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TC > Jurisprudência > Acordãos > Acórdão 494/2021

ACÓRDÃO Nº 494/2021

 

Processo n.º 243/2021

1.ª Secção

Relator: Conselheiro José António Teles Pereira

 

 

 

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional

 

I – A Causa

 

1. No processo de inquérito que correu os seus termos no Departamento de Investigação e Ação Penal de Setúbal com o número 234/19.4JELSB, em que são arguidos os ora recorrentes A., B., C. e D., o Ministério Público requereu a declaração de excecional complexidade do processo, nos termos do artigo 215.º, n.º 4, do Código de Processo Penal (CPP).

 

1.1. Por despacho de 26/08/2020, a senhora juíza do Juízo de Instrução Criminal de Setúbal determinou a notificação dos arguidos para, querendo, se pronunciarem sobre o referido pedido no prazo de 3 dias.

 

1.1.1. No dia 04/09/2020, a senhora juíza do Juízo de Instrução Criminal de Setúbal proferiu despacho no qual declarou a excecional complexidade do processo.

 

1.1.2. No dia 08/09/2020, os arguidos exerceram o contraditório relativamente ao pedido de declaração de excecional complexidade, por referência à notificação determinada no despacho de 26/08/2020.

 

1.1.3. Na mesma data, suscitaram, então, uma nulidade decorrente de, em seu entender, o prazo concedido para o exercício do contraditório quanto à declaração da especial complexidade não ter ainda decorrido aquando da prolação do despacho de 04/09/2020 acima referido. Viram tal pretensão indeferida por despacho de 21/09/2020, com os fundamentos que ora se transcrevem:

 

“[…]

Invocam os arguidos (implicitamente) que foi cometida uma irregularidade/nulidade, dado que o prazo concedido para o exercício do contraditório quanto à declaração da especial complexidade não havia ainda decorrido aquando do prolatar do despacho judicial que declarou os autos de especial complexidade, em 04/09/2020.

Conforme resulta de fls. 1130 e segs., parte final […] foi concedido o prazo de 3 dias, para tal efeito.

Do despacho de fls. 1130 e segs., foram os arguidos pessoalmente notificados no E.P. em 27/09/2020 (conforme ofícios de notificação de fls. 1132 e segs. e fls. 1154 e segs.), pelo que, o prazo de 3 dias, concedido, decorreu, fixando-se o seu terminus em 30/09/2020 e os três dias úteis a que alude o artigo 107.º-A do C.P.P. e 139.º do C.P.C. em 03/09/2020.

Quanto aos seus Il. Advogados, foram os mesmos notificados por expediente de 26/08/2020 (conforme fls. 1133 e 1134 e versos), via e-mail, enviado nesse mesmo dia.

Apesar do teor dos ofícios de fls. 1133 e 1134, tal normativo legal invocado – Artigo 113.º do C.P.P. – reporta-se, em consonância com o seu n.º 2, a notificações realizadas via postal registada ou, nos termos do seu n.º 12, a notificações realizadas via eletrónica, isto é, via Citius.

Ora, as notificações aos Exm.ºs Mandatários não foram realizadas de nenhuma das mencionadas formas, pelo que tais prazos e norma legal, não se aplicam ao caso presente, não sendo de conceder novos prazos ou prazo adicional, por via, simplesmente, do teor dos aludidos ofícios.

Assim, os Exm.ºs Advogados foram notificados dia 26/09, pelo que, o prazo de 3 dias, concedido, terminou em 29/09/2020 (dado que se trata de autos urgentes, de presos preventivos) e o prazo de 3 dias úteis a que alude o Artigo 107.º-A do C.P.P. e 139.º do C.P.C., terminou em 02/09/2020.

Nestes termos, proferido despacho a declarar os autos de especial complexidade no dia 04/09/2020, já haviam decorridos os prazos legais concedidos, para o exercício do contraditório.

Tudo, o que resulta do próprio despacho cuja nulidade/irregularidade ora se argui, aí expressamente referindo-se que o prazo do contraditório já havia decorrido.

Finalmente, como igualmente se diz no aludido despacho de 04/09/2020, o despacho que se pronuncia sobre a especial complexidade dos autos não integra o elenco daqueles em que é obrigatória a dupla notificação, quer aos arguidos, quer aos seus Il. Advogados, tudo o que resulta do teor do Artigo 113.º, n.º 10, 2.ª parte do C.P.P..

De qualquer modo, face ao exposto, nunca a data da última notificação operada – a dos arguidos – teria qualquer relevância face a um eventual incumprimento do prazo concedido, por parte do Tribunal, face ao que já supra se deixou explanado.

Acresce que, como bem refere o M.P., o prazo a que alude o Artigo 139.º do CPC e 107.º-A do C.P.P. não constitui ‘prazo’ propriamente dito. Traduz, simplesmente, uma faculdade de prática de ato, para além de prazo legal, a conceder, mediante o pagamento dos inerentes acréscimos legais.

Pelo que, mesmo a entender-se que o Tribunal não atendeu a tal ‘prazo’, o que não ocorreu – porquanto como se viu, a 04/09, já todos os prazos do Artigo 139.º do CPC e 107.º-A do CPP tinham terminado a 02 e 03/09 –, tal nunca implicaria o desrespeito pelo Tribunal dos prazos concedidos para o exercício do contraditório.

Em suma, carecem de fundamento os requerimentos apresentados pelos arguidos, não tendo sido cometida pelo Tribunal qualquer irregularidade ou nulidade aquando da prolação do despacho de fls. 1145 e segs..

[…]” (sublinhados acrescentados).

 

1.1.4. Os arguidos recorreram, então, dos despachos de 04/09/2020 e de 21/09/2020 para o Tribunal da Relação de Évora, invocando, designadamente, que o termo perentório do prazo concedido para se pronunciarem sobre a declaração de excecional complexidade do processo só ocorreu no dia 03/09/2020 e que “[…] deve na contagem dos prazos contar-se sempre com a possibilidade de as partes fazerem uso dos 3 dias úteis seguintes com pagamento de multa, conforme o artigo 139.º do Código de Processo Civil, por força do artigo 107.º-A do Código de Processo Penal”, o que permitiria, no seu entender, praticar o ato até ao dia 08/09/2020. Concluíram, assim, pela violação do princípio do contraditório.

 

1.1.5. No Tribunal da Relação de Évora, foi proferido acórdão, datado de 09/02/2021, no sentido da improcedência do recurso. Dos respetivos fundamentos consta, designadamente, o seguinte:

 

“[…]

A notificação em causa foi feita com caráter de urgência, tal como decorre do despacho judicial que a determinou.

Na resposta ao recurso sobre esta questão é referido: ‘considerando-se a notificação do despacho em causa efetuada no dia 31 de agosto, o prazo de três dias não se esgotou no dia 8 de setembro, mas sim no dia 3 de setembro de 2020.

Os dias 4, 7 e 8 de setembro correspondem à tolerância para a prática do ato, prevista no art.º 107.º-A do Código de Processo Penal.

O prazo de 3 dias terminou no dia 3 de setembro, não cabendo aos demais intervenientes processuais adivinhar se os arguidos pretendem praticar o ato num período que é de tolerância e cuja utilização impõe o pedido e o pagamento de uma multa processual.’

Os recorrentes não emitiram qualquer declaração a manifestar a intenção de praticar o ato nos três dias úteis seguintes ao termo do respetivo prazo e a pagar a multa consequente.

Portanto, o prazo a que alude o artigo 139.º do CPC e 107.º do C.P.P. corresponde a uma faculdade de prática de ato, para além de prazo legal, a conceder, a pedido e mediante o pagamento dos inerentes acréscimos legais, o que no caso ‘sub judice’, como já afirmado, não ocorreu.

Assim, é inquestionável que o prazo concedido aos recorrentes para se pronunciarem, sobre a questão em análise, terminou em 03/09/2020.

