Paulo Pimenta

Publicado: 9 de abril de 2020

Análise Legislativa
CÍVEL


Prazos, diligências, processos e procedimentos em época de emergência de saúde pública (DL nº 10-A/2020, de 13 de Março, Lei nº 1-A/2020, de 19 de Março, e Lei nº 4-A/2020, de 6 Abril)


 
  1. Nota introdutória: uma espécie de exposição de motivos

O nosso país – mas não apenas o nosso – está confrontado com uma emergência de saúde pública que, num ápice, além de já ter levado o Presidente da República a decretar o estado de emergência (Decreto nº 14-A/2020, de 18 de Março)[1], medida absolutamente inédita desde 1976, alterou por completo a nossa vida e as nossas rotinas, criou um receio generalizado de contágio da doença COVID-19 e instalou um clima de grande incerteza, não apenas sobre a evolução da situação epidemiológica, mas também sobre a nossa capacidade de resistência e adaptação aos efeitos desta verdadeira tragédia.

Até certo ponto, compreende-se que as autoridades e as várias entidades com poder de decisão aos mais diversos níveis tivessem tido dificuldade em ajustar-se à situação e em tomar medidas, incluindo no plano dos tribunais e dos processos judiciais (e outros). Mas isso só se compreende até certo ponto.

Com efeito, a partir de um determinado momento, mais a mais não podendo ignorar-se as notícias provenientes de outros países (desde logo, de Itália, no contexto europeu), começou a ser evidente que o dia a dia dos tribunais não poderia continuar como se nada fosse, tornou-se patente que as diligências não poderiam continuar a realizar-se como até então, com tudo o que isso implicava de deslocação diária de milhares de pessoas (juízes, procuradores, advogados, oficiais de justiça, testemunhas, peritos, etc.) para os edifícios dos tribunais, aí circulando, aí permanecendo, aí tendo “contacto social” indiscriminado.

Que se tenha presente, o dia 9 de Março corresponde à primeira medida de contenção tomada, mas somente por referência aos núcleos de Felgueiras e Lousada, com a suspensão da actividade das respectivas secretarias, com ressalva do serviço urgente, conforme despacho da Direcção-Geral da Administração da Justiça. Esta medida, sendo de saudar, era manifestamente curta, até porque estava longe de ser evidente o nexo entre a existência de um número assinalável de focos de infecção nos municípios de Felgueiras e Lousada e a suspensão da actividade das secretarias daqueles dois núcleos judiciais. A questão era muito simples: como tratar os casos de advogados residentes ou com escritório em Felgueiras e Lousada, ou de cidadãos residentes naqueles municípios, que tivessem de intervir em processos pendentes noutros tribunais, dentro ou fora da área da Comarca do Porto Este? Foi uma situação que, nos dias seguintes, gerou dificuldades e dúvidas, não obstante, há que assinalar, todo o zelo e empenho da Presidência da Comarca do Porto Este, que manteve contacto permanente com o Conselho Regional do Porto da Ordem dos Advogados, sempre no sentido de soluções airosas e equilibradas.

Embora se percebesse que era preciso tomar medidas de contenção mais abrangentes, nem assim as entidades competentes o faziam. Foi muito por isso, isto é, por tardarem medidas com a amplitude devida que, na manhã do dia 11 de Março, o Juiz Presidente da Comarca do Porto e o Presidente do Conselho Regional do Porto da Ordem dos Advogados divulgaram um “apelo conjunto” em que sugeriam aos advogados e aos juízes que, por acordo, adiassem todas as diligências, com excepção das que tivessem carácter urgente. Esse “apelo conjunto”, visando eficácia e prontidão, continha mesmo a indicação do procedimento a adoptar: requerimento conjunto dos mandatários, seguido de despacho judicial.

Aquele “apelo conjunto” foi como que o detonador da tomada de consciência que faltava acerca da gravidade da situação nos tribunais, porquanto, a partir daí, nada mais foi igual. Com efeito, no final desse dia 11 de Março, o Conselho Superior da Magistratura, no que designou como medida de gestão excepcional, determinou que, nos tribunais judiciais de 1ª instância, apenas deveriam realizar-se actos e diligências em que estivessem em causa direitos fundamentais (Divulgação nº 69/2020)[2]. Já no dia 12 de Março, o Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais tomou medida idêntica (Comunicado 2/2020). Restava, então, que o poder político interviesse e legislasse de forma adequada à gravidade e premência da situação epidemiológica.   

Assim chegou o DL nº 10-A/2020, de 13 de Março, destinado, segundo o seu sumário, a estabelecer “medidas excecionais e temporárias relativas à situação epidemiológica do novo Coronavírus – COVID 19”. Todavia, se a exposição de motivos desse diploma logo antecipava que as soluções consagradas não eram as que a situação no terreno exigia, pois se limitava a aludir ao estabelecimento de um regime específico de justo impedimento e a um regime de suspensão de prazos processuais e de procedimentos no estrito quadro do encerramento de instalações, a leitura dos seus arts. 14º e 15º, integrados no capítulo VI, que versava sobre “Atos e diligências processuais e procedimentais”, confirmava em absoluto essa desilusão[3].

