Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
1. A FAZENDA PÚBLICA recorre da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela que julgou procedente a impugnação judicial que A…. deduziu contra o acto de liquidação adicional de IRS referente ao ano de 2003 e respectivos juros compensatórios.
1.1. Terminou a alegação de recurso com as seguintes conclusões:
1. A douta sentença recorrida decidiu julgar totalmente procedente a impugnação judicial deduzida contra a liquidação de IRS do ano de 2003, por considerar que esta enferma de absoluta falta de fundamentação, impeditiva do conhecimento dos fundamentos do acto.
2. Na perspectiva da Recorrente, o citado aresto incorreu em erro de julgamento em matéria de direito, porquanto fez uma errada subsunção aos factos dos requisitos legais a que a fundamentação por remissão, ou per relationem, deve obedecer.
3. A consagração da possibilidade de fundamentação dos actos administrativos, por remissão para o teor de outro (s) documento (s) tem por referencial a norma do artigo 268º da Constituição da República Portuguesa, que se concretiza, no plano ordinário, no artigo 77º da Lei Geral Tributária e artigo 125º do Código de Procedimento Administrativo.
4. Tal como se deixou sumariado no acórdão do S.T.A., de 10 de fevereiro de 2010, processo nº 01122/09, “a fundamentação do acto administrativo é um conceito relativo que varia conforme o tipo de acto e as circunstâncias do caso concreto, mas só é suficiente quando permite a um destinatário normal aperceber-se do itinerário cognoscitivo e valorativo seguido pelo autor do acto para proferir a decisão, isto é; quando aquele possa conhecer as razões por que o autor do acto decidiu como decidiu e não de forma diferente, de forma a poder desencadear dos mecanismos administrativos ou contenciosos de impugnação”.
5. A fundamentação por referência consiste na remissão para os termos de uma informação, parecer ou proposta que contenha, ela mesma, a motivação do acto, de tal modo que essa remissão deve ser motivação ou fundamentação que assim dele ficará a fazer parte integrante.
6. Da compulsa aos termos do relatório de inspecção tributária decorre, para o destinatário normal, que a fundamentação das correcções à matéria colectável ali sumariadas é a constante do relatório de peritagem a que o relatório de inspecção tributária faz menção expressa.
7. Fundamentação que se estribou na enunciação de profusa factualidade demonstrativa de que a contabilidade do Impugnante evidenciava omissões de proveitos provenientes da actividade desenvolvida naquele entreposto, em avultados montantes relativos - quantificados globalmente em € 1.280,654,10 (cf. ponto 2 do capítulo III do RIT) - e concretizadas em operações tributáveis não contabilizadas e/ou não declaradas quer à AT quer a outros organismos públicos e privados.
8. O relatório de inspecção tributária deu a conhecer ao sujeito passivo, mediante remissão para o teor do relatório de peritagem, o itinerário cognoscitivo e valorativo que levou a Autoridade Tributária e Aduaneira a efectuar as correcções à matéria tributável declarada pelo Impugnante, observando, desse modo, as exigências imanentes ao dever de fundamentação constantes do artigo 125º do Código de Procedimento Administrativo e na parte final do nº 1 do artigo 77ºda Lei Geral Tributária.
9. Prova de que o Impugnante apreendeu com suficiente clareza o cerne das razões, de facto e de direito, que determinaram a prática das liquidações impugnadas, são, nomeadamente, os considerandos vertidos nos artigos 58º a 64º da douta petição inicial, nos quais identifica correctamente a factualidade legitimadora das correcções efectuadas pelos serviços de inspecção de tributária.
10. Ao anular as liquidações impugnadas com fundamento em vício - falta absoluta de fundamentação das liquidações impugnadas - que se entende por não verificado, incorreu a meritíssima juiz a quo em erro de julgamento em matéria de direito, razão pela qual a douta sentença recorrida não se deverá manter na ordem jurídica.
11. Destarte, nos presentes termos e nos demais de direito que serão por Vossas Excelências doutamente supridos, deve ao presente recurso ser concedido integral provimento, com as legais consequências, assim se fazendo Justiça.