Concluindo, os recorrentes carecem de razão, nas pretensões do recurso por eles apresentado, não tendo sido cometida pelo Tribunal qualquer irregularidade ou nulidade aquando da prolação do despacho recorrido.

Os recorrentes, também, neste segmento do recurso, carecem de razão.

Não se vislumbra que com a prolação dos despachos recorridos tenham ocorrido violações dos artigos 61.º, n.º 1, alínea b), 119.º, alínea c), 215.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, nos arts. 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa e do princípio do contraditório.

[…]” (sublinhados acrescentados).

 

1.2. Desta decisão recorreram os arguidos para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC – recurso que deu origem aos presentes autos –, nos termos seguintes:

“[…]

I)

Pretende-se ver apreciada a constitucionalidade das normas extraídas dos artigos 139.º, n.º 5, do Código de Processo Civil e 107.º, n.º 5, do Código de Processo Penal, com a interpretação de que o instituto previsto é uma faculdade a conceder, mediante pedido nesse sentido e pagamento de multa correspondente aos dias utilizados.

Ou seja, que a prática de um ato processual fora do prazo, dentro dos 3 dias úteis subsequentes, deverá preceder de declaração a manifestar essa intenção, e, cumulativamente, que seja efetuado o pagamento da respetiva multa.

A referida interpretação normativa inquina de inconstitucionalidade material as referidas normas jurídicas, por limitarem de uma forma desproporcional e intolerável o direito de defesa dos arguidos, e assim contenderem com as normas constantes nos artigos 18.º, n.ºs 1 e 2, 20.º, n.ºs 1 e 4, 32.º, n.º 1, e 219.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.

Aliás, nesse sentido, o Acórdão n.º 538/2007 do Tribunal Constitucional que refere: “Em apreciação está o disposto no artigo 145.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, aplicável ao processo penal por força do artigo 107.º, n.º 5, do respetivo código. (...) Decorre desta norma, aplicada ao requerimento de recurso, que ele pode ser apresentado nos três dias imediatos ao termo do prazo legal, sem necessidade da prova de justo impedimento. Sobre o interessado apenas recai, neste caso, o ónus de pagar uma multa, nos termos e montante estabelecidos no preceito.”

II)

A interpretação dada pelo Tribunal o quo é absolutamente imprevisível e inesperada, uma vez que nunca se discutiu se seria, ou não, necessário qualquer tipo de declaração a manifestar a intenção de utilizar os 3 (três) dias subsequentes ao termo do prazo, além de se efetuar o pagamento da respetiva multa, previsto nos artigos 139.º, n.ºs 5 a 7, do Código de Processo Civil e 107.º, n.º 5, e 107.º-A do Código de Processo Penal.

Aliás, na decisão de 1.ª Instância e em sede de recurso nunca se debateu qualquer questão acerca da aplicação dessa faculdade, muito menos quanto à sua interpretação, pelo que se configura, assim, como uma decisão surpresa e por tal não poderiam os recorrentes, face à sua “imprevisibilidade”, suscitar em fase prévia a aludida inconstitucionalidade.

A verdade é que os recorrentes, ao serem confrontados com esta interpretação, imprevista e inesperada, não dispõem de qualquer oportunidade processual para suscitar a questão antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal a quo, por não poderem, de todo, antever a possibilidade dessa aplicação, muito menos dessa interpretação.

Ou seja, no caso em apreço, não seria razoável nem exigível que aos recorrentes coubesse um juízo de prognose relativo àquela interpretação, suscitando a questão de inconstitucionalidade no recurso interposto.

Aqui não está em causa apenas a simples “surpresa” daquela interpretação mas sim o facto de a mesma estar arredada, atendendo a prática processual e a letra da lei, no que toca a essa questão.

Não se mostrava, sequer, uma possibilidade interpretativa suscetível de ser seguida e utilizada pelo Tribunal, que os recorrentes se limitaram a ignorar por contender com a sua.

Não!

Refere, entre outros, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 489/94 em que “Somente se tem admitido que a questão seja suscitada depois de proferida a decisão nos casos excecionais em que o recorrente não tenha tido a oportunidade de o fazer antes, ou em que o poder jurisdicional, por força de norma processual específica, não se esgote com a decisão recorrida. O Tribunal tem considerado até que cabe às partes considerar antecipadamente as várias hipóteses de interpretação razoáveis das normas em questão e suscitar antecipadamente as inconstitucionalidades daí decorrentes antes de ser proferida a decisão.”

E, como referido, não havia como os recorrentes preverem tal interpretação por ir contra a prática do direito comum e a letra da lei, como referido, sendo que, por isso, não deverá a mesma constituir um dado inequívoco com que devessem contar.

Por isso, consideram os recorrentes que estavam impossibilitados, por qualquer meio, de suscitar a questão anteriormente, deve sempre, no caso, ser considerada uma situação excecional e, como tal, ser a mesma apreciada.

III)

O presente recurso tem subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

[…]” (sublinhados acrescentados).

 

1.2.1. O recurso foi admitido no Tribunal da Relação de Évora.

 

1.2.2. No Tribunal Constitucional, o relator proferiu despacho com o seguinte teor:

 

“[…]

Notifique as partes para alegações, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 79.º, n.º 1, da LTC, com cópia do presente despacho, devendo ter-se como objeto do recurso – aqui se procedendo a um ajustamento meramente formal do enunciado do recorrente – a norma que resulta da conjugação dos artigos 107.º, n.º 5, do Código de Processo Penal e 139.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, interpretados no sentido de que o exercício da faculdade de praticar o ato processual dentro dos três primeiros dias úteis subsequentes ao termo do prazo deve ser precedido de declaração a manifestar essa intenção, para além do pagamento da multa devida.

Ficam as partes advertidas de que o presente recurso tem efeito devolutivo, por corresponder ao efeito do recurso anterior, perante o Tribunal da Relação de Évora (cfr. artigo 78.º, n.º 3, da LTC; despacho de 05/11/2020 do Juízo de Instrução Criminal de Setúbal, que fixou efeito devolutivo ao recurso, com subida a final; despacho de 08/02/2021 do Tribunal da Relação de Évora, que alterou o regime de subida para subida imediata e manteve o efeito do recurso).

[…]”.

 

1.2.3. Os recorrentes apresentaram as suas alegações, assim concluindo:

 

“[…]

1. A norma que resulta da conjugação dos artigos 107.º, n.º 5, do código de Processo Penal e 139.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, interpretados no sentido de que o exercício da faculdade de praticar o ato processual dentro dos três primeiros dias úteis subsequentes ao termo do prazo deve ser precedido de declaração a manifestar essa intenção, para além do pagamento da multa devida é inconstitucional;

2. Esta norma limita de uma forma desproporcional e intolerável o direito de defesa dos arguidos, afronta o princípio da igualdade, o direito a um processo equitativo os direitos de defesa;

3. A interpretação mais conforme com as normas e princípios constitucionais é aquela que não exige, previamente à prática de ato processual nos três dias uteis seguintes ao termo do prazo, uma declaração a manifestar essa intenção.

[…]”.

 

1.2.4. O Ministério Público ofereceu contra-alegações, que culminam nas seguintes conclusões:

 

“[…]

27. Mediante recurso interposto, em 26 de fevereiro de 2021 e com fundamento no “disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo  70º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro”, os arguidos, ora recorrentes, A., B., C. e D. vêm suscitar a apreciação da constitucionalidade da “norma que resulta da conjugação dos artigos 107.º, n.º 5, do Código de Processo Penal e 139.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, interpretados no sentido de que o exercício da faculdade de praticar o ato processual dentro dos três primeiros dias úteis subsequentes ao termo do prazo deve ser precedido de declaração a manifestar essa intenção, para além do pagamento da multa”.

28. Os recorrentes assentam o pedido de declaração da inconstitucionalidade da interpretação normativa, efetuada no acórdão recorrido, proferido pelo Tribunal da Relação de Évora (vide fls. 116 e ss.), das disposições conjugadas dos artigos 107.º, n.º 5, do Código de Processo Penal (CPP) e 139.º, n.º 5 do Código de Processo Civil (CPC), no entendimento de que a mesma “limita de uma forma desproporcional e intolerável o direito de defesa dos arguidos, afronta o princípio da igualdade, o direito a um processo equitativo [e] os direitos de defesa”.