Com efeito, o que constava daqueles dois preceitos nada adiantava ao que já era possível obter pela normal aplicação das regras gerais, quer em matéria de justo impedimento (art. 140º do CPC), quer em matéria de suspensão de prazos (art. 138º do CPC). Quanto ao justo impedimento, fazer depender o seu reconhecimento de declaração emitida por autoridade de saúde iria ter por efeito sobrecarregar os hospitais e os centros de saúde com pedidos dessa natureza, o que era inconciliável com as indicações no sentido de os cidadãos reduzirem a sua circulação e de só em última instância se deslocarem aos hospitais e a outros serviços de saúde. Quanto à suspensão de prazos, estabelecer que isso só ocorreria no caso de as instalações estarem encerradas, significaria criar uma situação de absoluta incerteza, pois implicaria, em cada momento, saber se este ou aquele tribunal estava encerrado, com a agravante de que, em regra, nenhum tribunal estaria realmente encerrado, pois sempre teriam de ser acautelados serviços relativos a processos urgentes, o levava à conclusão de que, na prática, dificilmente haveria suspensão de prazos. Numa palavra: apesar dos sinais do terreno e apesar das expectativas criadas, o DL nº 10-A/2020 foi uma oportunidade perdida, pois deixou tudo na mesma, apesar de, a cada dia, a situação se ir agravando.

Em face disso, logo a 14 de Março, o Conselho Regional do Porto da Ordem dos Advogados expressou o seu repúdio pelo intervenção legislativa, já que não resolvia nada em matéria de justiça e de funcionamento dos tribunais, criando até problemas, concluindo-se pela necessidade de serem revistas as soluções consagradas.

E assim se ficou à espera de uma intervenção legislativa adequada. Uma intervenção legislativa que, além de se adaptar ao estado de emergência entretanto decretado e ao que, nessa sequência, foi ou viria a ser determinado, nomeadamente com a imposição do dever geral de “recolhimento domiciliário”, imprimisse segurança, certeza e previsibilidade na sensível área da tramitação processual e procedimental, nos tribunais como noutras jurisdições, regulando a questão dos actos e diligências e a questão dos prazos. Tudo isso num quadro de progressivo agravamento da situação epidemiológica e num quadro em que, estava à vista de todos, não seria possível manter os tribunais a funcionar com normalidade e não seria possível assegurar a normal cadência dos processos e procedimentos. Dito de outro modo, era evidente para todos, incluindo para o legislador, que a medida legislativa a apresentar, tendo necessariamente como pano de fundo, isto é, como pressuposto, a situação excepcional vigente, teria de consagrar soluções igualmente excepcionais.

Veio então a Lei nº 1-A/2020, de 19 de Março, com um objectivo muito claro: por um lado, ratificar os efeitos do referido DL nº 10-A/2020, de 13 de Março; por outro, aprovar “medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provada pelo coronavírus SARS-CoV-2, agente causador da doença COVID-19”.
                                      
O art. 7º da Lei nº 1-A/2020, apresentando a epígrafe “Prazos e diligências”, consagrava a suspensão generalizada da tramitação e dos prazos relativamente a processos pendentes em diversas jurisdições, usando a técnica de submeter todos esses processos ao regime das férias judiciais, mas indo mais longe, já que também impunha a suspensão da tramitação e dos prazos nos próprios processos urgentes – era o que resultava da conjugação do disposto nos nºs 1, 5, 6 e 7 desse art. 7º.

Num regime assim tão fechado, que equivalia a uma quase total paralisação de todas as pendências, incluindo nos tradicionais processos urgentes, os nºs 8 e 9 apresentavam-se como as únicas excepções, sendo certo que se perfilavam inúmeras dificuldades práticas para extrair com um mínimo de segurança a compatibilização entre a dita paralisação generalizada das pendências e as curtas excepções previstas.

Essas dificuldades ficavam a dever-se a uma técnica legislativa sofrível. E se é certo que o estado de emergência que vive o país impõe alguma urgência na tomada de medidas legislativas que ajustem o sistema vigente à situação excepcional em presença, será sempre caso para dizer que é pior a emenda que o soneto quando nada é feito com cautela, zelo e, sobretudo, rigor. Por outras palavras, a formulação utilizada pela Lei nº 1-A/2020 era simultaneamente excessiva – por prever suspensões muito abrangentes de tramitações e de prazos – e assaz aligeirada – por não regular criteriosamente as excepções a tão abrangente regra.   

A confirmar isso mesmo está o facto de a Lei nº 1-A/2020 só ter resistido duas semanas, já que, no dia 2 de Abril último, foi aprovada a Lei nº 4-A/2020, de 6 de Abril, a qual, conforme anuncia a al. a) do seu art. 1º, vem proceder à alteração da Lei nº 1-A/2020, de 19 de Março.

