Suzana Fernandes da Costa e Lia Araújo

Publicado: 30 de dezembro de 2024

Reflexão Temática
FISCAL


O SIGILO PROFISSIONAL DO ADVOGADO E O DEVER DE COMUNICAÇÃO DE MECANISMOS TRANSFRONTEIRIÇOS (DAC 6)



O SIGILO PROFISSIONAL DO ADVOGADO E O DEVER DE COMUNICAÇÃO DE MECANISMOS TRANSFRONTEIRIÇOS (DAC 6)

Lia Araújo, Advogada, Docente do Ensino Superior
Suzana Fernandes da Costa, Advogada Especialista em Direito Fiscal, Docente do Ensino Superior

 
    1. Breve aproximação do conceito de segredo profissional que impende sobre o advogado e as condições da sua revelação

     1.1. O segredo profissional do advogado

O exercício da advocacia livre e independente pressupõe a submissão a princípios fundamentais que são estruturantes para o próprio conceito de advocacia. Etimologicamente, advogado é aquele que é chamado e, historicamente, o advogado é aquele que empresta a sua voz na defesa dos fracos e dos oprimidos, dos que não têm voz. Sendo o advogado a pessoa que é chamada a defender e sendo a defesa composta pelo estudo e enquadramento de factos e da sua subsunção jurídica, fácil é perceber que quanto aos factos propriamente ditos serão aqueles que, por força da relação profissional estabelecida e, em concreto, dos serviços que presta, advêm ao conhecimento do advogado.
O ponto fulcral do exercício da advocacia passa pela competência técnica do advogado e pela sua submissão ao segredo, este no sentido básico de factualidade que é conhecida por um círculo restrito de pessoas a ele vinculadas, por um sentido de honra e lealdade ou por sentido de um dever imposto por função/profissão.
No que respeita à relação advogado/cliente tal segredo não se trata, por princípio, de uma informação secreta que o cliente transmite ao advogado na condição de este não a revelar a ninguém, pois o dever que o advogado tem de guardar segredo é anterior ao estabelecimento da relação. É que, o segredo a que o advogado está sujeito já existe antes de o cliente entrar no escritório. Trata-se, em bom rigor, daquilo a que os moralistas chamam de secretum commissum, aquele em que a pessoa que o recebe se obriga, antes mesmo de o receber, a não revelar o facto que lhe vai ser dado a conhecer. Esse é o segredo profissional do advogado[1].
E bem se compreende a natureza do segredo profissional do advogado porquanto o que está em causa na prestação dos seus serviços contende com a esfera social do cliente, mas, também, com a esfera privada e, mesmo, com a esfera íntima. Nesse sentido, quando estabelece a relação com o advogado, o cliente sabe que aquele é um reduto do segredo e, como tal, está livre para revelar toda a factualidade que lhe respeita, mesmo aquela que moralmente o envergonha ou que juridicamente o prejudique.
E essa revelação não é, maioritariamente, uma escolha do cliente, mas uma necessidade para que o advogado possa ter plena percepção do assunto que lhe está confiado e, consequentemente, fazer a defesa dos interesses que acolhe.
Daqui resulta que para levar a cabo a sua função, que é essencial na boa administração da justiça num estado de direito (pois sem advogados não há justiça), o advogado precisa da liberdade que o segredo profissional lhe confere, liberdade responsável e comprometida com a garantia prévia de que o cidadão goza, a de que o que disser ao advogado está circunscrito ao advogado[2].
Outrossim, toda a factualidade que advenha ao conhecimento do advogado em virtude do exercício das suas funções é, genericamente, considerada sujeita a segredo profissional, porquanto só chegou ao seu conhecimento por força da relação estabelecida com o cliente.
O segredo profissional é, assim, condição do exercício da advocacia livre e garante de um estado de direito, porque se a advocacia não for livre não há justiça.
É neste sentido que o legislador português concebe o segredo profissional e o estabelece a título principal no artigo 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA), aprovado pela Lei n.º 145/2015, de 09 de setembro. Ali, está previsto que o advogado é obrigado a guardar segredo no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente, a factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste.
Já o primeiro Estatuto da Ordem dos Advogados[3] estabelecia o segredo profissional como uma condição do exercício da advocacia, sendo que antes deste o Estatuto Judiciário de 1927[4] dava acolhimento relevante ao segredo profissional do advogado, desde logo proibindo a revelação de negociações malogradas e o testemunho contra o cliente. Se recuarmos ao Código de Seabra, encontramos a sanção de inibição de advogar em juízo para sempre, para o advogado que revelasse o segredo[5]. E, antes deste, as Ordenações Filipinas previam o degredo e a proibição de exercício do ofício, em caso de revelação do segredo.
A leitura atenta de tais diplomas dá a conhecer a importância jurídica e social do segredo profissional e permite compreender como o legislador dos nossos dias continua a dar prevalência ao segredo profissional.