29. E sustentam, para tanto e em síntese, o seguinte: (…).

30. Por isso, propugnam que “a interpretação mais conforme com os princípios constitucionais é aquela que não exige, previamente à prática de ato processual nos três dias úteis seguintes ao termo do prazo, uma declaração a manifestar essa intenção”.

31. Constitui, assim, objeto do presente recurso «a norma que resulta da conjugação dos artigos 107.º, n.º 5, do Código de Processo Penal e 139.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, interpretados no sentido de que o exercício da faculdade de praticar o ato processual dentro dos três primeiros dias uteis subsequentes ao termo do prazo deve ser precedido de declaração a manifestar essa intenção, além do pagamento da multa devida».

32. Prescreve o artigo 107.º, n.º 5, do CPP que «[i]ndependentemente do justo impedimento, pode o ato ser praticado no prazo, nos termos e com as mesmas consequências que em processo civil, com as necessárias adaptações.»

33. E o n.º 5 do artigo 139.º do CPC estabelece, por sua vez, que «[i]ndependentemente de justo impedimento, pode o ato ser praticado dentro dos três primeiros dias úteis subsequentes ao termo do prazo, ficando a sua validade dependente do pagamento imediato de uma multa, fixada nos seguintes termos:

 a) Se o ato for praticado no 1.º dia, a multa é fixada em 10 % da taxa de justiça correspondente ao processo ou ato, com o limite máximo de 1/2 UC;

b) Se o ato for praticado no 2.º dia, a multa é fixada em 25 % da taxa de justiça correspondente ao processo ou ato, com o limite máximo de 3 UC;

c) Se o ato for praticado no 3.º dia, a multa é fixada em 40 % da taxa de justiça correspondente ao processo ou ato, com o limite máximo de 7 UC.”

34. A prática de ato fora do prazo estabelecido ou fixado tem natureza excecional, apenas se podendo verificar nos casos expressamente previstos e sob as condições legalmente fixadas.

35. A questão que se suscita nos presentes autos refere-se, assim, à possibilidade de o ato poder ser ainda praticado dentro dos três primeiros dias úteis subsequentes ao termo de prazo fixado por despacho judicial em processo de inquérito penal urgente, nos termos e com as mesmas consequências do processo civil, com as necessárias adaptações.

36. Embora o disposto no n.º 5 do artigo 107.º do CPP, ao remeter para o regime da prática de ato em processo civil, permita a prática do ato dentro do período correspondente aos primeiros três dias úteis posteriores ao termo do prazo (fixado), importa ter presente que, a mesma norma, faz depender a validade dessa prática do ato do pagamento imediato de uma multa, cujos montantes estão previstos no artigo 107.º-A do CPP.

37. O despacho judicial que ordenou a notificação dos arguidos, ora recorrentes, para em 3 dias, «exercerem o contraditório (…) [relativamente à] promoção do Ministério Público, que requeria que se declarassem os autos de Excecional Complexidade», foi-lhes devida e regularmente notificado, na pessoa de cada um deles, em 27 de agosto de 2020 (cfr. fls. 47, 48, 49 e 50).

38. Pelo que o prazo de três dias concedido aos arguidos, nos termos e para os efeitos do artigo 215.º, n.º 4, in fine do CPP, para exercício do contraditório quanto à requerida declaração da excecional complexidade do processo (vide fls. 28v.º e 29), terminou em 31 de agosto de 2020 (1.º dia útil seguinte ao termo do prazo fixado).

39. E, nessa medida, o fim do período de três dias úteis previsto nas citadas disposições conjugadas dos artigos 107.º, n.º 5 e 139.º, n.º 5 do CPC, subsequente pois ao termo daquele prazo, ocorreu em 3 de setembro de 2020.

40. Por outro lado, dado o seu interesse para o devido enquadramento da questão jusconstitucional suscitada, importa também dar nota, a partir dos elementos constantes dos autos, do seguinte:

a) os arguidos, antes dessa data de 3 de setembro, e dentro, portanto, dos três primeiros dias úteis subsequentes ao termo do referido prazo, apresentaram requerimentos (cfr. fls. 33 a 36) pedindo seja declarado «nulo/irregular» o referido despacho judicial e os mesmos notificados da promoção do Ministério Público relativa à especial complexidade do processo «para, deste modo, ser exercido o contraditório»;          

b) o despacho judicial que, ao abrigo do disposto no artigo 215.º, n.ºs, 1, 2 e 3 do CPP, declarou a especial complexidade dos autos foi proferido a 4 de setembro de 2020 (cfr. fls. 38 a 41);

c) o Juízo de Instrução Criminal de Setúbal, ao conhecer dos requerimentos referidos em a), para além de assinalar que, na data em que foi proferido esse despacho (de 4 setembro de 2020), já havia decorrido o período de três dias úteis subsequente ao termo do prazo fixado para o exercício do contraditório quanto à requerida declaração de especial complexidade do processo, refere ainda que «o prazo a que alude o Artigo 139º do CPC e 107.º-A do C.P.P. não constitui um “prazo” propriamente dito. Traduz, simplesmente, uma faculdade de prática de ato, para além do prazo legal, a conceder, mediante o pagamento dos inerentes acréscimos legais. Pelo que, mesmo a entender-se que o Tribunal não atendeu a tal “prazo», o que não ocorreu – porquanto como se viu, a 04/09, já todos os prazos do Artigo 139º do CPC e 107º-A do CPP tinham terminado a 02 e 03/09- , tal nunca implicaria o desrespeito pelo Tribunal dos prazos concedidos para o exercício do contraditório» (cfr. fls. 56 a 58).

41. O Tribunal da Relação de Évora – tribunal recorrido –,  ao apreciar, entre as 4 questões colocadas pelos recorrentes, a questão de «improcedência de uma nulidade», ou seja, a questão da possibilidade da prática do ato no «prazo» a que aludem as disposições conjugadas dos artigos 107º, n.º 5 do CPP e 139.º, n.º 5 do CPC, pronunciou-se, seguindo o que já havia sido dito sobre essa matéria pela 1.ª instância (Juízo de Instrução Criminal de Setúbal) , nos seguintes termos: “Os recorrentes não emitiram qualquer declaração a manifestar a intenção de praticar o ato nos três dias úteis seguintes ao termo do respetivo prazo e a pagar a multa consequente.

Portanto, o prazo a que alude o Artigo 139.º do CPC e 107.º, do C.P.P., corresponde a uma faculdade de prática de ato, para além de prazo legal, a conceder, a pedido e mediante o pagamento dos inerentes acréscimos legais, o que no caso “sub judice”, como já afirmado, não ocorreu.

Assim, é inquestionável que o prazo concedido aos recorrentes para se pronunciarem, sobre a questão em análise, terminou em 03/09/2020.”

42. A questão suscitada nos presentes autos remete para matéria que, embora respeitando ao disposto nos artigos 107.º, n.º 5 do CPP e 139.º, n.º 5 do CPC, não está relacionada com a «exigência» de que o exercício da faculdade de praticar o ato processual dentro dos três primeiros dias úteis subsequentes ao termo do prazo (fixado) deva ser precedida de declaração a manifestar essa intenção,

43. Mas sim está relacionada com a matéria de contagem (incluindo a partir de que data) do prazo (de 3 dias) fixado para, nos termos do disposto no artigo 215.º, nº 4 in fine do CPP, os arguidos poderem ser ouvidos quanto ao pedido de declaração da excecional complexidade do processo e, consequentemente, também da contagem dos três primeiros dias úteis posteriores ao termo desse prazo

44. Apesar de terem apresentado, antes do dia 4 de setembro de 2020 (data do despacho que declarou a especial complexidade do processo), requerimentos no sentido da irregularidade/nulidade do despacho de 26 de agosto de 2020, que determinou a sua notificação nos termos e para os efeitos do citado artigo 215.º, n.º 4 in fine do CPP, os arguidos defendem, nas suas conclusões da motivação de recurso para o Tribunal a quo, que o ato poderia ter sido praticado até 8 de setembro de 2020 e não até 3 de setembro de 2020 (como decidido nos autos), argumentando o seguinte: (…).