Antes de passar à análise do regime resultante destas duas Lei que se sucedem no curto espaço de pouco mais de 15 dias, importa enfatizar o quadro excepcional que se vive e que, necessariamente, impõe medidas igualmente excepcionais, embora transitórias.

Note-se que, quando a Lei nº 1-A/2020 fala em “resposta à situação epidemiológica”, aquilo que essencialmente está em jogo é evitar ou reduzir o mais possível o risco de contágio, o que passa tanto pelo “recolhimento domiciliário” como pela restrição dos “contactos sociais”. Isto é tão mais importante quanto se mostram variáveis inconciliáveis o normal funcionamento dos tribunais, de um lado, e o recolhimento domiciliário e a restrição de contactos sociais, de outro.

De resto, quando se olha para o diploma que define o “Regime do estado de sítio e do estado de emergência” (Lei nº 44/86, de 30 de Setembro), logo se intui que as garantias proclamadas nas als. a) e b) do nº 2 do art. 2º, no art. 6º e no art. 22º desse diploma sofrem necessariamente graves constrangimentos num quadro de elevadíssimo risco de contágio como o que caracteriza a situação epidemiológica que assola o nosso país (e muitos outros). O mesmo se pode dizer, mutatis mutandis, quanto à proclamação da garantia do acesso ao direito e aos tribunais vertida no art. 32º do Decreto nº 2-B/2020, de 2 de Abril, que regulamenta a prorrogação do estado de emergência decretado pelo Presidente da República[4].      

Sem prejuízo da crítica que mereçam estes dois diplomas, com o mesmo âmbito e tão próximos no tempo, convém ter sempre presente a situação absolutamente excepcional com que o país e todos nós estamos confrontados, em moldes de que não há memória, o que só por si já é fonte de aflição e instabilidade, razão pela qual é desejável que os ensaios interpretativos se pautem pela sobriedade e pela contenção, guardando-se para outra sede juízos valorativos e até especulativos. Com aquilo que temos perante nós, não importa tanto saber o que cada intérprete pensa que deveria ter sido consagrado pelo legislador, nem se as opções vão além ou ficam aquém do que deveriam. Importa, isso sim, contribuir no sentido de obter a maior uniformidade possível na interpretação e aplicação da lei. Por isso, são despiciendas leituras extremadas ou fundamentalistas, cujo efeito é criar incerteza e instabilidade.

Acresce dizer que, face à situação que vivemos, quanto maior for o cenário de incerteza e quanto mais dúvidas interpretativas houver, mais se potenciará a disparidade nas decisões judiciais. E as primeiras vítimas disso serão os advogados, pois se encontrarão no constante dilema de assumir se o prazo está ou não suspenso, se o acto vai ou não ser praticado, se devem ou não comparecer em juízo, o que, obviamente, é fonte de enorme angústia. As segundas, e não menos importantes, vítimas dum cenário de incerteza serão os próprios clientes dos advogados (cidadãos e empresas), já que sempre será na sua esfera jurídica que se repercutirão as consequências da disparidade entre a concreta actuação do seu mandatário e aquilo que vier a entender-se que deveria ter sido tal actuação.

 
  1. Análise das soluções consagradas

Para o que aqui releva, a interpretação da Lei nº 1-A/2020, com a redacção resultante da Lei nº 4-A/2020,[5] recairá especialmente sobre o disposto no art. 7º que, como estabelece a sua epígrafe, versa sobre “Prazos e diligências”.

Antes de mais, é de assinalar que o art. 7º consagra um regime temporário, que será aplicado enquanto não cessar a situação de excepção que lhe está subjacente, sendo certo que a data do termo dessa situação excepcional será definida por decreto-lei, o que terá a virtude de conferir certeza e segurança – é o que resulta do disposto nos nºs 1 e 2 do art. 7º.

As medidas aqui definidas passam, no essencial, por reduzir ao mínimo possível a actividade processual, nos tribunais e noutras jurisdições, ao que acresce o intuito de, mesmo nos processos urgentes, evitar diligências com a presença física dos intervenientes.