1.2. O Recorrido não apresentou contra – alegações.
1.3. O Exmo. Procurador – Geral – Adjunto junto deste Tribunal emitiu douto parecer no sentido de que devia ser concedido provimento ao recurso por não ocorrer o vício de falta de fundamentação, porquanto, em suma, «a fundamentação produzida, embora parca, é perfeitamente esclarecedora da razão de ser da liquidação impugnada, não tendo impedido o impugnante, ora recorrido, de reagir contenciosamente contra esse acto e de questionar, designadamente, a ilegalidade do método de avaliação utilizado pela AT e a quantificação da matéria tributável.».
1.4. Colhidos os vistos dos Exmºs Juízes Conselheiros Adjuntos, cumpre decidir.
2. Na sentença recorrida deu-se por assente a seguinte factualidade:
A. Em 23.01.2005 foi emitida a liquidação de IRS com o nº 20055000035446, relativa ao exercício de 2003, no montante de € 1.182,00 – cfr. fls. 282 e ss. do processo físico.
B. Em 07.02.2005 a liquidação referida foi enviada ao impugnante – cfr. fls. 282 e ss. do processo físico.
C. Com data de 30.03.2007 foi elaborado “Relatório de inspecção tributária” por referência ao impugnante, com o seguinte teor – cfr. fls. 38 e ss. do processo físico:
«(…) Ordem de serviço nº 01200700042
(…)
Mapa resumo das correcções resultantes da acção inspectiva
Método de determinação da matéria tributável
Natureza do imposto
Ano/Exercício 2003
De natureza meramente aritmética resultante de imposição legal.
Correcções à matéria tributável
IRS
1.280.654,10
No dia 26 de Janeiro do corrente ano, os Serviços do Ministério Público dos Juízos Criminais do Tribunal de Instrução Criminal e DIAP do Porto remeteram a esta Direcção de Finanças certidão extraída do Inquérito nº 25/04.7 TELSB.OB a fim de se proceder à cobrança dos impostos devidos pelo contribuinte ao Estado, mencionados no Relatório de Peritagem, que se anexa – Anexo I – 103 fls.
Os montantes de correcções em sede de IRS e IVA, que constam dos pontos 7.3.9 e 9.5 do referido Relatório de Peritagem, são os seguintes:
IVA – Imposto sobre Valor Acrescentado
a) Vendas omitidas (conforme mapas de apuramento – Anexo 10 do Relatório de Peritagem)
Base Tributável
Imposto em falta
Taxa intermédia (12%)
213.718,50 €
25.618,22 €
Taxa normal (19%)
1.066.935,60 €
202.717,78 €
Totais
1.280.654,10 €
228.364,00 €
b) Imposto apurado sobre o IABA
Foi apurado imposto à taxa normal de 19% no montante de 117.352,17 €, calculado sobre o total do IABA (618.695,64 €) cobrado pelas litragens de vinho moscatel/licoroso, generoso e aguardentes, indicados nos pontos 9.2, 9.3, 9.4, e 9.5 do relatório de Peritagem.
c) Total do IVA em falta
Vendas Omitidas + IVA apurado sobre IABA
228.364,00 € +117.552,17 € = 345.916,17 €
A exigência do imposto reporta-se ao mês de Fevereiro, altura em que foi efectuada a acção de varejo ao contribuinte.
d) Total do IVA em falta
Vendas Omitidas + IVA apurado sobre IABA
228.364,00 € +117.552,17 € = 345.916,17 €
A exigência do imposto reporta-se ao mês de Fevereiro, altura em que foi efectuada a acção de varejo ao contribuinte.».
D. Em 03.05.2007 foram emitidas as liquidações adicionais de IRS e juros compensatórios com os nºs 20075000055425, 200700000055781 e 2007 00000055782 relativas ao exercício de 2003, nos montantes de € 404.050,25, € 47.157,64 e € 119,81, respectivamente – cfr. fls. 282 e ss. do processo físico.