45. Todavia, como já acima se viu, os arguidos foram todos pessoalmente notificados, em 27 de agosto de 2020, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 215.º, n.º 4 in fine do CPP, pelo que o termo do prazo de 3 dias que lhes foi concedido para exercerem o contraditório ocorreu em 31 de agosto de 2020, contando-se a partir daí os três dias úteis subsequentes ao termo desse prazo, ou seja, os dias 1, 2 e 3 de setembro.

46. Sem prejuízo disso, importa notar que os arguidos, ora recorrentes, para poderem usar do «prazo suplementar de condescendência» previsto no artigo 139.º, n.º 5 do CPC (aplicável por força do artigo 107.º do CPP) teriam sempre, dentro do referido período de três dias úteis, não só de praticar o ato, como proceder de imediato ao pagamento da multa legalmente devida. 

47. Na verdade, essa faculdade de praticar o ato no período “suplementar” de três dias úteis após o termo do prazo, sendo uma exceção à exigência da sua prática no decurso do prazo, está sempre dependente, em termos da sua validade, de uma contrapartida sancionatória, ou seja, do dever de pagamento de multa prevista no artigo 107º-A do CPP.

48. Como se refere no Acórdão n.º 265/2021 “a patente natureza sancionatória da multa prevista no n.º 5 do artigo 139.º do CPC vem, desde há muito, sendo assinalada pela jurisprudência deste Tribunal Constitucional.”

49. E se é verdade que o pagamento dessa sanção constitui um «dever de natureza meramente processual» o certo é que não se mostra nos autos que tenha sido paga alguma multa, para os arguidos poderem beneficiar dessa «regalia» de praticar o ato fora do prazo fixado. 

50. Daí que, ressalvado melhor entendimento, se acompanhe a douta decisão recorrida, proferida pelo tribunal recorrido, o Tribunal da Relação de Évora,  porquanto não tendo os arguidos, ora recorrentes, praticado o ato até 3 de setembro de 2020, nem pago qualquer multa para esse efeito, ou, ainda sequer, de alguma forma, “manifest[ado] a intenção de [o] praticar[r] (...) e (...) pagar a multa consequente (...)”, não pode deixar de entender-se, tal como o fez Tribunal a quo, que “o prazo concedido (...) para se pronunciarem, sobre a questão em análise, terminou”.

51. Ora, considerando tudo o exposto, afigura-se-nos, pois, que a leitura efetuada pelo Tribunal a quo do normativo submetido à fiscalização deste Tribunal Constitucional, pese embora na decisão recorrida se afirme, tal como já se havia afirmado em decisão da 1.ª instância, que  “o prazo a que alude o Artigo 139.º do CPC e 107.º do C.P.P., corresponde a uma faculdade de prática de ato, para além de prazo legal, a conceder, a pedido e mediante o pagamento dos inerentes acréscimos legais”, acaba por não ser coincidente nem ter o alcance da  “interpretação no sentido de que o exercício da faculdade de praticar o ato processual dentro dos três primeiros dias uteis subsequentes ao termo do prazo deve ser precedido de declaração a manifestar essa intenção, além do pagamento da multa devida”.

52. E, assim, atendendo a que os arguidos não só não  praticaram atempadamente o ato, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 107.º, n.º 5 do CPP e 139.º, n.º 5 do CPC,  como nem sequer revelaram, de alguma forma, que o pretendiam fazer, nomeadamente mostrando terem pago a  multa  que seria devida, afigura-se-nos,  sempre ressalvado melhor entendimento, que o Tribunal recorrido decidiu – e, a nosso ver, bem – que “o prazo concedido aos recorrentes para se pronunciarem, sobre a questão em análise, terminou em 03/09/2020”.

53. Na decisão recorrida não se refere, aliás, que a faculdade de praticar o ato, dentro dos três primeiros dias úteis subsequentes ao termo do prazo, deva ser precedida de declaração a manifestar essa intenção, mas sim decorrer do pagamento da multa.

54. E, não deixando de se afirmar, nessa mesma decisão, que “o prazo a que alude o Artigo 139.º do CPC e 107.º do C.P.P. corresponde a uma faculdade de prática de ato, para além de prazo legal”, refere-se, a seguir, tão somente, que essa faculdade é “a conceder, a pedido” e com (“mediante”) “o pagamento dos inerentes acréscimos legais”.

55. Termos em que, perante tudo o acabado de expor, e afigurando-se-nos que da decisão recorrida não decorre uma interpretação das normas conjugadas dos artigos 107.º, n.º 5, do CPP e 139.º, n.º 5, do CPC suscetível de configurar, nos seus precisos termos, a questão constitucionalidade suscitada pelos recorrentes, se entenda não ser de conhecer do objeto do presente recurso.

Em face do explanado, não conhecendo do objeto do presente recurso – dado a decisão recorrida não ter aplicado, como ratio decidendi, a norma que o recorrente pretende ver fiscalizada – e negando-lhe, pois, provimento, fará o Tribunal Constitucional a costumada Justiça.

[…]” (sublinhados acrescentados).

 

1.2.5. Notificados para, querendo, se pronunciarem quanto à questão prévia do conhecimento do objeto do recurso suscitada pelo Ministério Público em contra-alegações, os recorrentes vieram dizer o seguinte:

 

“[…]

Salvo o devido respeito, nunca esteve em causa o não pagamento da multa processual devida por via do artigo 107.º-A do CPP.

Depois, porque se não fosse paga, o tribunal teria que notificar os arguidos nos termos e para os efeitos do n.º 6 do artigo 139.º do CPP.

O que não fez.

Assim, salvo o devido respeito, nunca esteve em causa na decisão recorrida o não pagamento da multa, antes, a declaração de manifestação da intenção de praticar o ato nos 3 dias subsequentes ao termo do prazo.

Aliás, se fosse como refere o MP nas suas contra-alegações, então logo o Juízo de instrução criminal de setúbal, ao conhecer dos requerimentos dos arguidos praticado no 3.º dia de multa, teria logo tomado posição sobre o não pagamento da multa.

O que não fez.

O que fez, foi considerar que o prazo previsto nos artigos 139.º do CPC e 107.º-A do CPP não constitui um prazo propriamente dito.

A decisão recorrida levou sempre em consideração na sua análise a declaração de manifestação da intenção de praticar o ato nos 3 dias seguintes ao prazo, como se pode observar do seguinte trecho do acórdão recorrido:

“O prazo de 3 dias terminou no dia 3 de setembro, não cabendo aos demais intervenientes processuais adivinhar se os arguidos pretendem praticar o ato num período que é de tolerância e cuja utilização impõem o pedido e o pagamento de uma multa processual”.

Em conclusão, o recurso dos arguidos deve de ser conhecido.

[…]”.

 

Cumpre apreciar e decidir o recurso.

 

II – Fundamentação

 

2. Delimitou-se o objeto do recurso por referência à inconstitucionalidade da norma que resulta da conjugação dos artigos 107.º, n.º 5, do Código de Processo Penal e 139.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, interpretados no sentido de que o exercício da faculdade de praticar o ato processual dentro dos três primeiros dias úteis subsequentes ao termo do prazo deve ser precedido de declaração a manifestar essa intenção, para além do pagamento da multa devida.

Prefiguram-se três questões prévias ao conhecimento do mérito: a explicitação de um elementos até agora implícito da interpretação em causa no recurso (a que o Tribunal procede oficiosamente); a omissão da prévia suscitação da questão de inconstitucionalidade perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida (questão que os próprios recorrentes colocaram); e a falta de correspondência entre a norma indicada como objeto do recurso e a ratio decidendi do acórdão recorrido (referida pelo Ministério Público nas suas contra-alegações).