 
  1. Regime regra em matéria de processos e procedimentos, prazos processuais, actos e diligências

            Comecemos por verificar a abrangência normativa da Lei, em termos processuais ou procedimentais e em termos de jurisdições:
- a Lei aplica-se a todos os processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, nos tribunais administrativos e fiscais, no Tribunal Constitucional, no Tribunal de Contas, nos demais órgãos jurisdicionais, nos tribunais arbitrais, no Ministério Público, nos julgados de paz, nas entidades de resolução alternativa de litígios e nos órgãos de execução fiscal, suspendendo os prazos para a prática de actos (nº 1 do art. 7º)[6];
- a Lei aplica-se ao prazo de apresentação do devedor à insolvência, previsto no nº 1 do art. 18º do CIRE, suspendendo tal prazo [al. a) do nº 6 do art. 7º];
- a Lei aplica-se a todas as execuções, impedindo a prática de actos executivos, salvo quando daí resulte prejuízo grave para a subsistência do exequente ou um prejuízo irreparável para este, sempre mediante decisão judicial [al. b) do nº 6 do art. 7º][7];
- a Lei aplica-se aos procedimentos que corram termos em cartórios notariais e em conservatórias, suspendendo os prazos para a prática de actos [al. a) do nº 9 do art. 7º];
- a Lei aplica-se aos procedimentos contraordenacionais, sancionatórios e disciplinares, incluindo a impugnação judicial de decisões finais ou interlocutórias, que corram termos em serviços da administração directa, indirecta, regional e autárquica, e nas demais entidades administrativas, designadamente entidades administrativas independentes, incluindo a Autoridade da Concorrência, a Autoridade de Supervisão de Seguros e  Fundos de Pensões, o Banco de Portugal e a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, bem assim os que corram termos em associações públicas profissionais, suspendendo os prazos para a prática de actos [al. b) do nº 9 do art. 7º];
- a Lei aplica-se aos procedimentos administrativos e tributários quanto a actos a praticar por particulares que respeitem a interposição de impugnação judicial, reclamação graciosa, recurso hierárquico, ou outros procedimentos de idêntica natureza, bem como a actos processuais ou procedimentais subsequentes àqueles, suspendendo os prazos para a prática desses actos [al. c) do nº 9 e nº 10 do art. 7º][8].  

A conjugação dos nºs 1, 6, 9 e 10 do art. 7º da Lei mostra o seguinte quadro:
- por um lado, há suspensão de prazos para a prática de actos nos ditos processos e procedimentos, nas jurisdições indicadas[9];
- por outro, não se praticam quaisquer actos nas acções executivas, com duas únicas ressalvas, sujeitas a controlo judicial;
- por fim, o devedor não tem de se apresentar à insolvência enquanto durar a situação excepcional.

Deixando de lado o caso das acções executivas e o da apresentação do devedor à insolvência, o sentido da Lei é, claramente, o da paralisação generalizada dos processos e procedimentos acima referidos – é, pelo menos, o que se intui da previsão relativa à suspensão de prazos para a prática de actos processuais.

Com efeito, se estão suspensos os prazos para a prática de actos em processos e procedimentos, nos termos definidos na diversa legislação aplicável, daí resulta que a tramitação respectiva não tem desenvolvimento.

Por exemplo, proposta uma acção declarativa comum e citado o réu, estando suspenso o prazo da contestação, o respectivo processo não terá mais evolução.

E isto vale para qualquer situação em que, na sequência da iniciativa de uma das partes ou na sequência de uma decisão judicial, haja prazo para a prática de um acto, seja de resposta da contraparte, seja de reacção perante um despacho ou uma sentença. Também aqui o prazo, qualquer que seja, não corre, o que equivale a uma impossibilidade de a tramitação avançar.

Se o que acaba de dizer-se é, à primeira vista, simples de enunciar, o certo que é o art. 7º contém um nº 5 cuja previsão suscita alguns problemas.
Com efeito, a al. a) desse nº 5 diz que o disposto no nº 1 – isto é, a suspensão de prazos – não obsta ao seguinte: à tramitação dos processos e à prática de actos presenciais e não presenciais não urgentes quando todas as partes entendam ter condições para assegurar a sua prática através das plataformas informáticas que possibilitam a sua realização por via electrónica ou através de meios de comunicação à distância adequados, designadamente teleconferência, videochamada ou outro equivalente.
  
Qual o sentido desta previsão, no confronto com o disposto no nº 1 do art. 7º?

Uma de duas:
- ou bem que os prazos estão suspensos e, como tal, iniciada qualquer tramitação que implique contraditório, o prazo concedido à contraparte não corre, por ser esse o significado da suspensão marcada na Lei, e então a al. a) do nº 5 deste art. 7º não tem possibilidades de operar;
- ou não há suspensão nenhuma de prazos, tendo os mesmos de ser cumpridos, com a inerente possibilidade de prática de actos não presenciais e ainda a possibilidade de os actos presenciais que houvessem de ser praticados terem lugar por meio de comunicação à distância[10].

Isto para não falar na estranha previsão de tudo parecer ficar dependente do que “todas as partes entendam”. Será que uma das partes pode entender, digamos, potestativamente, que não há condições, assim impedindo algo que, objectivamente, até seria viável? E o juiz será alheio a esta ponderação[11]?

Em processo, a suspensão de prazos de prazos implica, necessariamente, que as partes não têm de praticar nenhum acto para cuja prática disponham de um prazo, o mesmo é dizer que a suspensão de prazos conduz à impossibilidade de a tramitação processual ter sequência enquanto se mantiver a suspensão desse prazo, qualquer que seja o tipo de acto (oral ou escrito) e qualquer que seja a forma da sua prática (presencialmente ou por meio de comunicação à distância, quanto aos actos orais).