1.2. Condições da revelação e quebra do segredo profissional

A descrita concepção legal do segredo é demonstrativa da importância primordial que este tem no exercício da função do advogado. Não se trata, porém, de um valor absoluto já que, nos termos do número 4 do citado artigo 92.º do EOA, o advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo. A Ordem dos Advogados regulamentou o procedimento do levantamento do segredo profissional, através do Regulamento de Dispensa do Segredo Profissional[6] (RDSP), estabelecendo, além do mais, pressupostos de ordem substancial que densificam o conceito de absoluta necessidade. Nesse sentido, a divulgação do facto sigiloso tem de ser determinante ao ponto de sem ele a parte interessada na sua divulgação poder ver a sua posição claudicar (essencialidade); o meio de prova sujeito a segredo deverá ser indispensável face ao objetivo de prova que a parte se propõe (imprescindibilidade); deverá inexistir outro meio de prova além daquele que está sujeito a sigilo (exclusividade) e deverá verificar-se uma necessidade que existe no momento em que o pedido é apreciado e decidido e não apenas uma necessidade meramente hipotética (atualidade).
A lei prevê, ainda, uma outra possibilidade de revelação do segredo profissional, desta feita através do incidente de quebra do segredo[7]. Tal como previsto no artigo 135.º, n.º 1 e n.º 2 do Código do Processo Penal (CPP) se o advogado se escusar a revelar o segredo profissional e havendo dúvidas quanto à legitimidade de tal escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Nessas averiguações inclui-se a audição da Ordem dos Advogados, para que se pronuncie quanto à legitimidade/ilegitimidade da escusa. Verificando que os factos de que o advogado tem conhecimento estão sujeitos a segredo profissional e ainda que considere legitima a escusa, o tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante. Neste caso a decisão do tribunal é antecedida de nova consulta à Ordem dos Advogados, desta vez para que este organismo representativo da profissão emita parecer sobre o interesse preponderante, nos termos do disposto nos números 3 e 4 do citado normativo[8].
Esta possibilidade de revelação do segredo profissional não é exclusiva do processo penal já que no processo civil o disposto no artigo 417.º n.º 3, al. c) e n.º 4 do Código de Processo Civil (CPC) remete para o incidente de quebra do segredo profissional da previsão do artigo 135.º do CPP.
Nesta segunda hipótese de revelação do segredo profissional, não é o advogado, por sua iniciativa, a dirigir um requerimento para levantamento do segredo profissional ao presidente do conselho regional respetivo. Aqui há um advogado que entende que os factos de que tem conhecimento estão sujeitos a segredo e não requer o levantamento do segredo profissional (o que é sua prerrogativa). Por isso é a parte a quem interessa a revelação do segredo, ou o próprio tribunal, quem promove o incidente de quebra que tem a tramitação acima descrita.
Do exposto resulta que a essencialidade do segredo profissional é de tal ordem que apenas nas duas situações indicadas é possível a revelação do mesmo, sendo certo que, no caso de o advogado revelar factos sujeitos a segredo sem estar autorizado ou sem que lhe tenha sido ordenado (no âmbito do incidente de quebra), incorre em responsabilidade disciplinar[9]. Acresce que, nos termos do disposto no citado artigo 92.º, n.º 5 do EOA, os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo, pois tratar-se-á de prova ilícita porque violadora de normas de direito material.

