), que diz respeito à defesa de um direito ou de um interesse legalmente protegido (artigo 20.º, n.º 1).
As legítimas expectativas criadas foram acauteladas constitucionalmente, na situação concreta, com o recurso interposto para a Relação, por força da conjugação dos artigos 432º, nº 1, al. c) e 427º, ambos do CPP, inexistindo qualquer violação de normas constitucionais.

Ora, como atrás se disse, o interesse que o dever de segredo legalmente imposto à testemunha arrolada pelo recorrente visa proteger, foi reconhecido no processo ao ser considerada legítima a recusa. Ao ser chamado a decidir sobre a quebra de sigilo, o tribunal da Relação não tem que equacionar esse interesse, mas apenas o interesse público na perseguição de infrações criminais, na ponderação da colisão de deveres que se impõem ao recorrente e não da restrição de um direito já reconhecido.

A apreciação do pedido de quebra de sigilo tem lugar no âmbito de um incidente com uma estrutura especial. É inequívoco, portanto, que esse incidente nada tem a ver com as referidas fases típicas do processo penal, mas isso não autoriza que se classifique como de mérito a decisão que o encerra e que, note-se bem, nem sequer tem de ser um acórdão do tribunal superior.

Diga-se ainda, que o artigo 32º, nº 1, da CRP consagra, é certo, o direito ao recurso como garantia de defesa. Mas, conforme o Tribunal Constitucional tem afirmado de forma consistente,” o direito ao recurso expressamente referido no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, entre as garantias de defesa do arguido, não exige a possibilidade de impugnação de toda e qualquer decisão proferida ao longo do processo, impondo apenas que necessariamente se assegure um segundo grau de jurisdição relativamente às decisões condenatórias e àquelas que afetem direitos fundamentais do arguido, designadamente a sua liberdade”(…) “…a razão da conformidade ou desconformidade constitucional das opções normativas… assentava fundamentalmente na onerosidade dos efeitos dele decorrentes, na concreta dinâmica processual em que foram praticados, apenas se admitindo como constitucionalmente legítimas soluções de irrecorribilidade que não afetassem o núcleo essencial do direito de defesa do arguido (designadamente, por estarem em causa meras questões incidentais ou interlocutórias cuja decisão por uma única instância não comprometia a possibilidade de reagir, a final, pela via do recurso, contra a decisão de méritoe postergando, por ilegítimas, todas aquelas que, por inviabilizarem a reapreciação de decisões de expressiva intensidade lesiva, atingiam a essência de um tal direito fundamental de defesa» (sublinhado nosso)(…).

9. Pelo que, e em conclusão:

(…). No caso em apreço, a pessoa visada pelo acórdão do Tribunal da Relação não é arguida no processo. Trata-se de uma testemunha. Está, de facto, em causa tão só uma questão meramente incidental, cuja decisão por uma única instância não compromete a possibilidade de o arguido reagir, a final, pela via do recurso, contra a decisão de mérito, se desfavorável.

É justamente por causa daquela natureza de garantia de um direito fundamental e, por isso, por causa da relevância dos interesses em causa, que o legislador, reforçando a garantia de acesso ao tribunal, entendeu dever fazer intervir na decisão de quebra do segredo profissional o tribunal hierarquicamente superior àquele onde corre o processo.

Concluímos, deste modo, que a imposição constitucional do duplo grau de jurisdição não abrange a decisão recorrida.

Aliás, a garantia constitucional de acesso aos Tribunais postula apenas que o grau de jurisdição único previsto para determinada situação se possa pronunciar de modo formalmente válido sobre a questão. E sendo o incidente, como no caso, da competência do tribunal imediatamente superior àquele em que foi suscitado, isso constitui, sem dúvida, garantia processual satisfatória, dado o seu distanciamento relativamente ao caso concreto.

Pelo que se concluiu que a norma extraída da interpretação da alínea a) do n.º 1 do artigo 432.º do CPP, segundo a qual o acórdão do tribunal da Relação proferido ao abrigo do n.º 3 do artigo 135.º do CPP não constitui uma decisão proferida em 1.ª instância, não se encontra ferida de inconstitucionalidade por violação dos artigos 20.º, n.ºs 1 e 4, e 32.º, n.º 1, da CRP.
Donde, em tal ótica, não é admissível recurso do acórdão recorrido para o Supremo Tribunal de Justiça, razão pela qual se decidiu que procedia a questão prévia suscitada pelo Ministério Público sobre a inadmissibilidade do recurso para este STJ. (…).

Assim, somos a concluir, aderindo à fundamentação da Decisão Sumária que inexistindo recurso para o Supremo, da decisão recorrida, precludidas ficam as questões que o integram, sejam elas de constitucionalidade, processuais e substantivas, das questões referentes às razões de facto e direito assumidas, por não se situarem no âmbito, legal, do conhecimento processualmente admissível, delimitado pelos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça.

10. Pelo que, em suma, porque, contrariamente às expectativas do reclamante, a conferência adere aos fundamentos da Decisão Sumária proferida a 23.06.2020, de rejeição do recurso por inadmissibilidade legal, bem como que a norma extraída da interpretação da alínea a) do n.º 1 do artigo 432.º do CPP, segundo a qual o acórdão do tribunal da Relação proferido ao abrigo do n.º 3 do artigo 135.º do CPP não constitui uma decisão proferida em 1.ª instância, não se encontra ferida de inconstitucionalidade por violação dos artigos 20.º, n.ºs 1 e 4, e 32.º, n.º 1, da CRP, indefere-se a reclamação apresentada e, consequentemente, se mantém a Decisão Sumária.»

 

 

4. Perante esta decisão, o recorrente veio apresentar requerimento de interposição de recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade (fls. 246-247), afirmando que:

 

«1.º O Recorrente tem consciência de que a questão ora em pauta não é líquida.

2.º Todavia, e salvo melhor opinião, entende o Recorrente que o entendimento normativo dado pelo Supremo Tribunal de Justiça ao art. 432.º, n.º 1, a) do CPP, segundo o qual o acórdão do Tribunal da Relação proferido ao abrigo do n.º 3, do art. 135.º, do CPP, não constitui uma decisão proferida em 1.ª instância, é inconstitucional, por violação das garantias de defesa e do direito ao recurso, previsto no art. 32.º, n.º 1 da CRP.

3.º Tal inconstitucionalidade foi arguida no n.º 3 da motivação do recurso interposto do acórdão da Relação de Lisboa, bem como no n.º 7 da resposta do Arguido ao parecer do Ministério Público junto do STJ, e bem assim no n.º 22 da reclamação para a Conferência da decisão sumária proferida pelo STJ.

4.º O direito ao recurso tem de se entender como assegurado não só para a decisão de mérito, bem como para qualquer questão processual relevante ou determinante para o exercício da defesa, como sem dúvida acontece quando ao Arguido é coartado o direito a uma prova tida como fundamental para tal exercício.

5.º Por outro lado, a circunstância do incidente previsto no art, 135.º, n.º 3 do CPP ser decidido pelo Tribunal da Relação, relativamente a um processo que corre em 1.ª instância, muito embora se trate de um Tribunal diferente daquele o processo corre, não garante o núcleo fundamental que está incorporado no direito ao recurso, o qual consiste no direito a uma reapreciação da questão controversa por um tribunal diferente daquele que primeiramente a julgou.»

 

 

Neste Tribunal Constitucional, os autos foram distribuídos ao relator originário que determinou a produção de alegações, em 30 de setembro de 2020 (fls. 258).

 

5. Regularmente notificado, o recorrente apresentou alegações (fls. 267-275, verso), cujas conclusões foram:

«A. Está em causa o entendimento normativo dado ao art. 432.º, n.º 1, a), do CPP, segundo o qual se recorre para o STJ de decisões das Relações proferidas em 1.ª instância.