Nessa medida, é de concluir que a al. a) do nº 5 do art. 7º  consagra uma impossibilidade, mais a mais quando se tem por incontornável que o propósito legislativo é o de, salvo quanto aos processos urgentes, consagrar uma paralisação generalizada das pendências, tal como resulta do disposto nos nºs 1, 6, 9 e 10 do art. 7º da Lei – propósito esse que vem já da versão original da Lei e que se mostra ser o único que se ajusta ao facto, já assinalado, de serem variáveis inconciliáveis o normal funcionamento dos tribunais, de um lado, e o recolhimento domiciliário e a restrição de contactos sociais, de outro.

Passemos, agora, à al. b) deste nº 5 do art. 7º, que estabelece que a suspensão de prazos não obsta à prolação da decisão final nos processos em que não restem diligências por realizar.

Antes de mais, cabe referir que a Lei não regula, nem tinha de o fazer, nada que respeite à prática de actos processuais por escrito, seja pelas partes, seja pelos juízes, actos que podem continuar a ser praticados, nos termos dos nºs 1 e 4 do art. 137º do CPC[12].

Quer isto significar que as partes podem continuar a dirigir peças escritas aos processos, mesmo sabendo que a sequência processual pode ficar por aí[13]. E também os juízes podem proferir despachos e sentenças, tanto em relação a conclusões abertas anteriormente, como àquelas que ocorrerem enquanto durar a situação excepcional.

Por outro lado, é evidente que a suspensão dos prazos é primordialmente significativa para a prática dos actos pelas partes, dada a sua natureza preclusiva. Quanto aos juízes, podem perfeitamente praticar por escrito todos os actos que lhes competirem.

O teor da al. b) do nº 5 do art. 7º, que constitui uma inovação relativamente à versão original da Lei, pode até levar a que se pense que, com ressalva das decisões finais, os juízes estão “dispensados” de praticar outro tipo de actos (entenda-se: decisões ou despachos) nos processos não urgentes, entendimento que não parece adequado, seja porque o regime instituído não é o de férias judiciais, seja porque, naturalmente, os juízes não estão (ainda) em período de gozo de férias pessoais[14].

Duas notas mais:

Relativamente aos procedimentos que corram nas conservatórias de registo, referidos na al. a) do nº 9 do art. 7º, estão suspensos todos os prazos, previstos nos códigos de registo ou em legislação avulsa, para requerer e para instruir actos, processos e procedimentos de registo, aí se incluindo os prazos para efectuar o registo, para suprir deficiências, para interpor recurso hierárquico ou impugnar judicialmente, e ainda os prazos de prescrição e de caducidade respeitantes a quaisquer actos e procedimentos de registo[15].

Por outro lado, considerando a formulação da al. b) do nº 9 do art. 7º, focada numa vertente primordialmente administrativa, afigura-se que a alusão a prazos relativos a procedimento disciplinar, seja para a sua instauração, seja para a defesa e demais tramitação, respeita somente aos procedimentos de natureza administrativa, quer dizer, este preceito não cobre os procedimentos disciplinares que tenham lugar nas relações de índole privada, cujos prazos não conhecerão, pois, qualquer suspensão.  

 
  1. Regime aplicável nos processos urgentes

Relativamente aos processos urgentes, a Lei nº 4-A/2020, operou uma mudança muito significativa face ao que constava da Lei nº 1-A/2020.

Na verdade, a conjugação dos nº 1 e 5 do art. 7º, na sua formulação inicial, implicava que os processos urgentes ficassem, eles próprios, submetidos ao regime das férias judiciais, suspendendo-se os prazos processuais e não se praticando actos processuais, opção que corria o risco de ser excessiva, não tanto por si, mas porque as excepções a tal suspensão (previstas nos nºs 8 e 9 do art. 7º, na versão original) estavam enunciadas em termos que geravam enormes dificuldades de interpretação e de materialização.

 
  1. Processos urgentes em geral

Agora, mediante a nova redacção do art. 7º, mais precisamente do seu nº 7, a regra é a de que os processos urgentes seguirão os seus trâmites nos moldes tradicionais e em conformidade com o que resulta da lei de processo, realizando-se os actos e diligências e não havendo suspensão ou interrupção de prazos.

No entanto, considerando a necessidade de evitar situações que potenciem o risco de contágio, são estabelecidas algumas condições relativamente aos actos que, nos termos gerais, supõem a presença física das partes, dos seus mandatários ou de outros intervenientes processuais.

O critério adoptado é o seguinte: tais actos devem realizar-se através de meios de “comunicação à distância” adequados, exemplificando a Lei com a figura da “teleconferência” e da “videochamada”, mas admitindo meio “equivalente” – é o que resulta da al. a) do nº 7 do art. 7º.

Não é difícil supor que às vezes – porventura, a maior parte das vezes –, não haverá condições técnicas ou logísticas para que os referidos actos – que são actos orais – sejam praticados, incumbindo sempre ao juiz verificar se há ou não tais condições, deixando exarado em despacho o resultado dessa verificação, não só para evitar dúvidas, mas também para assegurar a vinculação das partes e a sua consciencialização de que, quando for o caso, o processo em causa pode cumprir realmente a sua tramitação.