1.3. O segredo profissional do advogado no âmbito tributário

O segredo profissional do advogado e as condições do seu levantamento também estão salvaguardadas no âmbito tributário. O segredo profissional de advogados, solicitadores, contabilistas certificados, revisores oficiais de contas e outros profissionais que atuam no âmbito tributário, constitui um limite ao dever de colaboração previsto na Lei Geral Tributária (LGT). No que respeita ao procedimento de inspeção, no seu artigo 63.º a LGT, resolve o problema do conflito entre o dever de colaboração e o dever de sigilo de uma forma muito clara: num primeiro momento prevalece o dever de sigilo, e o profissional deve invocá-lo para que sejam postos em marcha os mecanismos legais que permitem o seu levantamento.  E o direito a invocar o sigilo profissional pode ser exercido não só perante a Inspeção Tributária, mas também perante os tribunais. Relativamente ao procedimento de inspeção, segundo o artigo 63.º, n.º 2 da LGT, o acesso à informação protegida pelo sigilo profissional depende de autorização judicial, nos termos da legislação aplicável[10].                  
Todavia, o segredo profissional no âmbito tributário tem sido alvo de novas restrições legais nos últimos anos, desde logo por força da aplicação de legislação europeia relativa a branqueamento de capitais e combate ao terrorismo. Mais recentemente, a transposição da Diretiva DAC6 em toda a União Europeia levou aos primeiros conflitos entre as associações profissionais representativas de certas classes – como a dos advogados – com as autoridades fiscais, e os tribunais já foram chamados a dirimir as primeiras questões relacionadas com sigilo profissional e dever de comunicação de mecanismos transfronteiriços, tema que abordaremos em seguida.

2. A DAC 6 e o confronto entre colaboração e segredo profissional

2.1. A diretiva DAC6 (Diretiva (UE) 2018/822 do Conselho de 25 de maio de 2018 e sua transposição para a ordem jurídica portuguesa

A diretiva DAC6 (Diretiva (UE) 2018/822 do Conselho de 25 de maio de 2018[11] veio criar novos deveres de comunicação aos profissionais quando existem determinados mecanismos fiscais transfronteiriços.
Esta diretiva foi transposta para a ordem jurídica nacional pela Lei n.º 26/2020, de 21 de julho, que estabelece a obrigação de comunicação à Autoridade Tributária (AT) de determinados mecanismos internos ou transfronteiriços com relevância fiscal. O diploma vai ao encontro das soluções previstas na DAC6, nomeadamente quanto às obrigações de comunicação do intermediário e quanto à noção de “característica-chave” como forma de delimitar os mecanismos a comunicar à AT.
Nos termos da referida lei, considera-se intermediário “qualquer pessoa que conceba, comercialize, organize ou disponibilize para aplicação ou administre a aplicação de um mecanismo a comunicar, não integrando estas atuações a mera comunicação de informação estritamente descritiva de regimes tributários existentes, incluindo benefícios fiscais, e o aconselhamento estritamente prestado quanto a uma situação tributária já existente do contribuinte relevante, incluindo o exercício do mandato no âmbito do procedimento administrativo tributário, do processo de impugnação tributária, do processo penal tributário ou do processo de contraordenação tributária, incluindo o aconselhamento relativo à condução dos respetivos trâmites”.
A lei portuguesa prevê, no n.º 2 do artigo 10.°, a obrigação dos intermediários de comunicarem à AT todas as informações que sejam do seu conhecimento ou que estejam na sua posse ou sob o seu controlo relativas a qualquer um dos mecanismos previstos no artigo 3.° (mecanismos transfronteiriços) e no artigo 7.° (mecanismos internos), nos casos em que se verifique a obrigação subsidiária de comunicação prevista no n.º 4 do artigo 13.º,  ainda que se verifique o dever legal ou contratual de sigilo por parte dos intermediários.
O legislador nacional impôs também aos intermediários uma obrigação subsidiária de comunicação, aplicável apenas quando estes não forem informados pelo contribuinte sobre o cumprimento do dever de comunicação que recai primariamente sobre ele. Relativamente ao sigilo, o n.º 1 do artigo 14.º da lei nacional estabelece ainda que o cumprimento das obrigações de comunicação dos intermediários e dos contribuintes relevantes prevalece sobre o dever de sigilo a que estejam legal ou contratualmente vinculados, não podendo este ser invocado no âmbito da lei.
Este confronto entre o dever de guardar segredo e o dever de colaborar com a AT, levou a que a Provedora de Justiça pedisse a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das disposições normativas constantes dos artigos 10.°, n.º 2, 13.°, n.º 4 e 14.°, n.º 1, da Lei n.º 26/2020, de 21 de julho.
Antes de analisarmos o Acórdão proferido a esse propósito pelo Tribunal Constitucional, e em jeito de enquadramento, vamos analisar algumas decisões do Tribunal de Justiça da União Europeia sobre a mesma Diretiva.