B. Relativamente a tal matéria, o STJ sustenta que as decisões proferidas pelas Relações ao abrigo do art. 135.º, n.º 3, do CPP - os incidentes relativos à quebra de segredo profissional - não são decisões proferidas em 1.ª instância, razão pela qual não se lhes aplica o regime do art. 432.º, n.º 1, al. a), do CPP. É esse entendimento normativo que o Recorrente julga que é inconstitucional, por violação das garantias de defesa e do direito ao recurso, previsto no art. 32.º, n.º 1, da CRP.

C. Em face do regime legal previsto no art. 135.º, n.º 3, do CPP, o acórdão recorrido entende que não se está perante uma verdadeira decisão proferida em 1.ª instância pelas Relações, uma vez que o incidente é julgado na Relação, mas é previamente suscitado na 1.ª instância, constituindo tal dissociação “garantia processual satisfatória, dado o seu distanciamento relativamente ao caso concreto

D. Ademais, segundo o STJ, a salvaguarda das garantias de defesa do Arguido não exigiria a possibilidade de impugnação de toda e qualquer decisão proferida ao longo do processo, impondo-se apenas o segundo grau de jurisdição relativamente às decisões condenatórias e àquelas que afetem direitos fundamentais do arguido, o que não seria o caso, uma vez que a pessoa visada pelo incidente em causa seria uma mera testemunha.

E. Ressalvado o devido respeito, no julgamento da quebra de segredo profissional, o tribunal superior não funciona como uma instância residual, quando se suscitam dúvidas sobre a legitimidade da escusa, mas sim como uma instância de decisão do incidente de quebra do segredo, nas situações em que a escusa é legítima, pelo que não deve haver lugar a qualquer dúvida quanto ao facto de estarmos perante uma decisão proferida em 1.ª instância - cfr., no mesmo sentido, o acórdão do STJ proferido no processo n.º 12153/09.8TDPRT-A.P1.S1.

F. Aquilo que o direito ao recurso assegura é que a decisão proferida, pela primeira vez, por um tribunal seja suscetível de reapreciação por um tribunal superior.

G. In casu, quem aprecia o incidente é a Relação, não é a 1.ª instância, onde o mesmo foi suscitado, pelo que nos parece ser inequívoco que, nos incidentes em apreço, as decisões das Relações devem ser consideradas como decisões proferidas em 1.ª instância para os efeitos do art. 432.º, n.º 1, a), do CPP.

H. Não o sendo, parece manifesto que a interpretação restritiva adotada consubstancia uma inaceitável limitação do direito ao recurso, em termos que consubstanciam uma violação do direito constitucional consagrado no art. 32.º, n.º 1, da CRP.

I. Resta ponderar o argumento do STJ, segundo o qual, mesmo que assim fosse, não se justificaria a garantia do direito ao recurso porque não se estaria perante uma decisão condenatória, nem uma decisão que afete direitos fundamentais do arguido.

J. Que não se trata de uma decisão condenatória, não se discute. Mas já não se aceita que não esteja em causa uma decisão que afete um direito fundamental do arguido. É que o direito do arguido a produzir prova está inscrito no núcleo essencial das garantias de defesa.

K. Refere o acórdão recorrido que a decisão tomada pela Relação de Évora não compromete a possibilidade de o Arguido reagir, pela via do recurso, contra a decisão de mérito que venha a ser proferida, se lhe for desfavorável,

L. Porém, se o que está em causa é a natureza vital do depoimento da testemunha cuja quebra de segredo profissional foi suscitada, o recurso a final da decisão de mérito não resolve o problema de lhe ter sido coartado o direito a uma prova tida como fundamental para o exercício da sua defesa, tema esse que não poderia ser reaberto iro âmbito de tal recurso.

M. Os arguidos são condenados ou absolvidos em função da prova produzida; se ao Arguido é cerceado o direito a produzir prova - prova que considera imprescindível para defender a sua inocência - de nada lhe serve ter direito ao recurso da decisão final de mérito, que não pôde apreciar essa prova.

N. É por isso que as decisões proferidas sobre os incidentes de quebra do segredo profissional de testemunha arrolada pelo arguido têm de ser passíveis de recurso - in easily da Relação para o STJ de forma a assegurar as garantias de defesa e o direito ao recurso, nos termos constitucionalmente consagrados pelo art. 32.º, n.º 1, da CRP. 

O. Deste modo, a interpretação restritiva adotada pelo acórdão recorrido relativamente ao art. 432.º, n.º X, a), do CPP, segundo a qual o acórdão da Relação proferido ao abrigo do art. 135.º, n.º 3, do CPP [relativo à prestação de testemunho com quebra de segredo profissional], não constitui uma decisão proferida em 1.ª instância, é inconstitucional, por violação das garantias de defesa e do direito ao recurso, previsto no art. 32.º, n.º 1, da CRP.»

 

6. Recorrido, o Município de Santarém apresentou as suas contra-alegações (fls. 285-304), concluindo:

«A. No presente Recurso para o Tribunal Constitucional vem impugnado, com fundamento em inconstitucionalidade, o Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça (em conferência) datado de 21.08.2020, no âmbito do Processo n.º 422/14.0T9RMT-A.E1.SI, da 5o Secção, nos termos do qual se negou o Recurso, para 34 essa instância, do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora que decidiu sobre o incidente de quebra de segredo profissional de testemunha (advogado) arrolado pelo Arguido.

B. No Acórdão recorrido, o Tribunal a quo confirmou a Decisão Sumária que anteriormente havia proferido, considerando inadmissível o Recurso para o Supremo Tribunal de Justiça da decisão do Tribunal da Relação de Évora de improcedência do incidente de levantamento do sigilo profissional, proferida nos termos do artigo 135.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, por não constituir a mesma uma decisão “das relações proferidas em 1.ª instância”, para efeito do disposto no artigo 432.º, n.º 1, alínea a), do CPP.

C. Nesse mesmo Acórdão, o Tribunal a quo considerou, ainda, que a norma subjacente a tal decisão, extraída por via interpretativa do artigo 432.º, n.º 1, alínea a), do CPP, não se encontrava ferida de inconstitucionalidade, não violando, designadamente, o disposto nos artigos 20.º, n.ºs 1 e 4, e 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.

D. O Recorrente interpôs o Recurso, em sede de fiscalização sucessiva concreta de constitucionalidade, sustentando a inconstitucionalidade da “interpretação restritiva adotada pelo acórdão recorrido relativamente ao art. 432.º, n.º 1, a), do CPP, segundo o qual o acórdão da Relação proferido ao abrigo do art. 135.º, n.º 3, do CPP [relativo à prestação de testemunho com quebra de segredo procedimental, não constitui uma decisão proferida em 1.ª Instância, é inconstitucional, por violação das garantias de defesa e do direito ao recurso, previsto no art. 32. º n.º1, da CRP.”.

E. Resulta do disposto nos artigos 280.º, n.º 2, alínea b), 2115, n.º 1, e 204.º, da Constituição da República Portuguesa, que a fiscalização sucessiva concreta de constitucionalidade por parte do Tribunal Constitucional versa, apenas, sobre a desconformidade à CRP de “normas” aplicadas em decisões pelos tribunais.

F. O Recurso não pode incidir sobre a eventual desconformidade à CRP da decisão do Tribunal a quo, nem sobre a eventual inconstitucionalidade da norma segundo a qual “o acórdão” proferido pelo Tribunal da Relação de Évora não é recorrível para o Supremo Tribunal de Justiça, nem mesmo sobre se, in casu,”as decisões das Relações devem ser consideradas como decisões proferidas em 1.ª instância para os efeitos do art. 432 º, n.º 1, a), do CPP”.