 

2.1. O recurso foi delimitado, no despacho do relator, com o enunciado transcrito no item anterior. Desse enunciado não resulta explicitado um elemento determinante, que está, todavia, implícito ao longo de todo o processado, seja na decisão recorrida, seja nas alegações, seja nas contra-alegações: a circunstância de se tratar de um ato a praticar pelo arguido.

Este elemento pode e deve ser explicitado, para melhor compreensão dos fundamentos da decisão e para que o seu dispositivo possa ser mais exato quanto à configuração da norma apreciada. Tratando-se apenas de um ajustamento formal, pois o referido elemento atravessou todo o percurso argumentativo do recurso, mostrando-se consensual a sua verificação, a explicitação não afeta a posição de qualquer sujeito processual, pelo que não carece de ser previamente comunicada.

Fixa-se, pois, como objeto do recurso a norma que resulta da conjugação dos artigos 107.º, n.º 5, do Código de Processo Penal e 139.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, interpretados no sentido de que o exercício, pelo arguido, da faculdade de praticar o ato processual dentro dos três primeiros dias úteis subsequentes ao termo do prazo deve ser precedido de declaração a manifestar essa intenção, para além do pagamento da multa devida.

 

2.2. Os recorrentes entendem que a interpretação e aplicação da norma questionada no recurso foi imprevisível, constituindo uma decisão-surpresa que os liberta do ónus previsto no artigo 72.º, n.º 2, da LTC.

Têm sido repetidamente assinaladas na jurisprudência constitucional as condições para dispensa do ónus da suscitação prévia da questão de inconstitucionalidade. Nas palavras do Acórdão n.º 173/2016, na linha de muitos outros:

 

“[…]

Como o Tribunal Constitucional vem reiteradamente decidindo, «recai sobre as partes o ónus de analisarem as diversas possibilidades interpretativas, suscetíveis de virem a ser seguidas e utilizadas na decisão, cumprindo-lhes adotar as necessárias e indispensáveis precauções, em conformidade com um dever de litigância diligente e de prudência técnica (…)». Cabe-lhes, assim, «a formulação de um juízo de prognose, analisando e ponderando antecipadamente as várias hipóteses de enquadramento normativo do pleito e de interpretação razoável das normas convocáveis para a sua dirimição, de modo a confrontarem atempadamente o tribunal com as inconstitucionalidades que – na sua ótica – poderão inquinar tais normas ou interpretações normativas» (Carlos Lopes do Rego, Os Recursos de Fiscalização Concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Almedina, Coimbra, janeiro de 2010, pp. 81-82).

[…]” (sublinhados acrescentados).

 

No caso dos autos, o tribunal de primeira instância considerou, em síntese, que, no momento da pronúncia dos arguidos recorrentes quanto à declaração de excecional complexidade do processo (08/09/2020), o prazo para a prática desse ato já se encontrava esgotado, pois terminou em 03/09/2020, incluindo já nesta contagem o período de tolerância previsto nos artigos 107.º, n.º 5 e 107.º-A do CPP, concluindo, em coerência, que o despacho proferido em 04/09/2020 não interferiu com o exercício do contraditório. No mais, acrescentou que o prazo de tolerância previsto naqueles preceitos do CPP “[…] não constitui ‘prazo’ propriamente dito […]”, pelo que “[…] mesmo a entender-se que o Tribunal não atendeu a tal ‘prazo’, o que não ocorreu […] tal nunca implicaria o desrespeito pelo Tribunal dos prazos concedidos para o exercício do contraditório” (cfr. item 1.1.3., supra).

A partir deste enquadramento, poderia questionar-se, designadamente, se o prazo perentório, acrescido dos dias de tolerância, teria, efetivamente, terminado em 03/09/2020 ou se o designado período de tolerância “não constitui ‘prazo’ propriamente dito”. Não resulta, todavia, explícita ou implicitamente, que, para passar a constituir “prazo” propriamente dito (nos dizeres do tribunal de primeira instância), teria de ser precedido de uma declaração nesse sentido. Este último sentido surge apenas no acórdão recorrido (cfr. item 2.3., infra) e, não encontrando correspondência imediata com a letra da lei (cfr. artigos 107.º, n.º 5, e 107.º-A do CPP e 139.º, n.os 5 a 7, do Código de Processo Civil, doravante CPC) nem, em geral, com a prática judiciária – como melhor se analisará adiante, itens 2.4. e ss. –, conclui-se que constitui, efetivamente, uma interpretação imprevista, com a qual os recorrentes não podiam contar, o que os liberta de observar o ónus previsto no artigo 72.º, n.º 2, da LTC.

Tal condição não obsta, pois, à admissibilidade do recurso, no caso dos autos.

 

2.3. O Ministério Público invoca que o critério normativo da decisão recorrida “[…] acaba por não ser coincidente nem ter o alcance da interpretação no sentido de que o exercício da faculdade de praticar o ato processual dentro dos três primeiros dias uteis subsequentes ao termo do prazo deve ser precedido de declaração a manifestar essa intenção, além do pagamento da multa devida […]” e que “[…] na decisão recorrida não se refere, aliás, que a faculdade de praticar o ato, dentro dos três primeiros dias úteis subsequentes ao termo do prazo, deva ser precedida de declaração a manifestar essa intenção, mas sim decorrer do pagamento da multa”.

Por sua vez, os recorrentes entendem que nunca esteve em causa o não pagamento da multa processual devida por via do artigo 107.º-A do CPP, mas, no essencial, a falta de declaração da intenção de praticar o ato.

Como vimos no item anterior, na decisão do tribunal de primeira instância, considerou-se que o prazo relevante se esgotou em 03/09/2020, incluindo já nesta contagem o período de tolerância previsto nos artigos 107.º, n.º 5 e 107.º-A do CPP. Consequentemente, para este tribunal, o ato praticado pelos recorrentes em 08/09/2020 sempre teria sido praticado fora do prazo.

No entanto, a contagem do prazo no acórdão recorrido – na qual o Tribunal Constitucional não interfere, pois não lhe cabe reapreciá-la – foi diferente: afirmou-se aí expressamente que o prazo perentório terminou no dia 03/09/2020 (quinta-feira), pelo que se lhe seguiriam 3 dias úteis de tolerância: 04/09/2020 (sexta-feira), 07/09/2020 (segunda-feira) e 08/09/2020 (terça-feira).

Uma vez que os ora recorrentes praticaram o ato no último daqueles dias – 08/09/2020 –, a questão a apreciar pelo Tribunal da Relação de Évora passou a ter um enquadramento distinto: tratava-se, agora, de saber se a decisão sujeita a contraditório foi validamente proferida no dia 04/09/2020. Para sustentar essa validade, o Tribunal da Relação de Évora teria de afirmar, concomitantemente, a irrelevância da prática do ato, pelos arguidos, em 08/09/2020. Podia tê-lo feito dizendo que o período de tolerância não integra o “prazo propriamente dito”, como fez o tribunal de primeira instância, mas não foi este o fundamento de que lançou mão. O que se afirma na decisão recorrida é que: (a) “[…] não cabe aos demais intervenientes processuais adivinhar se os arguidos pretendem praticar o ato num período que é de tolerância” (neste ponto aderindo ao entendimento do Ministério Público); e (b) os recorrentes “[…] não emitiram qualquer declaração a manifestar a intenção de praticar o ato nos três dias úteis seguintes ao termo do respetivo prazo e a pagar a multa consequente”. É com base nesta omissão que se pronuncia sobre a validade do ato praticado pelo juiz: “[…] o prazo a que alude o artigo 139.º do CPC e 107.º do C.P.P. corresponde a uma faculdade de prática de ato, para além de prazo legal, a conceder, a pedido e mediante o pagamento dos inerentes acréscimos legais, o que no caso ‘sub judice’, como já afirmado, não ocorreu” (cfr. item 1.1.5., supra).