2.2. Os acórdãos do Tribunal de Justiça da União Europeia sobre  DAC 6 e o sigilo profissional

O Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), no acórdão Ordre van Vlaamse Balies de 2022 (C-694/20), analisou a norma da diretiva DAC6 que prevê que quando há dispensa de comunicação pelo advogado, este deva notificar o próprio contribuinte ou outro intermediário para que sejam estes a cumprir a obrigação de comunicação à administração fiscal (n.º 5 do artigo 8.º-AB).
O tribunal considerou que o artigo 8.º-AB, n.º 5, da Diretiva 2011/16 alterada, viola o direito ao respeito das comunicações entre o advogado e o seu cliente, garantido pelo artigo 7.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, na medida em que prevê que o advogado intermediário, sujeito ao sigilo profissional, esteja obrigado a notificar qualquer outro intermediário que não seja seu cliente das suas obrigações de comunicação.
Já em 29/07/2024, no processo Belgian Association of Tax Lawyers (C-623/22)[12] onde de discutia, a pedido do Tribunal constitucional belga, a compatibilidade do regime de troca automática da informação previsto na Diretiva (EU) 2018/822 do Conselho, de 25 de maio de 2018, com o direito da União Europeia, o TJUE diferenciou o sigilo profissional dos advogados do sigilo aplicável a outras classes profissionais, dizendo claramente que a invalidade do artigo 8.º‑AB, n.º 5, da Diretiva 2011/16, declarada pelo Tribunal de Justiça no Acórdão de 8 de dezembro de 2022, Ordre van Vlaamse Balies e o (C‑694/20), só se aplica às pessoas que exercem as suas atividades profissionais sob um dos títulos profissionais mencionados no artigo 1.º, n.º 2, alínea a), da Diretiva 98/5/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de fevereiro de 1998.
Recentemente, no processo Ordre des avocats du barreau de Luxembourg contre Administration des contributions directes, C-432/23, com decisão em 26/09/2024[13], discutia-se em que condições uma autoridade tributária poderia pedir informações a um advogado no contexto de troca de informações fiscais. No caso em apreço, Espanha pediu informações ao Luxemburgo relativas a uma empresa espanhola, e a Autoridade Tributária  do Luxemburgo reenviou o pedido a uma sociedade de advogados luxemburguesa solicitando “toda a documentação disponível do período em questão” – incluindo procuração, contratos com o cliente, relatórios, memoranduns, comunicações, faturas, etc. relativas aos serviços prestados por aquela firma ao cliente espanhol, bem como uma descrição detalhada da forma como certas operações foram conduzidas, bem como o envolvimento da sociedade de advogados nesses procedimentos e a identificação dos interlocutores. A sociedade de advogados recusou prestar a referia informação invocando sigilo profissional e foi objeto de uma coima.                                                                                                                                     
Este acórdão veio estabelecer que a comunicação entre advogados e clientes, incluindo a consulta jurídica em matéria de direito societário, está protegida pelo artigo 7.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Uma decisão que ordene a um advogado que este entregue à Administração do Estado-Membro requerido (para efeitos de uma troca de informações a pedido prevista pela Diretiva 2011/16/UE do Conselho, de 15 de fevereiro de 2011, sobre cooperação administrativa no domínio da tributação) toda a documentação e informação relativas às suas relações com um cliente,  constitui uma interferência com o direito ao respeito pelas comunicações entre um advogado e o seu cliente, garantido pelo referido artigo.
O que notoriamente é comum aos três processos referenciados é a interpretação feita pelo TJUE segundo a qual os deveres de comunicação previstos na DAC6 podem não prevalecer quando esteja em causa o sigilo profissional dos advogados. Esta interpretação está em consonância com a importância do segredo profissional, designadamente com os critérios apertados que a lei portuguesa prevê para a revelação e quebra do segredo profissional do advogado.