G. As decisões proferidas pelos Tribunais da Relação relativas a incidentes de levantamento do sigilo profissional, nos termos do artigo 135.º, n.º 3, do CPP, não configuram, não obstante, e conforme é jurisprudência unânime, “decisões das relações proferidas em 1.ª instância”, não sendo, como tal, admissível a interposição de recurso relativo às mesmas para o Supremo Tribunal de Justiça.

H. Na base do seu Recurso, o Recorrente sustenta a desconformidade da norma sub iudice à Constituição da República Portuguesa com base na violação por aquela das garantias de defesa e do direito ao recurso, previstos no artigo 32.º, n.º 1, da CRP. A norma sub iudice não enferma, no entanto, de qualquer desconformidade à Constituição da República Portuguesa.

I. O direito disposto no artigo 20.º, da CRP, enquanto garantia de acesso a uma tutela jurisdicional efetiva através da faculdade de reapreciação dos atos jurisdicionais por Tribunais hierarquicamente superiores, assume natureza análoga aos “direitos, liberdades e garantias” mas não constitui um direito absoluto e irrestringível, apenas se impondo ao legislador ordinário, atento o disposto no artigo 209.º, n.º 1, e 210.º, da CRP, o respeito pela existência de uma hierarquia de Tribunais e a admissibilidade genérica de recurso para os mesmos, o que não merece especificação no que respeita a decisões meramente incidentais, como as relativas ao levantamento do sigilo profissional.

J. A tarefa de densificação relativamente aos requisitos de admissibilidade do recurso, e às matérias sobre as quais o mesmo versa (com exceção do previsto no artigo 32.º da CRP) cabe ao legislador ordinário, com respeito pelo conteúdo mínimo deste direito fundamental.

K. Estando no processo jurisdicional (em especial, no penal) consagrada (e efetivamente verificada) a existência de uma hierarquia nos Tribunais Judiciais, para os quais é admissível, em condições bastante generosas, recurso, não viola a norma sub iudice o disposto no artigo 20.º, n.º 1, da CRP, no que respeita ao direito ao recurso no âmbito do processo jurisdicional em geral, não sendo a interpretação feita pelo Supremo Tribunal de Justiça desconforme com o ordenamento constitucional.

L. O legislador constitucional previu, especificamente, uma disciplina relativa às “garantias de processo criminar no artigo 32.º da CRP, atenta a especial sensibilidade do domínio do processo penal, prevendo, no n.º 1 deste preceito, expressamente, enquanto “garantia de defesa”, o direito ao recurso que assiste ao Arguido.

M. Este direito fundamental apenas impõe a existência da faculdade de recurso, por parte do Arguido, das decisões condenatórias e das decisões que respeitem aos seus direitos fundamentais, designadamente, aquelas que impliquem a privação ou restrição da sua liberdade, inexistindo, como tal, um direito irrestrito ao recurso no âmbito do processo penal, antes se impondo - apenas - a verificação do respeito pelo núcleo essencial do mesmo.

N. A norma sub iudice não respeita às garantias de defesa do próprio Arguido, não se enquadrando no disposto no artigo 32.º, n.º 1, da CRP. Nos incidentes de levantamento do sigilo profissional, o que está em causa é a apreciação da existência de justificação para o levantamento do sigilo profissional e não a necessidade deste para a produção de prova por parte do Arguido.

O. Não estão nestes incidentes em causa questões relacionadas com as garantias de defesa do Arguido, mas tão só com a possibilidade de as testemunhas deporem no processo relativamente a factos que se encontram abrangidos pelo sigilo profissional a que se encontram vinculadas, questões essas que se podem convocar por referência a testemunhas convocadas por qualquer um dos sujeitos processuais com poderes para tal, e não apenas relativamente às arroladas pelo Arguido.

P. Não estão em causa garantias de defesa do Arguido, com o que a norma sub iudice não se enquadra no disposto no artigo 32.º, n.º 1, da CRP, não lhe sendo (nem podendo ser) desconforme. O conteúdo do direito ao recurso, ou ao duplo grau de jurisdição, que assiste ao Arguido, apenas diz respeito às decisões condenatórias e às decisões que afetem direitos fundamentais do Arguido, conteúdo esse que não está em causa nas decisões abrangidas pela norma sub iudice.

Q. As decisões tomadas pelos Tribunais da Relação ao abrigo do disposto no artigo 135.º, n.º 3, do CPP, que versam sobre o levantamento, ou quebra, do sigilo profissional, não são decisões de mérito e não são decisões que contendam com direitos fundamentais do Arguido, designadamente, com o seu direito à produção de prova.

R. Tais decisões, quando considerem procedente o incidente de levantamento do sigilo profissional, não excluem a faculdade de o Arguido convocar todos os meios processuais que, em geral, lhe são assegurados no direito processual penal para controlar e contraditar o depoimento que vier a ser prestado pela testemunha.

S. Sendo as decisões relativas ao levantamento do sigilo profissional, conforme expressamente reconhece o artigo 135.º do CPP, decisões de natureza incidental relativamente ao processo principal - de aferição da responsabilidade penal do(s) Arguido(s) - em que se suscitem, as mesmas não assumem relevância fundamental para a decisão do mérito das causas em que se coloquem.

T. Relativamente ao mérito da decisão final que venha a ser proferida no processo, é sempre possível ao Arguido recorrer relativamente à matéria de facto, o que inclui, ao contrário do que procura sustentar o Recorrente, a possibilidade de reapreciação da prova produzida.

U. As decisões relativas aos incidentes de levantamento do sigilo profissional não afetam, em consequência, o núcleo essencial do direito de defesa do Arguido, por se tratarem de decisões sobre meras questões incidentais ou interlocutórias, cuja irrecorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça não compromete a faculdade de reação, a final, contra a decisão de mérito, por via de recurso.

V. Não se impõe, como tal, a existência de um direito ao recurso, ou de acesso a um duplo grau de jurisdição, por força do disposto no artigo 32.º, n.º 1, da CRP, relativamente às decisões dos Tribunais da Relação relativas a incidentes de levantamento do sigilo profissional, com o que não padece a norma sub judice de qualquer inconstitucionalidade.

W. Nos incidentes de levantamento do sigilo profissional o duplo grau de jurisdição está suficientemente assegurado pelo legislador ordinário, pois que nos termos do artigo 135.º, n.ºs 1,2 e 3, do CPP, o incidente de levantamento do sigilo profissional implica a intervenção de 2 (dois) distintos tribunais, situados em patamares distintos da hierarquia dos Tribunais Judiciais.

X. Porque têm intervenção, necessariamente, dois tribunais hierarquicamente diferenciados nos incidentes de levantamento do sigilo profissional, encontra-se cumprida a (eventual) imposição de acesso o duplo grau de jurisdição que deriva do disposto no artigo 32.º, n.º 1, do CPP. O incidente de levantamento do sigilo profissional ocorrido foi apreciado por um novo Tribunal, o Tribunal da Relação de Évora, distinto do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém.

Y. As decisões dos Tribunais da Relação sobre incidentes de levantamento do sigilo profissional, não constituem, “decisões das relações em 1.ª instância”, pelo que, ainda que o direito a um duplo grau de jurisdição existisse, resultante do disposto no artigo 32.º, n.º 1, da CRP, sempre se teria de reconhecer que o mesmo foi, em última análise, respeitado pela mesma.