Interpretados os fundamentos à luz da dinâmica do processo, resulta evidente que – como justamente assinalam os recorrentes – a questão decisiva não se prendeu com o pagamento da multa, pois este não chegou a ser concretamente equacionado (nem se concebe que pudesse ter constituído obstáculo, visto que a omissão do seu pagamento teria a consequência prevista no artigo 139.º, n.º 6, do CPC, e não a imediata rejeição ou irrelevância processual do ato), mas essencialmente com a circunstância de o juiz que proferiu a decisão em primeira instância “não adivinhar” (entenda-se, implicitamente: por não ter sido advertido para tal) que o ato poderia vir a ser praticado no período de tolerância.

Daqui há que retirar que foi essencial para o sentido da decisão a afirmação de um ónus da parte interessada em “anunciar” a prática do ato no referido período, pois, não o fazendo, o juiz poderia validamente assumir que o não seria.

De onde resulta, em suma, que as normas foram interpretadas no sentido de que o exercício, pelo arguido, da faculdade de praticar o ato processual dentro dos três primeiros dias úteis subsequentes ao termo do prazo deve ser precedido de declaração a manifestar essa intenção, para além do pagamento da multa devida.

 

2.4. Prevê-se nos artigos 107.º, n.º 5 e 107.º-A do CPP e 139.º, n.os 4 a 7, do CPC o seguinte:

 

Artigo 107.º [do CPP]

Renúncia ao decurso e prática de ato fora do prazo

1 – ………………………………………………………………………

2 – ………………………………………………………………………

3 – ………………………………………………………………………

4 – ………………………………………………………………………

5 – Independentemente do justo impedimento, pode o ato ser praticado no prazo, nos termos e com as mesmas consequências que em processo civil, com as necessárias adaptações.

6 – ………………………………………………………………………

Artigo 107.º-A [do CPP]

Sanção pela prática extemporânea de atos processuais

Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, à prática extemporânea de atos processuais penais aplica-se o disposto nos n.os 5 a 7 do artigo 145.º do Código de Processo Civil [atual artigo 139.º], com as seguintes alterações:

a) Se o ato for praticado no 1.º dia, a multa é equivalente a 0,5 UC;

b) Se o ato for praticado no 2.º dia, a multa é equivalente a 1 UC;

c) Se o ato for praticado no 3.º dia, a multa é equivalente a 2 UC.

Artigo 139.º [do CPC]

[corresponde ao artigo 145.º do CPC de 1961]

Modalidades do prazo

1 – ………………………………………………………………………

2 – ………………………………………………………………………

3 – ………………………………………………………………………

4 – O ato pode, porém, ser praticado fora do prazo em caso de justo impedimento, nos termos regulados no artigo seguinte.

5 – Independentemente de justo impedimento, pode o ato ser praticado dentro dos três primeiros dias úteis subsequentes ao termo do prazo, ficando a sua validade dependente do pagamento imediato de uma multa, fixada nos seguintes termos:

a) Se o ato for praticado no 1.º dia, a multa é fixada em 10 % da taxa de justiça correspondente ao processo ou ato, com o limite máximo de 1/2 UC;

b) Se o ato for praticado no 2.º dia, a multa é fixada em 25 % da taxa de justiça correspondente ao processo ou ato, com o limite máximo de 3 UC;

c) Se o ato for praticado no 3.º dia, a multa é fixada em 40 % da taxa de justiça correspondente ao processo ou ato, com o limite máximo de 7 UC.

6 – Praticado o ato em qualquer dos três dias úteis seguintes sem ter sido paga imediatamente a multa devida, logo que a falta seja verificada, a secretaria, independentemente de despacho, notifica o interessado para pagar a multa, acrescida de uma penalização de 25 % do valor da multa, desde que se trate de ato praticado por mandatário.

7 – Se o ato for praticado diretamente pela parte, em ação que não importe a constituição de mandatário, o pagamento da multa só é devido após notificação efetuada pela secretaria, na qual se prevê um prazo de 10 dias para o referido pagamento.

3 – ………………………………………………………………………

 

É neste cruzamento de preceitos legais que se encontra a norma que resulta da conjugação dos artigos 107.º, n.º 5, do Código de Processo Penal e 139.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, interpretados no sentido de que o exercício, pelo arguido, da faculdade de praticar o ato processual dentro dos três primeiros dias úteis subsequentes ao termo do prazo deve ser precedido de declaração a manifestar essa intenção, para além do pagamento da multa devida.

 

2.4.1. O propósito do regime previsto no artigo 139.º, n.º 5, do CPC é viabilizar a prática de atos processuais durante um período curto após o termo do prazo perentório: “[na] decisão sumária proferida no Processo n.º 905/98, posteriormente confirmada pelo Acórdão n.º 37/99, apreciando-se a conformidade com a Constituição da República Portuguesa da norma constante do artigo 145.º, n.º 6, do anterior CPC, fundamentou-se que, face ao «princípio do acesso à justiça (cfr. artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa), o legislador entendeu não inviabilizar de pronto a prática de atos processuais fora do prazo, dando às partes a possibilidade de o fazer, ainda que sujeitas – naturalmente – ao pagamento de multa», que surge como «o preço da extensão do direito de acesso à justiça, ainda que à custa do atraso na administração da mesma»” (Acórdão n.º 265/2021).

O Tribunal já teve oportunidade de apreciar a questão da inconstitucionalidade de normas atinentes à prática de atos no denominado “período de tolerância” posterior ao termo do prazo perentório.

Na sequência de decisões no sentido de não julgar inconstitucional a interpretação no sentido de exigir que o Ministério Público, não pagando a multa, emita uma declaração no sentido de pretender praticar o ato nos três dias posteriores ao termo do prazo (Acórdão n.º 355/2001 e jurisprudência posterior que o retomou) e de não julgar inconstitucional a interpretação no sentido de ser admissível a prática de atos processuais pelo Ministério Público, naquele período, sem que a sua validade fique dependente da emissão de uma declaração no sentido de pretender praticar o ato nesses três dias (Acórdãos n.os 59/91 e 33/2021), no Acórdão n.º 538/2007 decidiu-se julgar inconstitucional a norma do n.º 5 do artigo 145.º do CPC, interpretada no sentido de exigir ao Ministério Público que emita uma declaração manifestando a intenção de interpor recurso nos três primeiros dias subsequentes ao termo do prazo legal, antes de esgotado este mesmo prazo.

Nos fundamentos desta última decisão pode ler-se, designadamente, o seguinte:

 

“[…]

[É] decisivo atender à razão de ser da concessão, pelo n.º 5 do artigo 145.º do CPC, de um prazo adicional para interpor recurso, bem como ao impacto que a interpretação em causa tem no efetivo exercício dessa faculdade.

É pacífico o entendimento de que essa medida visa evitar o efeito definitivamente preclusivo da não observância de um prazo, com o possível sacrifício irremediável de uma posição juridicamente tutelável. É para obviar a essa consequência desproporcionadamente gravosa de uma falha muitas vezes compreensível, ainda que não integrável no conceito de ‘justo impedimento’, que a lei concede um prazo suplementar, de curta duração, para a prática do ato.

A interpretação normativa em apreço força o Ministério Público a prever antecipadamente, dentro do prazo perentório normal, a inobservância desse prazo. Ele tem como que ‘programar’ a utilização da faculdade concedida pelo n.º 5 do artigo 145.º do CPC, antecipando, no decurso daquele prazo, a futura necessidade ou conveniência de a exercitar.

Ora, uma tal imposição deixa a descoberto muitas das situações em que se deixou extinguir o prazo legal, mas sem intenção ou consciência disso, ou como resultado de circunstâncias imprevistas, e não por força de uma estratégia deliberada de alargamento do prazo disponível.