2.3. O acórdão n.º 548/2024 do Tribunal Constitucional

Como já se referiu anteriormente, o Tribunal Constitucional português, a pedido da Senhora Provedora de Justiça, foi chamado a analisar a compatibilidade entre o sigilo profissional dos advogados e algumas das normas da lei que transpõe a diretiva DAC 6.
No contexto sobredito em que foi chamado a pronunciar-se, o Tribunal Constitucional decidiu não declarar a inconstitucionalidade do n.º 2 do artigo 10.º, do n.º 4 do artigo 13.º e do n.º 1 do artigo 14.º, todos da Lei n.º 26/2020, de 21 de julho. Segundo o TC “as medidas legislativas sindicadas são restritivas de direitos fundamentais, mas de forma não excessivamente intrusiva, revelando-se necessárias para atingir o fim público em questão”. Para o Tribunal “no que respeita, designadamente, ao dever de sigilo que cumpre aos advogados observar (e, também, quanto ao direito à reserva da intimidade da vida privada, com ele interligado nos termos supra descritos) (…)  estamos na periferia da sua atividade, isto é, as normas sindicadas reportam-se a atividades marginais ao exercício da profissão de um advogado, já que não está em causa a defesa do cliente, nem o aconselhamento jurídico, nem tão-pouco o exercício do mandato. Podemos dizer que apenas casualmente os advogados são intermediários: eles não estão a trabalhar como profissionais do foro, nem como especialistas do direito, mas antes como profissionais – que tanto podem ser advogados, economistas, gestores, informáticos, entre muitas outras especialidades – que se ocupam da conceção, comercialização, organização ou disponibilização para aplicação ou, ainda, da administração da aplicação de um determinado mecanismo”.
Segundo o TC: esta circunstância revela-se decisiva para o juízo de proporcionalidade que deve ser emitido: é (também) por não estarmos a tratar de domínios que dizem respeito ao núcleo duro da atividade dos advogados que se deve aceitar a restrição do seu direito-dever ao sigilo, em nome da defesa de um interesse público fundamental, o da luta contra o planeamento fiscal agressivo e as consequências danosas que o mesmo pode trazer para a comunidade, que incumbe ao legislador proteger”.
2.4. Crítica do acórdão n.º 548/2024, de 11 de julho de 2024 do Tribunal Constitucional
Cremos poder dizer que a conclusão do acórdão assenta em dois pressupostos que são suscetíveis de confundir a análise do problema: por um lado, a ideia de que as normas sindicadas se reportam a atividades marginais ao exercício da profissão de um advogado (por não estar em causa o aconselhamento jurídico, nem o exercício do mandato) e, por outro lado, a ideia de que os advogados são intermediários (que não estão a trabalhar como profissionais do foro).                                                                                                                              Quanto ao primeiro pressuposto é de salientar que o advogado está sujeito a segredo profissional relativamente a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções e a lei (artigo 92.º do EOA) não distingue atividades principais ou marginais. Ao considerar “periferia da atividade” o acórdão manifesta desconhecimento do que é a atividade do advogado, dos deveres estatutários a que ele está obrigado e do alcance social da sua função. Se a tomada de conhecimento de factos da vida do cliente se torna necessária à defesa plena dos direitos deste, não é porque alguns factos são laterais ao concreto serviço prestado que perdem a natureza de factos sujeitos a segredo, pois o que releva é a forma como eles advieram ao conhecimento do advogado.                                                                                                                                         Quanto ao segundo pressuposto de raciocínio que o acórdão revela, o de que os advogados não estão a trabalhar como profissionais do foro, mas antes como profissionais, novamente enferma de um erro de perceção. É que o advogado está sujeito a segredo em toda a extensão da sua prestação de serviços, que vai do aconselhamento jurídico no recato do seu escritório, às estratégias de defesa que define com o cliente, aos articulados que concebe, à barra do tribunal, às negociações que enceta com colegas ou diretamente com a parte contrária, ao simples facto de o cliente ter entrado no seu escritório… Em todas estas vertentes da sua atividade profissional ele é sempre um advogado e em todas elas está sujeito a segredo profissional. Melhor dizendo, a atividade do advogado não se cinge ao exercício do mandato forense e em todas as vertentes da sua atividade ele é um especialista do direito, que não pode, nem deve, confundir-se com o múnus de outras profissões.                                                                                                                                                                               A este propósito salienta-se a lição magistral de Orlando Guedes da Costa quando caracteriza a profissão de advogado dizendo que “Nem todas as atividades humanas constituem profissões e nem a todas as profissões se aplicará o seguinte conceito, que engloba muitas delas, designadamente a profissão de Advogado: profissão é uma atividade exercida com base em conhecimentos teóricos, adquiridos através de um método científico e geradora da confiança proporcionada por quem tem autoridade para a exercer, com acesso e exercício regulamentados em função do seu interesse público ou utilidade social e com subordinação a um código deontológico, imposto por uma associação que promove a cultura própria da atividade considerada[14]. É neste contexto que a profissão de advogado deve ser encarada na globalidade da sua atividade e com o desígnio social que lhe está subjacente, ou seja, em todas as suas vertentes sujeita a normas deontológicas das quais se salienta o segredo.                                                                                                           Esta decisão do tribunal Constitucional significa uma restrição histórica ao sigilo profissional dos advogados, dever deontológico máximo da nossa cultura jurídica e pedra basilar da relação entre os advogados e os clientes. 
Como se afirma na declaração de voto (vencido) do Conselheiro Afonso Patrão, que cita a já referida jurisprudência do TJUE,  “em face da proteção constitucional do sigilo profissional do advogado, a sua restrição apenas poderia justificar-se para salvaguardar um direito ou interesse constitucionalmente protegido e em estrita obediência ao princípio da proporcionalidade” o que aqui não ocorrerá.                                                              Como afirma o mesmo Conselheiro, “o sigilo do advogado tem consagração no artigo 208.º da Constituição, tendendo ao valor da confiança na justiça. É o estatuto constitucional do advogado enquanto agente de justiça que justifica o seu dever de segredo profissional e é essa a razão pela qual este não pode ser levantado pelo cliente: não se trata de um direito do cliente, mas de uma garantia ao serviço da justiça; um compromisso para com a sociedade que não está na disponibilidade do advogado ou do cliente”.                                                                                                                                                                                   Nesta declaração de voto, referindo-se ao Acórdão Ordre van Vlaamse Balies de 2022 (C-694/20), do TJUE pode ler-se que se impunha “ao Tribunal Constitucional maximizar o efeito útil do direito da União Europeia, interpretando os parâmetros nacionais em consonância com o critério jusfundamental europeu (Acórdão n.º 268/2022). Ao não o fazer, esta decisão de conformidade constitucional pode vir a ser esvaziada pela impossibilidade de aplicação das normas fiscalizadas aos casos concretos, com fundamento na sua incompatibilidade com regras europeias dotadas de efeito direto (primeira parte do n.º 4 do artigo 8.º da Constituição)”.
No processo discutia-se também a violação do direito à não autoincriminação, tendo o TC considerado que os problemas associados ao privilégio contra a autoincriminação só se colocam no âmbito processual-penal e não no âmbito estritamente fiscal[15].  E do acórdão constam outras declarações de voto, onde se discute de forma acalorada a extensão do segredo profissional e a importância dos deveres de colaboração com a AT decorrentes da DAC6.                                                                                                                                         Do exposto resulta que a recente jurisprudência do TJUE e a posição do nosso Tribunal Constitucional (sem esquecer os votos de vencido) poderão entrar em conflito naquelas situações em que os Advogados sejam interpelados pela Autoridade Tributária a comunicar mecanismos em que participem os seus clientes ou quando sejam objeto de coimas pelo incumprimento dos deveres da DAC 6 – um tema que continuaremos a acompanhar e que merece a reflexão de todos os advogados.