Z. Como tal, a norma interpretativamente extraída pelo Tribunal a quo no Acórdão recorrido (e aí aplicada) do artigo 432.º, n,º 1, alínea a), do CPP, segundo a qual as decisões dos Tribunais da Relação relativas a incidentes de levantamento do sigilo profissional, proferidas ao abrigo do disposto no artigo 135.º, n.º 3, do CPP, não constituem “decisões das relações em 1.ª instância”, não sendo, em virtude disso, admissível a interposição de recurso das mesmas para o Supremo Tribunal de Justiça, não viola a Constituição da República Portuguesa, designadamente, o previsto no seu artigo 20.º, n.º 1, e as garantias de defesa do Arguido e o seu direito ao recurso, conforme resulta do disposto no artigo 32.º, n.º 1, da CRP, situação em que a decisão recorrida deve ser mantida.»

 

7. Também recorrido, o Ministério Público veio contra-alegar (fls. 345-360), entendendo conclusivamente que:

1.ª) A questão de constitucionalidade a dirimir, em essência, pode ser assim formulada: a interpretação normativa recorrida, por força da qual a decisão da relação, proferida nos termos do n.º 3 do artigo 135.º do CPP, não é passível de recuso para o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 432.º do mesmo diploma legal, viola as “garantias de defesa, incluindo o recurso, no processo criminal” consagradas no artigo 32.º (Garantias de processo criminal), n.º 1, da Constituição?

 2.ª) A interpretação normativa impugnada é um adquirido do juízo de constitucionalidade sem embargo, neste recurso tem que valer a premissa “a decisão do Tribunal da Relação de Évora foi proferida em 1.ª instância”, pois é logicamente necessária para apreciar o argumento da irrecorribilidade (em qualquer caso, nos autos de processo penal apenas esse tribunal superior proferiu decisão sobre a “quebra do segredo profissional”).

3.ª) Quanto ao n.º 3 do artigo 135.º, do CPP, o procedimento de “prestação de testemunho com quebra do segredo profissional”, é expressamente designado, e pode ser caracterizado, como um “incidente” (ou “questão incidental”, hoc sensu) do processo penal (art. 135.º, n.ºs 1 a 3).

4.ª) Depois, a lei consagra no dito preceito uma regra de competência material e funcional (que não hierárquica) para dirimir o incidente: o tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais (n.º 3) [suscitado, que não resolvido].

5.ª) Ao invés do que é o princípio geral do processo ― “o tribunal competente para a ação é também competente para conhecer dos incidentes que nela se suscitem ― para dirimir este incidente é competente: invariavelmente um tribunal; que não é o tribunal em causa mas antes “o tribunal superior”, seja superior (tribunal da relação) ou supremo (Supremo Tribunal de Justiça), e sempre em formação colegial (n.º 3).

6.ª) O critério da decisão vem estabelecido expressamente na lei, com esta fórmula: “justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos” (n.º 3).

7.ª) Finalmente, “a decisão (…) do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa” (n.º 3).

8.ª) Destes passos do texto da lei podemos extrair três corolários, que serão relevantes para o caso, nomeadamente por revelarem o espírito da lei (scl., as suas valorações).

9.ª) Quanto à competência material e funcional: o regime legal em causa consagra uma garantia objetiva e adequada à boa administração da justiça penal e da realização do direito, com caráter orgânico, pois a competência para resolver sobre a “quebra do segredo profissional” é sempre de um tribunal, que é superior ou supremo, e que delibera em formação colegial.

10.ª) Quanto ao procedimento: não é uma decisão final, nomeadamente sobre a responsabilidade penal do arguido, mas antes um incidente, sobre a produção de um único e específico meio de prova (um testemunho), entre todos os que podem concorrer para a descoberta da verdade.

11.ª) Também não é uma decisão final, no sentido em que não produz um efeito típico de caso julgado, em razão do seu conteúdo “discricionário”.

12.ª) Ao invés, tal decisão está sujeita a uma cláusula geral rebus sic stantibus, pelo que a denegação da prestação do testemunho, com quebra do segredo, pode eventualmente vir a ser a ser alterada, em razão de ulterior circunstancialismo, decorrente do ulterior desenrolar do processo penal.

13.ª) Finalmente, não é uma decisão que resolva sobre a liberdade do arguido.

14.ª) Depois, quanto aos interesses relevantes, é de notar que é necessariamente ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, o que assegura uma consideração igualmente desse interesse institucional, no quadro da ponderação integrada de todos os interesses relevantes (“necessidade de proteção de bens jurídicos”) que a decisão em causa legalmente tem que realizar (n.º 3).

15.ª) Ou seja, na decisão do incidente em causa, como denota a própria epígrafe legal (Quebra do segredo profissional), não pode curar somente dos interesses do arguido, mas deve considerar, justa e equilibradamente, todos os interesses relevantes na situação, nomeadamente no caso a proteção do segredo profissional do advogado, que é um valor “constitucional” da profissão de advogado.

16.ª) Não menos importante, a decisão proferida no exercício da habilitação legal constante do n.º 3 do artigo 135.º do CPP, nos seus expressos termos, tem uma estrutura de “ponderação de interesses” (em sentido estrito) consubstanciando o exercício de “discricionariedade judicial”, “na medida em que a lei confere ao juiz uma ou mais alternativas de opção, entre as quais o juiz deve escolher em seu prudente arbítrio e em atenção a certo fim geral [identificado pelos interesses mencionados no enunciado legal]” (CASTRO MENDES; KARL ENGISCH).

17.ª) Noutra perspetiva, o tribunal exerce por este meio um poder de jurisdição voluntária, de caráter materialmente administrativo, pelo que também por esta via é pertinente trazer à colação a ideia de “discricionariedade”, balizada embora pelos interesses identificados na previsão legal.

18.ª) Com efeito, a prestação do testemunho é concedida ou denegada, desde que se mostre “justificada” (termo que denota um conceito legal indeterminado, de valor) segundo “o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos”.

19.ª) Por outras palavras, é uma decisão cujo conteúdo está “dependente da livre resolução do juiz”, à luz dos interesses identificados na previsão legal, como ocorre por regra nas decisões sobre diligências da instrução (hoc sensu), com dois corolários dignos de menção: não é recorrível (CPP, art. 400.º, n.º 1, al. b), e, pondo termo ao incidente, remove a causa que é impedimento à prossecução dos termos do processo, promovendo assim o interesse da celeridade processual da administração da justiça penal; e, tipicamente, não produz efeito de caso julgado, pelo que ulteriormente, em função de novos circunstancialismos, será passível de reapreciação, se for o caso  pois o processo penal poderá, entretanto, ter produzido a absolvição do arguido.

20.ª) Posto isto, importa verter o anterior discurso na linguagem constitucional, nos termos do artigo 32.º, n.º 1, que consagra o princípio segundo o qual “o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso”, considerado todavia no quadro de um conceito constitucionalmente idóneo de “lei restritiva” (art. 18.º, n.ºs 2 e 3).

21.ª) A primeira parte do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, proclama que “o processo criminal assegura todas as garantias de defesa”, pelo que importa recensear o conteúdo de garantia que ao arguido é oferecido pelo regime jurídico do n.º 3 do artigo 135.º do CPP.

22.ª) Quanto a este aspeto, já ficou referido que o regime jurídico do n.º 3 do artigo 135.º do CPP confere um certo número de garantias ao arguido, em matéria da decisão sobre a “quebra do segredo profissional” no processo penal, que podemos compendiar nas três seguintes.

23.ª) Por uma parte, o incidente é sempre resolvido por um tribunal que será sempre um “tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado”, ou seja, não o tribunal onde o incidente é suscitado, como é a regra (o tribunal competente para a ação é o competente para os respetivos incidentes, regra que aliás se aplica no n.º 1 do preceito legal em causa, em matéria da legitimidade da escusa) mas um outro e superior tribunal, da relação ou o Supremo Tribunal de Justiça, e em formação colegial.

24.ª) Esta é uma garantia de defesa, orgânica, da imparcial e justa decisão do incidente.