Quando se conclua que não existem condições para o acto ser praticado desse modo, cenário que a própria Lei configura, cumpre-se então o disposto na al. c) do mesmo nº 7, isto é, o processo, ainda que urgente, fica sujeito ao regime do nº 1 do art. 7º da Lei, significando isso que a tramitação não terá desenvolvimento.

Veja-se que esta al. c) refere que se aplica “o regime da suspensão referido no n.º 1 [do art. 7]. Ora, o que este nº 1 estabelece é a suspensão de prazos, não sendo bem isso que está em causa para os efeitos previstos na dita al. c) do nº 7.

Com efeito, como se viu, nos processos urgentes, não há suspensão de prazos e a sua tramitação desenvolve-se nos termos habituais. A única questão que se coloca é quanto à prática de actos orais que impliquem a presença física dos intervenientes. Aí, uma de duas: ou os actos podem ser praticados por meios de comunicação à distância, nos termos da al. a) deste nº 7, caso em que, praticados os actos orais, a tramitação continua; ou isso não é possível, em virtude de impedimentos técnicos ou logísticos, caso em que, não praticado o acto em causa, a tramitação não pode mesmo prosseguir daí em diante, existindo um óbvio bloqueio processual, que tanto poderá ser temporário (mantendo-se até que seja ultrapassado o impedimento verificado), como pode ser definitivo (mantendo-se por todo o tempo que durar a situação excepcional referida no nº 1 do art. 7º).

A título de exemplo, é de prever que, nos processos de insolvência, que são considerados urgentes (art. 9º do CIRE), a tramitação bloqueie quando houver que realizar a assembleia de credores, pois dificilmente se conseguirá cumprir a previsão da al. a) do nº 7 do art. 7º da Lei.

 
  1. Processos especificamente urgentes

O que acaba de ser referido vale para o actos orais a praticar presencialmente nos processos urgentes em geral, digamos, já que a Lei prevê um outro cenário, ainda mais específico, conforme decorre da al. b) do nº 7 deste art. 7º.

Concretamente, sempre que nos processos urgentes esteja em causa a vida, a integridade física, a saúde mental, a liberdade ou a subsistência imediata dos intervenientes, a natureza urgente dos processos impõe, por si só e antes de mais, o regime que consta do proémio do referido nº 7, isto é, a sua tramitação será observada nos termos normais, não havendo lugar à suspensão ou interrupção de prazos.

Nesse contexto, as diligências que impliquem a presença física dos intervenientes deverão, em regra, realizar-se através de meios de comunicação à distância, tal como a situação é prevista na al. a) do nº 7.

A diferença – a especificidade – está nisto: ainda que ocorram constrangimentos técnicos ou logísticos que obstem à realização da diligência por meios de comunicação à distância, é propósito da Lei, precisamente pela natureza dos interesses em presença, que a diligência se realize efectivamente, razão pela qual a al. b) do nº 7 admite que tal diligência decorra mesmo com a presença física dos intervenientes. Porém, dado o risco de contágio, esta via sujeita-se a uma exigência: que não implique a presença de um número de pessoas superior ao previsto pelas recomendações das autoridades de saúde e de acordo com as orientações fixadas pelos conselhos superiores competentes. Neste quadro, sempre incumbirá ao juiz verificar se há ou não condições para a diligência se realizar, deixando exarado em despacho o resultado dessa verificação, não só para evitar dúvidas, mas também para assegurar a vinculação das partes e a sua consciencialização de que, quando for o caso, o processo em causa pode cumprir realmente a sua tramitação.

Só se, de todo em todo, a via presencial não puder concretizar-se é que acabará por impor-se a al. c) do nº 7, nos termos já acima referidos, isto é, não podendo realizar-se a diligência, o processo conhecerá um bloqueio que impõe a suspensão da tramitação e dos prazos, por referência ao nº 1 do art. 7º.

Num quadro assim, o sistema terá de tirar as respectivas consequências, o que implicará, por exemplo, libertar quem esteja detido e não possa ser sujeito a primeiro interrogatório judicial dentro prazo legal ou libertar quem se encontre preso preventivamente, caso se esgote o prazo respectivo.

 
  1. Outros casos de urgência

Acresce que o nº 8 do art. 7º da Lei considera ainda urgentes, para efeitos de submissão ao regime do nº 7 do mesmo preceito, as situações seguintes:
- os processos e procedimentos para defesa dos direitos, liberdades e garantias lesados ou ameaçados de lesão por quaisquer providências inconstitucionais ou ilegais, referidas no art. 6º da Lei nº 44/86, de 30 de Setembro, diploma que define o “Regime do estado de sítio e do estado de emergência” – disso trata a al. a);
- o serviço urgente previsto no nº 1 do art. 53º do “Regime de funcionamento e organização dos tribunais judiciais”, constante do DL nº 49/2014, de 27 de Março – disso trata a al. b)[16];
- os processos, procedimentos, actos e diligências que se revelem necessários a evitar dano irreparável, designadamente os processos relativos a menores em risco ou a processos tutelares educativos de natureza urgente e as diligências e julgamentos de arguidos presos – disso trata a al. c)[17].