E. Em 17.05.2007 as liquidações referidas foram enviadas ao impugnante – cfr. fls. 282 e ss. do processo físico.
F. Em 17.10.2007 deu entrada neste Tribunal a petição de impugnação que deu origem aos presentes autos – cfr. fls. 19 do processo físico.
3. Como se viu, a presente impugnação judicial foi deduzida contra o acto de liquidação adicional de IRS referente ao ano de 2003 e respectivos juros compensatórios, sendo que nela o impugnante invocara, com vista a obter a anulação desse acto tributário, os seguintes fundamentos:
· falta de fundamentação do acto de liquidação, por o relatório de inspecção se limitar a remeter para o relatório de inquérito - crime, omitindo a base fundamentadora do acto tributário de liquidação isto é, as concretas razões factuais e jurídicas que estão na origem desta liquidação adicional e do modo como foi apurada a quantia a pagar.
· ilegalidade do recurso à avaliação indirecta da matéria colectável;
· caducidade do direito à liquidação.
A sentença recorrida, depois de dar por inverificada a caducidade do direito à liquidação, julgou procedente a impugnação por falta de fundamentação do acto de liquidação, enunciando, para o efeito, a seguinte argumentação:
«Está em causa a fundamentação em sentido formal. E a fundamentação da liquidação de IRS em causa deveria constar do relatório de inspecção. Acontece que, atento o teor do mesmo, dele não se consegue retirar a fundamentação jurídica e factual da liquidação. Na verdade, aí apenas se refere que os Serviços do Ministério Público dos Juízos Criminais do Tribunal de Instrução Criminal e DIAP do Porto remeteram à Direcção de Finanças de Vila Real certidão extraída do inquérito a fim de se proceder à cobrança dos impostos devidos pelo contribuinte ao Estado mencionados no relatório de peritagem que se anexa ao relatório de inspecção.
É certo que a lei permite a fundamentação por remissão, designadamente através de declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, incluindo as que integrem o relatório de fiscalização tributária (nº 1 do artigo 77º da LGT). Mas essa remição deve ser expressa e notificada de forma explícita ao contribuinte para que este conheça as razões de facto e de direito que determinaram aquele acto além de que deve conter um mínimo de fundamentação que é imprescindível.
Ora, no caso em apreço, nem sequer se apresentam as normas legais fundamentadoras da tributação nem se explica minimamente quais os factos tributários em causa, não se afirmando sequer qualquer concordância com o relatório de peritagem para o qual se remete.
Pelo exposto, conclui-se que o relatório de inspecção que está na base da liquidação impugnada não contém uma fundamentação minimamente sólida de modo a permitir descortinar as razões que levaram a Administração Tributária a fazer a correcção em causa, circunstância essa que, além do mais, impede o conhecimento do vício de fundo de ilegalidade imputável ao acto impugnado, pois que não se dá minimamente a perceber qual a base legal e factual que terá levado à liquidação do imposto nem sequer sobre o método de determinação da matéria colectável, não obstante o mapa de correcções constante do relatório de inspecção se referir a correcções de natureza meramente aritmética.
É certo que o impugnante acabou por impugnar o acto, mas tal não significa que o tenha compreendido. Efectivamente, da sua alegação decorre que a mesma apenas supõe que a liquidação tenha tido origem naquela anomalia. Mas sem certezas. Aliás, a mera análise do teor da liquidação impugnada e dos documentos juntos aos autos – incluindo o PA – não são adequados a concluir com certezas sobre as razões que terão estado na origem da liquidação de IRS e, muito menos, sobre o modo como foi apurada a quantia a pagar.
Pelo exposto, é manifesto que a liquidação de IRS enferma de absoluta falta de fundamentação, impeditiva de conhecer os fundamentos do acto e, desse modo, obstando à apreciação dos vícios que afectam a sua substância, como é o caso do erro nos pressupostos de facto, pelo que fica prejudicado o conhecimento do vício relacionado com o método de determinação da matéria tributável.