25.ª) Por outra parte, a lei configura a controvérsia como um incidente, que não resolve sobre a sorte da causa penal, nem sobre a liberdade do arguido, mas sobre a produção de apenas um concreto e específico meio de prova, o testemunho (no caso) de um advogado em matéria ao segredo profissional, pelo que não fica prejudicada a produção de todos e cada um dos demais meios de prova idóneos à defesa do arguido e que pode, só por si, dirimir a responsabilidade penal.

26.ª) Esta é uma garantia de defesa, de caráter processual.

27.ª) Finalmente, a lei configura a decisão sobre a quebra de segredo como uma instância de “discricionariedade judicial”, balizada pela ponderação dos interesses identificados na previsão legal.

28.ª) A “decisão de ponderação”, pelo seu caráter de “jurisdição voluntária” ou de “discricionariedade judicial”, não é definitiva e imutável, pelo que, havendo alteração de circunstâncias, nomeadamente em face da ulterior tramitação dos autos, poderá ser reapreciada a questão da quebra do segredo profissional de advogado, caso necessário, pois, nomeadamente, pode sobrevir a absolvição do arguido.

29.ª) Portanto, esta é uma outra garantia de defesa, de caráter processual.

30.ª) Em qualquer caso, é verdade que, no fim de contas, a interpretação normativa recorrida preclude o direito ao recurso, enquanto garantia constitucional do duplo grau de jurisdição, conferida pelo artigo 32.º, n.º 1, in fine, da Constituição (na redação que lhe foi conferida pelo artigo 15.º, da Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de setembro).

31.ª) Todavia, “O Tribunal Constitucional tem, porém, construído uma sólida jurisprudência no sentido de que o direito constitucional ao recurso que é postulado pela garantia do asseguramento de todas as garantias de defesa se basta com a existência de um duplo grau de jurisdição relativamente a decisões penais condenatórias e a decisões respeitantes à situação do arguido face à privação ou restrição de liberdade ou a quaisquer outros direitos fundamentais”.

32.ª) Ora, no caso não estamos perante “decisões penais condenatórias e a decisões respeitantes à situação do arguido face à privação ou restrição de liberdade ou a quaisquer outros direitos fundamentais”.

33.ª) Estamos, antes, perante uma decisão de carater incidental, sobre um único e específico meio de prova (testemunho de um advogado, em matéria relativa ao segredo profissional).

34.ª) E com esta irrecorribilidade não fica comprometida, definitivamente, a defesa do arguido, pois pode aduzir todos os demais meios de prova e, por outra parte, levantada a causa de impedimento, prosseguirá a tramitação processual, em ordem à administração da justiça penal do caso, que aliás, bem poderá vir a julgar, sem haver produção da prova testemunhal em causa, a absolvição do arguido.

35.ª) Em suma, a irrecorribilidade da decisão da relação nos termos do n.º 3 do artigo 135.º do CPP, interpretada nos termos expostos, tendo caráter restritivo, todavia salvaguarda interesses constitucionalmente protegidos, nomeadamente a celeridade da administração da justiça penal (“decisão em prazo razoável”), sem, todavia, comprometer o conteúdo essencial das garantias de defesa do arguido em processo criminal, pelo que não consubstancia violação dos princípios e regras constitucionais relevantes (Constituição, arts. 18.º, n.º 2 e 3, 20.º, n.º 2, e 32.º, n.º 1).

 

 

Por ter sido o Juiz Conselheiro, originário relator deste processo, eleito Vice-Presidente do Tribunal Constitucional, os autos foram redistribuídos à atual Relatora em 25 de fevereiro de 2021 (fls. 366).

 

    Cumpre apreciar e decidir.

 

II. Fundamentação

 

a)     Delimitação do objeto do recurso

 

7. Em primeiro lugar, importa analisar a conformação do objeto do presente recurso. Como destacado supra, a norma cuja inconstitucionalidade se pretende ver apreciada reconduz-se ao preceituado nos artigos 135.º, n.º 3, do Código de Processo Penal e 432.º, n.º 1, alínea a), também do CPP, no sentido de que as decisões das Relações relativas ao incidente de quebra de segredo profissional não são passíveis de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça na medida em que não se caracterizam como decisões proferidas em 1ª instância. É esta, verdadeiramente, a norma que constitui a ratio decidendi da sentença recorrida, já que a questão controvertida implica, na verdade, esclarecer se tais decisões dos tribunais da relação constituem, ou não, decisões em 1.ª instância.

 

Preveem os dispositivos em apreço do CPP:

 

“Artigo 135.º

(Segredo profissional)

[…]

3. O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.

 

 

Artigo 432.º                                                                                      

(Recurso para o Supremo Tribunal de Justiça)

1. Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:

a) De decisões das relações proferidas em 1.ª instância”.

 

 

Nestes termos, o objeto do presente recurso deverá reportar-se à interpretação normativa do artigo 432.º, n.º 1, alínea a), do CPP, no sentido de que não é recorrível para o STJ o acórdão da Relação que decide o incidente de levantamento do sigilo profissional previsto no artigo 135.º, n.º 3, do CPP. Ou seja, o problema a confrontar com os parâmetros constitucionais consiste no seguinte: é constitucionalmente admissível que a decisão do Tribunal da Relação que se pronuncia sobre a quebra do sigilo profissional, nos termos do artigo 135.º, n.º 3, do CPP, possa ser excluída do conjunto de decisões passíveis de recurso para o STJ, nos termos do artigo 432.º, n.º 1, alínea a), do CPP, por não ser classificada como uma “decisão em 1.ª instância”, atentos os seus específicos contornos?

 

A constitucionalidade da norma extraída da articulação daqueles preceitos é questionada à luz dos parâmetros constitucionais decorrentes do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa que determina:

 

 

“Artigo 32.º

(Garantias de processo criminal)

1. O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso”.

 

 

b)     Mérito

 

8. Considerando o objeto processual em análise, verifica-se que o Tribunal Constitucional decidiu, nesta 2.ª Secção, há alguns meses, processo com objeto semelhante (ainda que não idêntico). Efetivamente, o Acórdão n.º 740/20, o Tribunal não julgou inconstitucional a interpretação normativa nos termos da qual a decisão do Tribunal da Relação que se pronuncia sobre a quebra do sigilo bancário por parte de pessoa coletiva, na sequência de uma decisão de primeira instância que afere da legitimidade da escusa ao abrigo do artigo 135.º, n.º 2, do CPP, não constitui uma decisão proferida em primeira instância, para efeitos do disposto no artigo 644.º, n.º 1, alínea a), do CPC, nem decisão proferida sobre decisão da primeira instância, para efeitos do disposto no artigo 671.º, n.º 1, do CPC. Como pode verificar-se, este é um problema paralelo ao analisado no presente processo, afigurando-se muitas das reflexões feitas naquela sede úteis para a resolução do caso concreto ora em apreço. Nestes termos, recorde-se, em primeiro lugar, a revisão de jurisprudência constitucional relevante então levada a cabo:

Parece-nos apropriado aludir ao sumário concatenado pelo muito recente Acórdão n.º 174/2020, em que se concentra a conceptualização adotada pelo Tribunal Constitucional no sentido de entender que “o direito de acesso aos tribunais implica a garantia de uma proteção jurisdicional eficaz ou de uma tutela judicial efetiva, cujo âmbito normativo abrange, nomeadamente: (a) o direito de ação, no sentido do direito subjetivo de levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão jurisdicional; (b) o direito ao processo, traduzido na abertura de um processo após a apresentação daquela pretensão, com o consequente dever de o órgão jurisdicional sobre ela se pronunciar mediante decisão fundamentada; (c) o direito a uma decisão judicial sem dilações indevidas, no sentido de a decisão haver de ser proferida dentro dos prazos preestabelecidos, ou, no caso de estes não estarem fixados na lei, dentro de um lapso temporal proporcional e adequado à complexidade da causa; (d) o direito a um processo justo baseado nos princípios da prioridade e da sumariedade, no caso daqueles direitos cujo exercício pode ser aniquilado pela falta de medidas de defesa expeditas (veja-se, neste sentido, entre outros, os Acórdãos n.º 204/2015, 2.ª Secção, ponto 2.3; n.º 401/2017, da 3.ª Secção, ponto 14; n.º 675/2018, Plenário, ponto 6; n.º 687/2019, 1.ª Secção, ponto 13)”.