CONCLUSÕES
  1. O segredo profissional é condição do exercício da advocacia livre e garante de um estado de direito porque se a advocacia não for livre não há justiça.
  2. Não se trata, porém, de um valor absoluto já que, no artigo 92.º, n.º 4 do EOA  e no artigo 135.º, n.º 1 e n.º 2 do CPP estão previstas as condições da sua revelação/quebra.
  3. O segredo profissional é uma das causas legítimas de não colaboração com a autoridade tributária nos ternos do artigo 63.º da Lei Geral Tributária.
  4. A Diretiva DAC6 contém normas jurídicas que podem pôr em causa o dever de guardar segredo dos advogados e de outros profissionais.
  5. A recente jurisprudência do TJUE (C-432/23, C-694/20 e C-623/22) reconhece que em certos casos prevalece o dever de sigilo dos advogados sobre o dever de comunicação dos mecanismos transfronteiriços da DAC6.
  6. Em contraciclo, o Tribunal Constitucional português no Acórdão n.º 548/2024, de 11 de julho de 2024, entendeu não declarar a inconstitucionalidade de várias normas previstas da Lei n.º 26/2020, de 21 de julho, que transpôs a DAC6, dando prevalência aos deveres de cooperação dos intermediários relativamente ao dever de sigilo.
  7. Na sua decisão, o Tribunal Constitucional desconsidera as especificidades da advocacia relativamente a outras profissões, designadamente desconsidera a proteção constitucional do segredo profissional do advogado e o papel que este profissional tem na administração da justiça.
  8. A jurisprudência do TJUE e os votos de vencido que o acórdão do Tribunal Constitucional comporta são a evidência de que a abordagem feita por este tribunal parte de pressupostos desajustados ao que é a profissão do advogado e ao que significa o segredo profissional para o estado de direito.
  9. A jurisprudência constitucional exige, por isso, que os advogados reflitam e estejam atentos à discussão que o tema, necessariamente, vai trazer.
 