Assim sendo, a falta de fundamentação de que padece a liquidação de IRS implica a respectiva anulação.».
Insurge-se a Fazenda Pública, ora Recorrente, contra o assim decidido, defendendo que o acto tributário se acha fundamentado de acordo com as exigências contidas nos arts. 125º do CPA e 77º da LGT, porquanto o relatório da inspecção tributária, ao remeter para o relatório de peritagem realizado no âmbito do inquérito crime, deu a conhecer ao sujeito passivo o itinerário cognoscitivo e valorativo que determinou as correcções da matéria tributável, viabilizando, desse modo, a sua impugnação contenciosa, motivo por que sustenta que a sentença, desconsiderando essa fundamentação por remissão, incorreu em erro de julgamento quanto aos requisitos legais a que a fundamentação dos actos tributários deve obedecer.
Deste modo, a única questão que cumpre apreciar é a de saber se a sentença incorreu em erro de julgamento na aplicação do direito ao ter julgado que o acto de liquidação não se encontra suficientemente fundamentado, ainda que por remissão.
Vejamos.
Neste recurso não vem posto em causa que a Administração Tributária tinha o dever de fundamentar o acto de liquidação impugnado, em conformidade com o princípio plasmado no art. 268º da CRP e acolhido nos arts. 125º do CPA e 77 º da LGT; nem vem posto em causa que o relatório de inspecção subjacente à liquidação impugnada é, em si, omisso quanto a essa fundamentação, limitando-se a remeter para a fundamentação ínsita em relatório de peritagem elaborado no âmbito de inquérito - crime que correu termos nos Serviços do Ministério Público dos Juízos Criminais do Tribunal de Instrução Criminal do Porto. Como também não se detecta, neste recurso, qualquer controvérsia quanto à admissibilidade legal da fundamentação por remissão.
Pelo que, em última análise, o dissídio diz apenas respeito ao cumprimento, no caso concreto, das referidas normas, maxime da disciplina contida nos nºs 1 e 2 do art. 77º da LGT.
Como se viu, segundo o entendimento vertido na sentença, o relatório de inspecção - que deveria fundamentar o acto de liquidação adicional de IRS referente ao ano de 2003- não explicita nem os factos tributários que lhe estão subjacentes, nem as normas legais em que se funda a tributação, nem a base legal e factual que terá levado a essa liquidação, nem mesmo o método de determinação da matéria colectável ou o modo como foi apurado o montante de IRS a pagar, tornando, de todo, inviável sindicar a legalidade do acto de liquidação impugnado. Além de que, no procedimento que conduziu ao acto de liquidação de IRS realizado pela Administração Tributária, esta nunca manifestou, de forma expressa, uma declaração de concordância com a fundamentação do relatório de peritagem, motivo por que este nunca poderia fundamentar a liquidação impugnada.
Na perspectiva da Recorrente, o acto de liquidação encontra-se fundamentado nos termos constantes de relatório de peritagem, por remissão expressa e clara, motivo por que um destinatário normal teria de concluir que as correcções levadas a cabo e sumariadas no relatório de inspecção se fundamentam na vasta factualidade vertida nesse relatório de peritagem.
O art. 77º da LGT estabelece no seu nº 1 que «A decisão de procedimento é sempre fundamentada por meio de sucinta exposição das razões de facto e de direito que a motivaram, podendo a fundamentação consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, incluindo os que integrem o relatório da fiscalização tributária» e no seu nº 2 estabelece que «A fundamentação dos actos tributários pode ser efectuada de forma sumária, devendo sempre conter as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo».
A fundamentação a que se refere este normativo legal terá, pois, de assentar em razões de facto e de direito que suportem formalmente a decisão administrativa.