Noutra medida, e complementarmente, o princípio do processo justo obriga a respeitarem-se diferentes vertentes atinentes à garantia de estar em juízo de forma substancialmente concretizada, em especial, tal como repisado na nossa jurisprudência: (1) direito à igualdade de armas ou igualdade de posição no processo, sendo proibidas todas as diferenças de tratamento arbitrárias; (2) proibição da indefesa e direito ao contraditório, traduzido fundamentalmente na possibilidade de cada uma das partes invocar as razões de facto e direito, oferecer provas, controlar a admissibilidade e a produção das provas da outra parte e pronunciar-se sobre o valor e resultado de umas e outras; (3) direito a prazos razoáveis de ação e de recurso, sendo proibidos os prazos de caducidade demasiados exíguos; (4) direito à fundamentação das decisões; (5) direito à decisão em prazo razoável; (6) direito de conhecimento dos dados do processo (dossier); (7) direito à prova; (8) direito a um processo orientado para a justiça material (Cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª ed. revista, Coimbra Editora, 2007, vol. I, pp. 415-416).

Nesse enquadramento, o Tribunal Constitucional tem constantemente afirmado que não decorre do direito fundamental do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa a consagração de um direito universal ao recurso de toda e qualquer decisão judicial lato sensu. À luz especificamente desta garantia – que não se confunde com toda a construção acerca do direito ao recurso previsto pelo artigo 32.º, CRP, em matéria sancionatória –, não sobrevém um direito irrestrito a recorrer nem um dever para o legislador de estipular legalmente expedientes procedimentais voltados à consecução do reexame de determinado conteúdo do respetivo contencioso.

Na sua síntese mais atual, formulada pelo Acórdão n.º 151/2015, temos que fora do âmbito sancionatório e “quando não esteja em causa a violação pela decisão jurisdicional de direitos fundamentais, a Constituição não impõe a consagração do direito ao recurso, dispondo o legislador do poder de regular, com larga margem de liberdade, a recorribilidade das decisões judiciais”.

Sem dúvida, incide, neste domínio, a ampla liberdade de conformação do legislador na concreta modelação do processo, em vista de preservar a coerência e a funcionalidade do sistema de justiça, podendo ser justificada a criação de ónus procedimentais para as partes cumprirem, sob pena, por exemplo, de consequências preclusivas ou mesmo de limitações ao exercício da faculdade de provocar a atuação dos tribunais, isto é, de estabelecer condições especiais por meio das quais a tutela jurisdicional efetiva opere.

Naturalmente, tais soluções legislativas são passíveis de fiscalização de constitucionalidade face ao direito fundamental ora visado. Assim, os regimes adjetivos vigentes não podem oferecer obstáculos excessivamente onerosos, inclusivamente no que toca aos seus custos, que impeçam, de forma arbitrária ou desproporcionada, o proveito do direito à tutela jurisdicional efetiva. Por isso, eles devem ser funcionalmente adequados aos fins do processo e não se podem converter em uma exigência puramente formal e arbitrária, destituída de qualquer sentido útil e razoável (v. Acórdão n.º 174/2020, ponto 12).

Por outro lado, é constante a posição deste Tribunal de que a regulamentação do direito ao recurso, considerado de forma geral, deve harmonizar a defesa dos intervenientes processuais, a qualidade da justiça e a exequibilidade do sistema judiciário (cfr. Acórdão n.º 127/2016). De facto, conquanto no presente recurso não esteja em questão o cumprimento de um qualquer ónus oponível ao interveniente processual, mas sim a (ir)recorribilidade, nos termos do artigo 644.º, n.º 1, alínea a) do CPC, da decisão que afere da legitimidade da escusa inscrita no artigo 135.º, n.º 2 do CPP, a sistematização  aplicável ao direito fundamental consagrado no artigo 20.º da CRP, levada a efeito pelo Tribunal Constitucional, e constantes dos arestos referidos, mantém-se válida e aplicável.

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            9. Tendo em atenção todo este acervo jurisprudencial, a partir do qual se foi construindo a densificação jusfundamental das garantias processuais e do direito ao recurso consagrado na CRP, cabe agora avaliar se o regime legal subjacente à decisão que afere do levantamento do sigilo profissional se encontra, efetivamente, desprovido de reapreciação jurisdicional e, se for este o caso, se a margem de conformação do legislador nesta matéria foi exercida de forma desproporcionada.

Vejamos.

Em primeiro lugar, destaque-se que a norma que está em disputa diz respeito à natureza da decisão que determina a quebra do sigilo profissional, no caso concreto, sigilo profissional de advogado. Efetivamente, é indispensável compreender que a questão de constitucionalidade a resolver se centra na interpretação normativa do artigo 432.º, n.º 1, alínea a), do CPP, no sentido de que não é recorrível para o STJ o acórdão da Relação que decide o incidente de levantamento do sigilo profissional previsto no artigo 135.º, n.º 3, do CPP, por não se entender que tal decisão, considerados os seus concretos elementos processuais e materiais, possa, verdadeiramente, ser considerada uma decisão em 1.ª instância. Como se afirma na decisão recorrida, “a decisão do tribunal da Relação, embora diga respeito a um processo que corre em primeira instância, não corresponde a uma decisão proferida no exercício de uma competência de tribunal de 1.ª instância, mas sim, a uma decisão da competência de “tribunal imediatamente superior” a este (1.ª Instância), dentro da hierarquia dos tribunais. Pelo que, não correndo e não devendo o processo ser julgado no tribunal da Relação e tendo a decisão recorrida sido proferida por este tribunal por, nos termos do n.º 3, do artigo 135.º, do CPP, ser o imediatamente superior ao tribunal onde foi suscitado o incidente, não pode esta decisão ser considerada como uma “decisão da relação proferida em 1.ª instância”, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 432.º, n.º 1, al. a), do CPP, segundo o qual se recorre para o Supremo Tribunal de Justiça “de decisões das relações proferidas em 1.ª instância””.

 

Nestes termos, não é tarefa acometida a este Tribunal Constitucional decidir se a decisão da Relação constitui, ou não, uma decisão de primeira instância. Essa é uma questão de interpretação do direito infraconstitucional, que este Tribunal tem repetidamente afirmado ser da exclusiva competência dos tribunais comuns. Do que aqui se trata é, pois, de indagar se uma interpretação que exclui da hipótese normativa da alínea a) do n.º 1 do artigo 432.º do CPP a decisão sobre a quebra de sigilo profissional, tomada nos termos previstos no artigo 135.º, n.º 3, do CPP, impedindo, assim, a interposição de recurso para o STJ –, viola, ou não, as normas e princípios constitucionais invocados pelo recorrente.

 

10. Estabelecido este ponto de partida, de novo se remete para o percurso argumentativo percorrido no Acórdão n.º 740/20:

Sendo certo que, como acabou de se afirmar, a aplicação e a interpretação quanto à forma de tramitação deste incidente processual são matérias de direito infraconstitucional para as quais são competentes os tribunais comuns, é necessário perscrutá-lo, ainda que apenas topicamente, de forma a confrontar a sua compatibilidade com os parâmetros da CRP ora relevantes.