Como se lembra, oportunamente, nas alegações do Representante do Ministério Público neste Tribunal: «(…) tal utilização decorrerá, na maioria dos casos, da ocorrência de situações acidentais, ligadas, por exemplo, a uma falha burocrática-administrativa (que frustrou a entrega ou remessa atempada a juízo de peça processual que a parte pretendia fazer entrar em juízo dentro do respetivo prazo legal) ou a um erro na contagem do prazo perentório, suscetível de levar a parte a praticar em juízo certo ato, supondo que o faria dentro do prazo perentório respetivo, o qual, todavia, já se encontraria esgotado.»

Em qualquer destas situações não previstas, o esgotamento do prazo legal fará com que o Ministério Público perca a possibilidade de recorrer. A menos que, para se precaver contra essa eventualidade, e na dúvida quanto à observância do prazo legal, ele passe a adotar a prática, como medida cautelar, de apresentação sistemática e quase mecanicamente ritualista da declaração de utilização do prazo adicional. Mas, a ser assim, corre-se o risco de a solução vir a provocar, paradoxalmente, uma utilização incontida deste mecanismo. E eis como um ónus que, no Acórdão n.º 355/2001, aparece caracterizado como ‘um modo suficiente e adequado de controlo institucional do cumprimento dos deveres relativos a prazos processuais pelo Ministério Público’, poderá produzir, a validar-se esta interpretação normativa, o efeito perverso de contribuir para o incumprimento desses prazos.

Ao mesmo tempo que retira campo operativo ao disposto no n.º 5 do artigo 145.º do CPC, quando o sujeito interessado em recorrer é o Ministério Público, contra a ratio legis do preceito, esta interpretação não se mostra adequada à prossecução de qualquer fim processual materialmente relevante.

Na sentença recorrida, vem expresso que ela se justifica ‘para não frustrar as expectativas dos demais sujeitos processuais de que a sentença não vai transitar em julgado no termo do prazo’.

Mas a justificação não procede.

Contra ela se pode arguir, em primeiro lugar, que cai num círculo vicioso, pois, não sendo tuteláveis expectativas que contrariem os dados normativos, qualquer representação subjetiva quanto à força da sentença, formada antes de esgotado o prazo a que se refere o n.º 5 do artigo 145.º, apoia-se necessariamente numa dada interpretação desta norma – interpretação que, justamente, é objeto do presente recurso. Ou seja, dá como assente e assume como ponto de partida a dimensão normativa que o recorrente aqui impugna.

Por outro lado, esta solução nem sequer cumpre aquele alegado objetivo. Efetivamente, a emissão da declaração, a título preventivo, não impõe ao Ministério Público uma determinada forma de conduta futura – a menos que se transforme o exercício de uma faculdade no cumprimento de um dever, o que está fora de causa. Apresentada a declaração, permanecem em aberto quaisquer das alternativas possíveis: não interposição de recurso, interposição em prazo, ou interposição dentro dos três dias adicionais. 

Esta interpretação só proporciona uma certeza ao arguido na hipótese inversa, a de não apresentação da declaração antes de findo o prazo legal. Nessa circunstância, será para ele seguro que a sentença transitou em julgado, pois, nesta interpretação, está precludido o exercício do direito ao recurso, por parte do Ministério Público.

Mas, quanto a esta consequência vantajosa, não se vê porque é que os demais sujeitos processuais hão de beneficiar de uma tutela de expectativas de que o Ministério Público não goza. Na verdade, como esses sujeitos não têm que cumprir qualquer ónus, em prazo, extinto este, o Ministério Público permanece na incerteza quanto à interposição ou não de recurso. Essa incerteza só se desfaz com o decurso do prazo previsto no artigo 145.º, n.º 5, do CPC.

Disfuncional e inadequada, a imposição, ao Ministério Público, do ónus de ‘avisar’, em prazo, da interposição de recurso nos três dias úteis subsequentes ao termo desse prazo é ainda geradora de um injustificado desequilíbrio de posições processuais. Apresentada como ‘uma alternativa possível a um pagamento de multas’ (Acórdão n.º 355/2001) – e sem que se problematize aqui, por estar fora do objeto do presente recurso, a justificação dessa ‘alternativa’ –, legitimada como um equivalente, ‘no plano simbólico’, desse pagamento, natural será que o cumprimento desse ónus acompanhe temporalmente a interposição do recurso fora do prazo – o ato que, para os restantes sujeitos processuais, obriga ao pagamento de multa.

A não ser assim, uma interpretação normativa concebida e justificada como meio de evitar “um favorecimento desmedido relativamente aos demais sujeitos processuais”, de que beneficiaria o Ministério Público, pelo facto de não estar sujeito ao pagamento de multa, passará a gerar a situação inversa, de tratamento desfavorável daquele órgão.

Na verdade, a faculdade concedida no artigo 145.º, n.º 5, do CPC, tem como previsão a omissão da prática do ato no prazo legal. Nessa eventualidade, o sujeito processual interessado pode ainda praticá-lo, ficando a sua validade dependente do pagamento de multa, “até ao termo do primeiro dia útil posterior ao da sua prática”. Este pagamento pode, aliás, ser dispensado, nos termos do n.º 7 da referida norma.

Não sendo esse sujeito o Ministério Público, em qualquer circunstância, mesmo que não haja lugar ao pagamento de multa, a validade do ato não fica dependente de qualquer conduta processual anterior à sua prática. Extinto o prazo, o sujeito pode sempre aproveitar do benefício, de acordo com uma ponderação atualizada do seu interesse. Só posteriormente à prática do ato tem que desenvolver uma outra atividade: o pagamento da multa, para o qual é, aliás, notificado, se não o fizer atempadamente (n.º 6).

Se esse sujeito for o Ministério Público, na interpretação normativa defendida na decisão recorrida, altera-se o pressuposto aplicativo do artigo 145.º, n.º 5: já não é uma conduta puramente omissiva, mas a apresentação de uma declaração comunicando a intenção de utilizar o prazo suplementar. Nessa medida, e contrariamente aos restantes sujeitos processuais, o Ministério Público fica vinculado rigidamente a prazo – não para a prática do ato, mas para manifestação da vontade de o vir a realizar.

Pode dizer-se, assim, que, mais do que uma alternativa ao pagamento de multa, a declaração se configura, nesta interpretação, como uma alternativa à tempestividade da prática do ato. Por isso é que, sendo, prima facie, uma exigência de caráter procedimental, de escasso significado, a antecipação temporal do cumprimento desse ónus acaba por subverter, não só a funcionalidade do artigo 145.º, n.º 5, como, em detrimento do Ministério Público, o equilíbrio de posições […].

A vinculação a uma conduta ativa substitutiva da prática do ato em prazo, como condição do seu ulterior exercício no prazo constante do n.º 5 do artigo 145.º, dá a esta norma uma dimensão consagradora de um critério restritivo, de aplicação unilateral ao Ministério Público, inibitório do desempenho pleno das funções que lhe estão constitucionalmente atribuídas.

[…]” (sublinhados acrescentados).

 

Os fundamentos do Acórdão n.º 538/2007 não são inteiramente transponíveis para a hipótese dos presentes autos, em que não está em causa o exercício das funções do Ministério Público, mas, num certo sentido, a norma sub judice fica sujeita a exigências acrescidas, visto que, tratando-se de ato a praticar pelo arguido, o padrão da necessidade de defesa é o que decorre do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição. Este preceito “[…] serve […] de cláusula geral englobadora de todas as garantias que, embora não explicitadas nos números seguintes, hajam de decorrer do princípio da proteção global e completa dos direitos de defesa do arguido em processo criminal. [Na expressão «todas as garantias de defesa» estão englobados] indubitavelmente todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação. Dada a radical desigualdade material de partida entre a acusação (normalmente apoiada no poder institucional do Estado) e a defesa, só a compensação desta, mediante específicas garantias, pode atenuar essa desigualdade de armas. Este preceito pode, portanto, ser fonte autónoma de garantias de defesa. Em suma, a «orientação para a defesa» do processo penal revela que ele não pode ser neutro em relação aos direitos fundamentais (um processo em si, alheio aos direitos do arguido), antes tem neles um limite infrangível” (J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, 4.ª ed., Coimbra, 2014, p. 516).  Trata-se, pois, de “[…] todos os meios que em concreto se mostrem necessários para que o arguido se faça ouvir pelo juiz sobre as provas e razões que apresenta em ordem a defender-se da acusação que lhe é movida”, sendo o preceito interpretado “à luz do denominado processo equitativo” [Germano Marques da Silva e Henrique Salinas, em anotação ao artigo 32.º da Constituição, in Jorge Miranda e Rui Medeiros (org.), Constituição Portuguesa anotada, vol. I, Lisboa, 2.ª edição revista, Universidade Católica, 2017, p. 515]. Na síntese do Acórdão n.º 109/99:

 

“[…]

Este Tribunal tem sublinhado, em múltiplas ocasiões, que o processo penal de um Estado de Direito tem que ser um processo equitativo e leal (a due process of law, a fair process, a fair trial), no qual o Estado, quando faz valer o seu ius puniendi, atue com respeito pela pessoa do arguido (maxime, do seu direito de defesa), de molde, designadamente, a evitarem-se condenações injustas. A absolvição de um criminoso é preferível à condenação de um inocente. Tal como se escreveu no Acórdão n.º 434/87 (publicado no Diário da República, II série, de 23 de janeiro de 1988), o processo penal, para além de assegurar ao Estado ‘a possibilidade de realizar o seu ius puniendi’, tem que oferecer aos cidadãos ‘as garantias necessárias para os proteger contra abusos que possam cometer-se no exercício desse poder punitivo, designadamente contra a possibilidade de uma sentença injusta’.

O processo penal, para – como hoje exige, expressis verbis, a Constituição (cf. artigo 20.º, n.º 4) – ser um processo equitativo, tem que assegurar todas as garantias de defesa, incluindo o recurso (cf. o artigo 32.º, n.º 1, da Lei Fundamental).

No Acórdão n.º 61/88 (publicado no Diário da República, II série, de 20 de agosto de 1988) – depois de se acentuar que, no artigo 32º, n.º 1, da Constituição, ‘se proclama o próprio princípio da defesa’ e, portanto, apela-se, inevitavelmente, para ‘um núcleo essencial deste’ – escreveu-se, na verdade, o seguinte: ‘A ideia geral que pode formular-se a este respeito – a ideia geral, em suma, por onde terão de aferir-se outras possíveis concretizações (judiciais) do princípio da defesa, para além das consignadas no n.º 2 do artigo 32.º – será a de que o processo criminal há de configurar-se como um due process of law, devendo considerar-se ilegítimas, por consequência, quer eventuais normas processuais, quer procedimentos aplicativos delas, que impliquem um encurtamento inadmissível das possibilidades de defesa do arguido.’ (Cf. também o Acórdão n.º 207/88, publicado no Diário da República, II série, de 3 de janeiro de 1989).

Assim, pois, como se sublinhou no Acórdão n.º 135/88 (publicado no Diário da República, II série, de 8 de setembro de 1988), se o processo deixa de ser um due process of law, um fair process, viola-se o princípio das garantias de defesa. O princípio das garantias de defesa é violado toda a vez que ao arguido se não assegura, de modo efetivo, a possibilidade de organizar a sua defesa. Dizendo de outro modo: sempre que se lhe não dá oportunidade de apresentar as suas próprias razões e de valorar a sua conduta (cf. os Acórdãos nºs 315/85 e 337/86, publicados no Diário da República, II série, de 12 de abril de 1986, e I série, de 30 de dezembro de 1986, respetivamente).

[…]” (sublinhado acrescentado).

 

2.4.2. À luz destes critérios, a norma sub judice é – desde já se adianta – ostensivamente incompatível com a lei fundamental.

É-o, desde logo, por razões que foram já afirmadas no Acórdão n.º 538/2007 (a fonte dos excertos citados neste parágrafo) e que mantêm validade na hipótese em apreço: a imposição do ónus “[…] deixa a descoberto muitas das situações em que se deixou extinguir o prazo legal, mas sem intenção ou consciência disso, ou como resultado de circunstâncias imprevistas, e não por força de uma estratégia deliberada de alargamento do prazo disponível […]”, situações que lei expressa pretendeu tutelar sem ressalva, e “[…] não se mostra adequada à prossecução de qualquer fim processual materialmente relevante” (sendo certo que, na decisão recorrida, não se justificou a respetiva imposição à luz de qualquer concreto interesse do processo em causa, apenas se apresentando como regra geral, para todo e qualquer caso). Para além de se apresentar “disfuncional e desadequada”, esta solução é inevitavelmente “geradora de um injustificado desequilíbrio de posições processuais” – pois que, se sobre o Ministério Público não pode impender igual ónus (foi o que se concluiu no Acórdão n.º 538/2007), então impô-lo ao arguido coloca este numa posição em que “contrariamente aos restantes sujeitos processuais, […] fica vinculado rigidamente a prazo – não para a prática do ato, mas para manifestação da vontade de o vir a realizar”.

Para além destas razões – só por si suficientes para fundar um juízo de censura jurídico-constitucional –, a imposição do ónus de prévia comunicação, que não encontra respaldo direto ou indireto no texto da lei, de modo a permitir um mínimo de previsibilidade para o arguido, nem corresponde à prática judiciária, é gravemente violadora da confiança na possibilidade de prática do ato processual. Deste modo, o arguido pode ser surpreendido – injustamente surpreendido – com a supressão de importantes faculdades processuais, com as quais podia razoavelmente contar, de que o caso dos autos é exemplo paradigmático, ao suprimir o exercício do contraditório em momento processual em que este está expressamente previsto na lei.

Um processo assim configurado é arbitrário – não é justo, nem é equilibrado, traduzindo o já apontado “encurtamento inadmissível das possibilidades de defesa do arguido” (Acórdão n.º 109/99, atrás citado). Vale o mesmo por dizer que a norma que resulta da conjugação dos artigos 107.º, n.º 5, do Código de Processo Penal e 139.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, interpretados no sentido de que o exercício, pelo arguido, da faculdade de praticar o ato processual dentro dos três primeiros dias úteis subsequentes ao termo do prazo deve ser precedido de declaração a manifestar essa intenção, para além do pagamento da multa devida é violadora da garantia prevista no artigo 32.º, n.º 1, da CRP.

Esta conclusão faz precludir a utilidade do confronto da interpretação questionada com os demais parâmetros invocados pelo arguido – artigos 18.º, n.os 1 e 2, 20.º, n.os 1 e 4, e 219.º, n.º 1 –, que, na economia dos seus argumentos, se apresentavam com caráter necessariamente subsidiário ou não autónomo, relativamente à regra geral das garantias de defesa em processo penal.

O recurso é, pois, procedente, determinando-se a remessa dos autos ao Tribunal da Relação de Évora, a fim de que este reforme a decisão em conformidade com a presente decisão sobre a questão de inconstitucionalidade (artigo 80.º, n.º 2, da LTC).

 

III – Decisão

 

3. Em face do exposto, decide-se:

a) julgar inconstitucional a norma que resulta da conjugação dos artigos 107.º, n.º 5, do Código de Processo Penal e 139.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, interpretados no sentido de que o exercício, pelo arguido, da faculdade de praticar o ato processual dentro dos três primeiros dias úteis subsequentes ao termo do prazo deve ser precedido de declaração a manifestar essa intenção, para além do pagamento da multa devida; e, consequentemente,

b) julgar procedente o recurso, determinando a remessa dos autos ao Tribunal da Relação de Évora, a fim de que este reforme a decisão em conformidade com o presente juízo sobre a questão de inconstitucionalidade.

 

3.1. Sem custas.

 

Após trânsito em julgado, antes de remeter o processo ao tribunal recorrido, dê-se conhecimento do presente acórdão ao tribunal de primeira instância, com nota do trânsito.

 

Lisboa, 8 de julho de 2021 - José Teles Pereira - Pedro Machete - Maria de Fátima Mata-Mouros - José João Abrantes - João Pedro Caupers

 




 


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