E, como é consensual na jurisprudência, as exigências de fundamentação não são rígidas, variando de acordo com o tipo de acto e as circunstâncias concretas em que este foi proferido: o acto estará suficientemente fundamentado quando o administrado, colocado na posição de destinatário normal - o bonus pater familiae de que fala o art. 487º nº 2 do C.Civil – possa ficar a conhecer as razões factuais e jurídicas que estão na sua génese, de modo a permitir-lhe optar, de forma esclarecida, entre a aceitação do acto ou o accionamento dos meios legais de impugnação, e de molde a que, nesta última circunstância, o tribunal possa também exercer o efectivo controle da legalidade do acto, aferindo do seu acerto jurídico em face da sua fundamentação contextual.
Significa isto que a fundamentação, ainda que feita por remissão ou de forma sucinta, não pode deixar de ser clara, congruente e encerrar os aspectos de facto e de direito que permitam conhecer o itinerário cognoscitivo e valorativo prosseguido pela Administração na determinação do acto. E, por isso, a insuficiência, a obscuridade e a contradição da motivação equivalem a falta de fundamentação (art. 125º nº 2 do CPA), por impedirem uma cabal apreensão do iter volitivo e cognoscitivo que determinou a Administração a praticar o acto com o sentido decisório que lhe conferiu.
No que se refere à fundamentação de direito, a jurisprudência deste Tribunal tem decidido que para que a mesma se considere suficiente não é sempre necessária a indicação dos preceitos legais aplicáveis, bastando a referência aos princípios pertinentes, ao regime jurídico ou a um quadro legal bem determinado, devendo considerar-se o acto fundamentado de direito quando ele se insira num quadro jurídico. Como se dá nota no acórdão do Pleno desta Secção de 25/03/93, no proc. nº 27387, o dever de fundamentação fica assegurado sempre que, mau grado a inexistência de referência expressa a qualquer preceito legal ou princípio jurídico, a decisão se situe num determinado e inequívoco quadro legal, perfeitamente cognoscível do ponto de vista de um destinatário normal, concluindo-se, assim, que haverá fundamentação de direito sempre que, face ao texto do acto, forem perfeitamente inteligíveis as razões jurídicas que o determinaram.
Donde decorre que, mesmo perante esta corrente jurisprudencial que sufragamos sem reservas, só em casos muito particulares (como eram, afinal, os analisados nos arestos citados) se pode concluir que um acto se encontra fundamentado de direito apesar de nenhuma referência legal directa existir no texto do acto. E tal só acontece quando, como se explica naquele acórdão de 27/05/2003, se mostrem verificadas duas condições:
«- A primeira é a de que se possa afirmar, inequivocamente, perante os dados objectivos do procedimento, qual foi o quadro jurídico tido em conta pelo acto;
- A segunda é a de que se possa concluir que esse quadro jurídico era perfeitamente conhecido ou cognoscível pelo destinatário, hipotizando-se que o seria por um destinatário normal na posição em concreto em que aquele se encontra.
A segunda condição não funciona sem a primeira, pois esta integra-a. Se não se sabe qual o quadro jurídico efectivamente tido em conta pelo acto, jamais pode ser realizada; e, por isso, é irrelevante que o destinatário possa saber, e até saiba qual, o quadro jurídico que deveria ter sido considerado.».
No caso vertente, a Recorrente limita-se a afirmar que a fundamentação radica na factualidade ínsita no citado relatório de peritagem – e para o qual, segundo ela, o relatório de inspecção tributária remete - factualidade essa que seria «demonstrativa de que a contabilidade do Impugnante evidenciava omissões de proveitos provenientes da actividade desenvolvida naquele entreposto, em avultados montantes relativos - quantificados globalmente em € 1.280,654,10 (cf. ponto 2 do capítulo III do RIT) - e concretizadas em operações tributáveis não contabilizadas e/ou não declaradas quer à AT, quer a outros organismos públicos e privados»,
Ora, atendendo ao teor do relatório de inspecção, maximeo ponto 2. do seu capítulo III invocado pela Recorrente – onde se diz que «Foram omitidos proveitos no montante de 1.280.654,10€, que terão de ser acrescidos ao exercício de 2003, pelas diferenças encontradas e já indicadas no ponto anterior como “base tributável”, que constam dos mapas de apuramento do anexo 10 do Relatório de Peritagem» - e sem curar de saber se esse relatório podia ou não servir de fundamento, por remissão, ao acto de liquidação aqui impugnado - e atendendo ao facto de o relatório de peritagem ter incidido sobre o período temporal compreendido entre Janeiro de 2000 e Fevereiro de 2003, não se descortina a invocação de qualquer facto, norma ou quadro jurídico que possa minimamente explicar em que medida, como e porque é que o referido valor terá de ser acrescido ao rendimento tributável do ano de 2003 e liquidado no IRS de 2003.