No que respeita a tal incidente de quebra de segredo profissional, vislumbram-se duas fases: ao tribunal de primeira instância cabe pronunciar-se quanto à legitimidade da escusa da prestação de depoimento ou da informação em causa, não tendo lugar um juízo de ponderação de interesses no intuito de determinar o prevalecente; o tribunal de primeira instância verificará se a respetiva situação está, ou não, coberta pelo dever de segredo e, bem assim, por esta dimensão do direito fundamental de reserva da vida privada. Ao tribunal imediatamente superior compete, por sua vez, decidir se se deve proceder, ou não, à quebra do sigilo, reapreciando a questão e atendendo ao juízo de ponderação e proporcionalidade da pluralidade de direitos, interesses e bens constitucionalmente protegidos em confronto.

Desta estrutura do regime legal decorrem duas hipóteses contrastantes. A escusa pode ser considerada ilegítima, pelo tribunal de primeira instância, quando não se confirmar, segundo o seu entendimento, que o facto analisado está protegido pelo segredo profissional e, bem assim, pelo direito à reserva da vida privada nesta dimensão. Nesta circunstância, não se cogita de uma quebra de sigilo porque não incide qualquer dever desse tipo sobre a situação, não sendo por ele abrangida. Nesse contexto, o direito fundamental do artigo 26.º da CRP não sofrerá qualquer afetação.

Ao contrário, a escusa é considerada legítima, pelo tribunal de primeira instância, quando o facto controvertido for classificado como englobado pelo segredo profissional e pela reserva da vida privada. Nesse caso, que foi o que, no presente processo, se verificou, o tribunal a quo reconhece a incidência de tais garantias e remete para o seu tribunal ad quem a conclusão do incidente da quebra do sigilo, de que resultará a definitiva tutela dos interesses conflituantes. Assim, por força do número 3 do artigo 135.º, do CPP, sendo legítima a escusa, a apreciação positiva da ocorrência do dever de segredo pelo tribunal de primeira instância impõe que seja o tribunal imediatamente superior a reapreciar a validade da escusa e, igualmente, decidir de forma definitiva se os interesses da verdade material no processo em curso devem prevalecer em relação ao segredo.

 

11. Nestes termos, o problema de constitucionalidade em análise consiste em saber se decorre do direito ao recurso e às garantias de defesa, na sua específica dimensão processual penal, consagrada no artigo 32.º, n.º 1, da CRP, a necessidade de reapreciação por um tribunal superior da decisão tomada pelo Tribunal da Relação acerca do levantamento do sigilo profissional, tendo em atenção os passos processuais que a precedem, e que acima se descreveram.

A questão fundamental é, pois, no presente caso, a seguinte: o sistema de autorização judicial de levantamento do sigilo profissional, globalmente considerado, e tendo em conta, designadamente, quer os sujeitos envolvidos, quer a posição do detentor do poder de decisão e o concreto iter processual, oferece garantias suficientes, no quadro do ordenamento processual penal, em termos que permitam, considera-lo conforme à Constituição, e às específicas garantias de defesa em matéria penal?

É indispensável notar, desde já, que o sistema desenhado pelo legislador não visa, de forma alguma, postergar as garantias de defesa em processo penal. Pelo contrário, toda a construção legislativa respeitante ao sistema de levantamento do sigilo profissional mostra uma vontade efetiva de tutelar, adequadamente, todos os direitos e interesses em causa. Mais uma vez, vale, neste caso, o que se disse no Acórdão n.º 740/20:

É verdade que não o faz através da consagração da figura do recurso, tendo procurado um equilíbrio que permita proteger, igualmente, os valores da celeridade e segurança na administração da justiça, no quadro de um incidente processual que tem uma dimensão marcadamente objetiva. Mas é indiscutível que aquele princípio não foi postergado na ponderação com vista a uma concordância prática dos interesses conflituantes, cujo resultado se consubstancia na norma objeto do presente recurso de constitucionalidade.

 É, pois, precisamente em homenagem à tutela jurisdicional efetiva, constitucionalmente assegurada, que a lei atribui a um tribunal superior tal competência de reexame e de verificação da proporcionalidade (de resto, é o próprio art. 135.º, n. 3, CPP que determina os critérios a serem observados), na fase derradeira do incidente processual de quebra de sigilo (...) em que necessariamente o tribunal a quo já realizou uma primeira avaliação – em sentido positivo – da existência de cobertura da situação pelo dito dever de sigilo. Ou seja, o legislador teve em consideração o caráter eventualmente gravoso do levantamento do sigilo bancário, bem como a delicadeza dos bens e direitos fundamentais potencialmente contrastantes, e, nessa medida, assegurou a intervenção de um tribunal superior – funcionando em coletivo e, em tese, mais qualificado – para efetuar a ponderação determinante. 

Mais, este tribunal superior encontra-se completamente afastado do litígio, não sendo o tribunal competente para aferição do mérito da causa, podendo, por isso, agir como um terceiro imparcial. (...)

Assim, ainda que possa entender-se que uma decisão deste teor por parte de um Tribunal da Relação – que, como acontece nestes autos, não esteja, por competência própria, a funcionar em juízo originário – não constitui uma decisão proferida em 1.ª instância, (...) não pode deixar de reconhecer-se que o legislador quis, de alguma maneira, - e disso se assegurou -, uma proteção reforçada do direito à tutela jurisdicional efetiva, nesta matéria.

 

12. Ora, ainda que devam ser consideradas, neste caso específico, as exigências reforçadas decorrentes do facto de nos situarmos, desta vez, no âmbito do processo penal (e não de processo cível, como acontecia no Acórdão n.º 740/20), a verdade é que, também aqui, o sistema de proteção reforçada gizado pelo legislador parece situá-lo dentro da margem de liberdade de conformação que lhe é reconhecida pela CRP.

Por um lado, e desde logo, porque, como o próprio recorrente o reconhece, por não estar aqui em causa uma decisão condenatória, mas sim de uma mera decisão incidental, no quadro de um sistema que tutela, de forma mais intensa, certo tipo de provas a produzir no processo, tendo em consideração os direitos e interesses constitucionalmente protegidos em tensão, em situações determinadas. Ora, é verdade que, tratando-se, no presente caso, de matéria penal, estamos no âmbito de aplicação de um direito subjetivo ao recurso – isto é, que de um direito subjetivo específico, e não uma mera exigência decorrente da ideia de tutela jurisdicional efetiva -, envolvendo a garantia de um duplo grau de jurisdição, que a jurisprudência constitucional tem reconhecido, em determinados casos, em processo penal. Todavia, é igualmente certo que não se reconheceu, em caso algum, um direito geral e indiscriminado ao recurso de todas e quaisquer decisões judiciais, mesmo em matéria penal. Por isso, e atenta a necessidade de encontrar um ponto de concordância prática entre os direitos de defesa do arguido e os valores da celeridade e segurança na administração da justiça penal, não se afigura, desta perspetiva, que a interpretação normativa questionada possa ser considerada desconforme à Lei Fundamental.