Nestes casos, por princípio, a tramitação deve cumprir-se e não há suspensão dos prazos, tal como resulta do proémio do nº 7, observando-se o estabelecido na al. a) e na al. b) desse nº 7, quanto às diligências que impliquem a presença física das partes, dos seus mandatários ou de outros intervenientes processuais, segundo os critérios acima referidos.

Em jeito de concretização, pensando nos processos crime e considerando o disposto na al. b) do nº 7 e na al. c) do nº 8 deste art. 7º, afigura-se que somente naqueles em que haja detidos ou que contendam com arguidos presos serão realizadas diligências que impliquem a presença física dos envolvidos, sendo que também só esses processos escapam ao regime geral da suspensão de prazos consagrado no nº 1 do art. 7.

Noutra concretização, por referência ao disposto na al. c) do nº 8 do art. 7º, agora em conjugação com o “Regime geral do processo tutelar cível”, regulado pela Lei nº 141/2015, de 8 de Setembro, e constatando que a dita al. c) não tem uma formulação taxativa, como resulta do advérbio “designadamente”, não é de excluir que, a propósito do exercício das responsabilidades parentais (haja já processo ou não), seja necessário tomar medidas urgentes, considerando a concreta situação em que possa encontrar-se uma criança. Por exemplo, se o progenitor que tem a criança à sua guarda se mostrar imprevidente na observância do “recolhimento domiciliário”, assim sujeitando a criança ao risco de contágio, tais medidas urgentes impor-se-ão. Noutro plano, se o progenitor que tem a criança à sua guarda invocar o “recolhimento domiciliário” para impedir contactos da criança com o outro progenitor, também aí serão de tomar medidas urgentes[18]. Numa palavra, as restrições ao normal funcionamento dos tribunais não podem servir de pretexto para actuações abusivas e potenciadoras de perigo para a criança ou para o seu desenvolvimento, devendo, aliás, reprimir-se tais actuações com a maior veemência, por ser especialmente censurável que alguém se prevaleça da situação excepcional vigente.  

 
  1. Prazos de prescrição e caducidade
 
O nº 3 do art. 7º, também com foros de excepcionalidade, consagra a suspensão de prazos de prescrição e de caducidade relativamente a todos os tipos de processos e procedimentos, sendo que, nos termos do nº 4, esta suspensão de prazos de prescrição e caducidade prevalece sobre quaisquer regimes que fixem prazos máximos imperativos, prevendo-se que tais regimes serão alargados pelo período de tempo em que vigorar a situação excepcional[19].  

Nesta conformidade, enquanto durar a situação de excepção, não haverá necessidade de instaurar processos ou procedimentos para evitar a prescrição ou a caducidade, sendo que os respectivos prazos retomarão a sua contagem assim que findar a dita situação de excepção. Importa salientar que o sentido da lei, e a suspensão opera somente quanto a esses prazos, é o de acautelar casos em que o exercício do direito implica a instauração de um processo ou um procedimento, isto é, implica uma concreta iniciativa processual.

A título meramente exemplificativo, por referência a previsões do Código Civil, estão suspensos os prazos para instaurar acções de anulação (art. 287º), acções destinadas à efectivação de responsabilidade civil extracontratual (art. 498º), acções de resolução de contrato de arrendamento (art. 1085º) ou acções de preferência (art. 1410º).

E também vigora tal suspensão relativamente a prazos definidos no Código de Processo Civil para propor acções, de que são exemplo os casos previstos nos seus arts. 371º, nº 1, e 373º, nº 1, al. a).

Em contraposição, estão excluídos da previsão da Lei prazos cuja observância não careça de uma iniciativa processual, não havendo aí lugar a qualquer suspensão (sem prejuízo, bem entendido, de outros diplomas ou disposições que, em concreto, consagrem soluções passíveis de gerar a suspensão de certos prazos ou um efeito prático similar).

 
  1. Suspensão de acções e processos

O intuito abrangente do legislador, justificado sempre pela excepcionalidade que vivemos, levou ainda a que ficasse consignado expressamente o que consta do nº 11 do art. 7º, determinando a suspensão das acções de despejo, dos procedimentos especiais de despejo e dos processos para entrega de coisa imóvel arrendada, solução a que, em geral, já se chegaria à luz dos preceitos acima tratados, pois a suspensão dos prazos a tal conduz. De resto, o efeito paralisante decorrente da suspensão dos prazos à luz do nº 1 do art. 7º afigura-se mais protector para o arrendatário do que aquilo que consta da parte final deste nº 11, que parece fazer depender a suspensão da situação (de fragilidade por falta de habitação própria ou outra razão social imperiosa) em que a decisão venha a colocar o arrendatário[20].

 
  1. Produção de efeitos

Se há assunto delicado em termos de técnica legislativa é o da definição do regime da produção de efeitos dos diplomas legais. Aqui está um ponto em que a Lei, na versão inicial e agora, segue um caminho tortuoso.