E não tendo a Administração Tributária explicado, ainda que minimamente, qual foi o itinerário cognoscitivo e valorativo que determinou a liquidação de IRS a que procedeu, também não cumpriu o objectivo que inere ao dever de fundamentação, primacialmente consignado nos nºs 3 e 4 do art. 268º da CRP. Com efeito, e como de forma impressiva se sintetiza no acórdão proferido pelo STA em 07/01/2009, no proc. nº 871/08, da conjugação dos referidos preceitos legais, resulta que «o direito de impugnação contenciosa de actos lesivos, constitucionalmente reconhecido, não fica satisfeito com a mera possibilidade de os interessados os poderem impugnar judicialmente, antes se exigindo que seja proporcionada àqueles a possibilidade de os impugnarem com completo conhecimento das razões que os motivaram, isto é, trata-se de um direito à impugnação contenciosa com a máxima eficácia.(…) Para ser atingido tal objectivo a fundamentação deve proporcionar ao destinatário do acto a reconstituição do itinerário cognoscitivo e valorativo percorrido pela autoridade que praticou o acto, de forma a poder saber-se claramente as razões por que decidiu da forma que decidiu e não de forma diferente.».
Ora, no caso vertente, resulta manifestamente do teor da petição inicial que o Recorrido não entendeu a ratio decidendi da liquidação em causa, como, de resto, e pelas razões apontadas, a não teria entendido um destinatário normal colocado na sua posição. Conclusão que, ao contrário do que diz a Recorrente, não é de modo nenhum infirmada pelo conteúdo dos arts. 58º a 64º da petição inicial - em que o ora Recorrido alega «ex abundanti e sem conceder», que a sua contabilidade não foi objecto de qualquer análise inspectiva, e que, de todo o modo, careceria da consideração de regras técnicas específicas - ou sequer infirmada por uma alegada obrigação de presumir as razões da Administração Tributária, pois, como se refere no acórdão do STA de 21/11/2012, no proc. nº 736/12, «o argumento do “só podia ser” não colhe, pois a lei constitucional e tributária são expressas quanto ao dever de motivar os actos tributários (…)de forma expressa, que não meramente implícita, presumível ou intrínseca».
Ademais, no caso em apreço, face à abrangência temporal do relatório de peritagem, que encontrou as “diferenças” tidas por base tributável em sede de IRS, e dada a natureza deste imposto, as conclusões poderiam sempre ser múltiplas, pelo que, por maioria de razão se impunha que a Administração Tributária explicasse, de facto e de direito, a motivação que a determinou a proceder à liquidação impugnada, até porque só deste modo o tribunal ficaria habilitado a sindicar a legalidade da tributação.
Ora, não constando essa fundamentação do relatório de inspecção, nem tão pouco do relatório de peritagem – o que torna totalmente inútil apurar se ocorreu ou não fundamentação por remissão nos termos da 2ª parte do nº 1 do art. 77º da LGT - impõe-se concluir que o acto de liquidação impugnado não se encontra suficientemente fundamentado, nem de facto nem de direito.
E, nesta circunstância, não merece censura a sentença recorrida que assim julgou e decidiu anular a liquidação de imposto e de juros impugnada.
4. Termos em que, face ao exposto, acordam os juízes da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em negar provimento ao recurso, mantendo a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 12 de Março de 2014 – Dulce Neto (relatora) – Isabel Marques da Silva – Pedro Delgado.
Fonte: http://www.dgsi.pt