 

13. Alega, porém, o recorrente, estar em causa uma decisão violadora de direitos fundamentais, designadamente, do direito a produzir prova, que “está inscrito no núcleo essencial das garantias de defesa”. Acrescenta o recorrente que “se ao Arguido é cerceado o direito a produzir prova - prova que considera imprescindível para defender a sua inocência - de nada lhe serve ter direito ao recurso da decisão final de mérito, que não pôde apreciar essa prova”. Estaria, pois, em causa, no seu entender, uma decisão jurisdicional que impõe restrições a direitos, liberdades e garantias, da qual tem de haver recurso, seguindo a jurisprudência plasmada no Acórdão n.º 40/08, deste Tribunal, que afirma que é sustentável que, sendo constitu­cionalmente assegurado o acesso aos tribunais contra quaisquer actos lesivos dos direitos dos cidadãos (maxime dos direitos, liberdades e garantias), sejam esses actos provenientes de par­ticulares ou de órgãos do Estado, forçoso é que se garanta o direito à impugnação judicial de actos dos tribunais (sejam eles decisões judiciais ou actuações materiais) que constituam a causa primeira e directa da afectação de tais direitos. Considera‑se, pois, que quando uma actuação de um tribunal, por si mesma, afecta, de forma directa, um direito fundamental de um cida­dão, mesmo fora da área penal, a este deve ser reconhecido o direito à apreciação judicial dessa situação. Mas quando a afectação do direito fundamental do cidadão teve ori­gem numa actuação da Admi­nistração ou de particulares e esta actuação já foi objecto de controlo jurisdicional, não é sempre constitucionalmente imposta uma reapreciação judicial dessa decisão”. Este mesmo critério decisório – segundo o qual deverá haver recurso quando uma actuação de um tribunal, por si mesma, afecta, de forma directa, um direito fundamental de um cida­dão – foi reafirmado nos Acórdãos n.º 44/08 e  197/09.

 

14. Contudo, e ainda que se subscrevesse a alegação do recorrente de que está aqui em causa um direito fundamental de defesa do arguido em processo penal, protegido pela norma do n.º 1 do artigo 32.º da CRP – o direito a produzir prova – sempre se afigura que é de aplicar a esta situação o critério e o fundamento mobilizados na decisão do Acórdão n.º 740/20, que temos vindo a acompanhar em pontos-chave. De facto, também aqui se crê que “a norma em apreço se afasta, quanto a pontos essenciais, do percurso argumentativo e da fundamentação adotada pelo Tribunal Constitucional, justificando-se, por isso, nesta situação, um desvio à jurisprudência consagrada pelo Acórdão n.º 40/08.

Vejamos porquê.

Em primeiro lugar, como acima se explicou, a quebra de sigilo aqui em causa situa-se no quadro de um processo penal, ao abrigo do dever das testemunhas de responder com verdade às perguntas que lhes são dirigidas, plasmado na alínea d) do n.º 1 do artigo 132.º do CPP. Contudo, e atentos os valores protegidos pela figura do sigilo profissional, há que assegurar que os dados trazidos para o processo são, unicamente, os indispensáveis para o apuramento da verdade de factos essenciais ao julgamento da causa. Assim, o sigilo profissional cobre, na situação analisada, uma zona de segredo sujeita a intensa atividade de concordância prática com outros direitos e valores constitucionalmente protegidos.

Precisamente devido à compreensão do problema numa zona que exige ponderação legislativa, a alegada afetação do direito a produzir prova no processo resulta da decisão do legislador que, num exercício de conjugação entre direitos e interesses constitucionalmente relevantes, entendeu que o dever de sigilo profissional pode ser dispensado, mas tão-só nas situações em que o tribunal entenda que parte da informação por ele abrangida é relevante para a resolução da causa. Ou seja, o levantamento do sigilo profissional não pode fazer-se unicamente por aplicação imediata do direito a produzir prova, e muito menos pelo exercício de um poder discricionário conferido à autoridade judicial. Faz-se, sim, como se afirmou no Acórdão n.º 740/20 “por aplicação de uma norma processual específica que prevê a quebra dos deveres de sigilo sempre que tal for indispensável, atentos os contornos particulares do caso em apreço e os direitos constitucionais em conflito”. Deste modo, a decisão de sacrifício do direito à produção de prova, em função da prevalência de outros bens constitucionalmente protegidos, entre os quais releva a reserva de intimidade da vida privada das pessoas envolvidas ou potencialmente mencionadas no testemunho em causa, resulta de uma escolha legislativa no sentido de conferir ao tribunal, em cada caso concreto, a faculdade de avaliação da imprescindibilidade do testemunho abrangido por sigilo profissional.

 

15. Em segundo lugar, e como também se afirmou no Acórdão n.º 740/20, “há que ter em consideração que não nos encontramos, de facto, perante uma simples decisão em primeira instância do Tribunal da Relação. O recorte legislativo do sistema de levantamento do sigilo bancário é, como se deu conta, de mais fino e complexo desenho, em especial, configurando a intervenção – meramente incidental - daquele tribunal como a de um elemento imparcial, porque alheio à resolução do processo principal”.

Face a esta ideia de proteção equivalente à conferida por um recurso, e atendendo a todas as especificidades do incidente de levantamento de sigilo, é lícito afirmar que a solução que resulta da norma questionada, no sentido de que não é recorrível para o STJ o acórdão da Relação que decide o incidente de levantamento do sigilo profissional previsto no artigo 135.º, n.º 3, do CPP,   permite ainda tutelar adequadamente os interesses e direitos fundamentais em conflito, designadamente o direito à produção de prova, enquanto garantia do arguido em processo penal, à luz do artigo 32.º, n.º 1, da CRP. Assim, não parece que haja qualquer ofensa aos direitos constitucionais postulados pelo aqui recorrente.

 

III. Decisão

 

Nestes termos, decide-se:

a) Não julgar inconstitucional a interpretação normativa do artigo 432.º, n.º 1, alínea a), do CPP, no sentido de que não é recorrível para o STJ o acórdão da Relação que decide o incidente de levantamento do sigilo profissional previsto no artigo 135.º, n.º 3, do CPP.

b) Negar provimento ao recurso interposto.

 

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco) UC, ponderados os critérios estabelecidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (cfr. o artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma).

Lisboa, 19 de março de 2021 – Mariana Canotilho – Fernando Vaz Ventura – Pedro Machete A relatora atesta o voto de conformidade da Senhora Conselheira Assunção Raimundo, que participou por videoconferência.

Tem declaração de voto do Senhor Conselheiro Vice-presidente, Pedro Machete.

 

 

DECLARAÇÃO DE VOTO

 

Acompanho a presente decisão e o essencial da respetiva fundamentação, não obstante a posição assumida na declaração junta ao Acórdão n.º 740/2020

Apesar da sua proximidade, creio que as questões jurídico-constitucionais suscitadas no processo em que o citado Acórdão foi proferido e no presente processo são distintas, designadamente no que releva do direito à impugnação judicial de quaisquer atuações dos poderes públicos que sejam a causa imediata da lesão de direitos, liberdades e garantias, enquanto condição indispensável da efetividade da tutela jurisdicional, consagrado pela jurisprudência dos Acórdãos n.ºs 40/2008, 44/2008 e 197/2009. No primeiro processo, estava em causa a irrecorribilidade de uma decisão judicial que imediata e autonomamente agrediu um direito fundamental de liberdade – a decisão de quebrar o sigilo bancário, corolário do direito à reserva da intimidade da vida privada –; no segundo, ou seja, no presente processo, o que se questiona é a irrecorribilidade de uma decisão judicial que, por não quebrar o sigilo profissional de um advogado indicado pelo arguido como testemunha, impede este último de, na fase de instrução, produzir um certo meio de prova correspondente ao depoimento daquele profissional (e não, conforme alegado pelo recorrente, “o” direito a produzir prova).

Além do direito de defesa não estar necessariamente comprometido (nem tão pouco o processo equitativo), porque o meio de prova em causa se destina à instrução de um processo criminal, continua plenamente assegurado o direito ao recurso quanto a uma eventual decisão condenatória, em especial se, a final, a matéria de facto em que a mesma se fundar for considerada insuficiente (cfr. o artigo 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal).

Deste modo, à questão fundamental enunciada no n.º 11 do presente Acórdão, também respondo afirmativamente, precisamente com base nas razões elencadas no número seguinte.

Pedro Machete

 




 


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