[1] Nas palavras de Augusto Lopes Cardoso, “… mais até do que do próprio profissional, o segredo é um ´dever de toda a classe´, é condição da ´plena dignidade´ do Advogado como da Advocacia”, in Do Segredo Profissional na Advocacia, CELOA, 1998, pág. 17.
[2] Neste contexto lê-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido no processo n.º 2288/08.0TBPTM-A.C1, de 21-12-2010, que “As normas que regem o segredo profissional dos advogados são de interesse e ordem pública, transcendendo a mera relação advogado/cliente”. - disponível in www.dgsi.pt
[3] Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 84/84, de 16 de março.
[4] Aprovado pelo Decreto 13809, de 22 de junho de 1927 - Diário do Governo, I Série, n.º 129, de 22 de junho de 1927.
[5] cfr. art.º 1361.º Código Civil Português, aprovado pela Carta de Lei de 1 de julho de 1867.
[6] Regulamento nº 94/2006 OA 2ª série, de 25 de maio de 2006, aprovado pelo Conselho Geral da Ordem dos Advogados e publicado no Diário da República, 2ª série, nº 113 de 12 de junho de 2006
[7] Cfr. a este propósito o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, proferido no processo 93/22.0T8EPS-A.F1, de 22/06/2023, que determinou:“O sigilo profissional de advogado não é um dever absoluto; mas a razão da sua existência (assente simultaneamente nas privadas confiança e lealdade entre o cliente e o advogado, e no público interesse da boa administração da justiça, que exige uma advocacia livre e independente), impõe que só em casos excecionais possa ser quebrado” - disponível in www.dgsi.pt
[8]Ainda neste âmbito, o citado acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães é claro quando afirma que “ O apuramento de qual seja o interesse preponderante faz-se mediante uma apreciação dos contornos do litígio concreto (fundada na específica natureza da acção e na relevância e intensidade dos interesses em confronto), face aos quais o depoimento pretendido terá de ser necessário (tendo em conta o pedido, a causa de pedir, os temas de prova, e os ónus e as regras de prova) e imprescindível (no sentido de a prova não poder ser obtida de outro modo); e considerando ainda os princípios da proporcionalidade, da adequação e da necessidade (limitando-se a restrição do dever de sigilo profissional ao mínimo indispensável à realização dos valores pretendidos alcançar)”.
[9] Cfr. Artigo 115.º do EOA.
[10] Ver também o n.º 6 do art.º 63.º da LGT e o art.º 59.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira.
[11] Que alterou a Diretiva 2011/16/UE no que respeita à troca automática de informações obrigatória no domínio da fiscalidade em relação aos mecanismos transfronteiriços a comunicar, transposta para a ordem jurídica interna pela Lei n.º 26/2020, de 21 de julho).
[12]  O processo foi despoletado por um pedido da Ordem dos Advogados belga, em que também participam o Conselho dos Advogados Europeus e a Ordem dos Advogados francesa, e estão em causa essencialmente os deveres de comunicação dos mecanismos fiscais transfronteiriços potencialmente agressivos.  As questões principais referem-se à potencial violação do princípio da igualdade e não discriminação, da legalidade em matéria penal, da segurança jurídica, e do direito ao respeito pela vida privada, devido à imposição de obrigações de comunicação sobre mecanismos transfronteiriços em matéria fiscal.
[14] in Direito Profissional do Advogado, 6ª edição, Almedina, 2008, pág. 5
[15] Sobre este tema ver COSTA, Suzana: “Os limites ao dever de colaboração com a inspeção tributária – o direito à não autoinculpação e o sigilo profissional dos TOC”, páginas 10 a 15, in Revista da Associação dos Profissionais da Inspeção Tributária, abril de 2013 e MARTINS ARAÚJO, Ana: “A contabilidade e o dever de colaboração dos privados com a administração tributária: limites”, in Direito da Contabilidade, Suzana Fernandes da Costa (coord.), AAFDL, 2023.