Na sua versão inicial, o art. 10º da Lei retroagia os seus efeitos à data da produção de efeitos do DL nº 10-A/2020, de 13 de Março, o qual, por sua vez, no respectivo art. 37º, faz coincidir a produção de efeitos com o dia da sua aprovação, que foi a 12 de Março. Sucede que esse mesmo art. 37º estabelece também que, quanto ao disposto nos art. 14º a 16º do dito DL nº 10-A/2020, a produção de efeitos do diploma se reporta ao dia 9 de Março.

Assim sendo, ainda em face da versão inicial da Lei, publicada a 19 de Março, dir-se-ia que os seus efeitos retroagiam ao dia 12 de Março de 2020. No entanto, quanto à específica regulamentação contida nos art. 14º (justo impedimento) e 15º (suspensão de prazos por encerramento de instalações) do DL nº 10-A/2020 – posto que inócua, como se disse acima, pelo que dificilmente invocável ou aplicável – deveria entender-se que os seus efeitos retroagiam a 9 de Março de 2020[21].

Vejamos, agora, o que resulta da nova versão da Lei nº 1-A/2020, nos termos definidos pela Lei nº 4-A/2020.

Por um lado, o art. 5º da Lei nº 4-A/2020 apresenta uma norma interpretativa relativamente ao art. 10º da própria Lei nº 1-A/2020, no sentido de se entender que o disposto no seu art. 7º produz efeitos a 9 de Março.

A necessidade desta norma interpretativa confirma o que se disse acerca da forma tortuosa como a questão da produção de efeitos da Lei nº 1-A/2020 foi gerida e mais mostra que não se chegaria à conclusão agora firmada senão por meio de uma norma interpretativa.

Daqui resulta que, no contexto da produção de efeitos da Lei nº 1-A/2020, temos um destaque das disposições contidas no seu art. 7º, disposições essas cujos efeitos remontam então ao dia 9 de Março, enquanto todos os demais efeitos da Lei nº 1-A/2020 valem desde o dia 12 de Março.

Por outro lado, o art. 6º da Lei nº 4-A/2020, que apresenta dois números e dispõe sobre a produção de efeitos deste diploma, começa por dizer que, sem prejuízo do disposto no número seguinte, o diploma produz os seus efeitos à data da produção de efeitos do DL nº 10-A/2020, de 13 de Março, o que vem a corresponder ao dia 12 de Março, data aprovação daquele decreto-lei – é este o sentido do nº 1 deste art. 6º.

Já o nº 2 do art. 6º da Lei nº 4-A/2020, que dispõe somente sobre o art. 7º da Lei nº 1-A/2020 e os seus efeitos, estabelece que este art. 7º, na redacção ora introduzida pela Lei nº 4-A/2020, produz efeitos a 9 de Março, com excepção do que ali se refere a processos urgentes e com excepção do disposto no nº 12 desse art. 7º, cujos efeitos apenas se produzem na data em que a Lei nº 4-A/2020 entrar em vigor.

A estipulação de que a nova redacção do art. 7º da Lei nº 1-A/2020, quanto a processos urgentes, não produz efeitos a 9 de Março, mas somente depois de entrada em vigor do diploma que deu nova redacção àquele art. 7º resulta do facto de, à luz da vigência (temporária) da formulação inicial da Lei nº 1-A/2020, os próprios processos urgentes terem ficado submetidos ao regime das férias judiciais, não havendo, pois, tramitação e estando suspensos os prazos. Aliás, mau seria que, agora, afastando tal solução, o legislador não acautelasse as partes que, por terem confiado na solução legal vigente durante cerca de três semanas, não praticaram actos em processos urgentes.

Ou seja, nos processos urgentes, todos os prazos que se suspenderem à luz da versão inicial do art. 7º da Lei nº 1-A/2020 – e suspenderam desde o dia 9 de Março –, retomarão a sua contagem no dia seguinte ao da publicação da Lei 4-A/2020.

O mesmo se diga acerca do nº 12 do art. 7º do Lei 1-A/2020, cuja redacção, sendo, aliás, inovadora e determinando a não suspensão de prazos na matéria ali tratada[22], não poderia prejudicar todos quanto, durante três semanas, confiaram na solução vigente, da qual resultava a suspensão de prazos.

É também nesta linha de resolução de problemas decorrentes da sucessão de regimes diferentes quanto à suspensão de prazos que se enquadra o nº 3 do art. 7º-A da Lei nº 1-A/2020, ao dizer que os prazos procedimentais no âmbito da Código dos Contratos Públicos que estiveram suspensos, e agora deixam de estar, retomam a sua contagem assim que entrar em vigor a Lei nº 4-A/2020.  

Por fim, o art. 7º desta Lei nº 4-A/2020 estabelece que a mesma entrará em vigor no dia seguinte ao da sua publicação, ou seja, está em vigor desde o dia 7 de Abril de 2020.

 
  1. Síntese conclusiva

Tendo presente que vivemos uma situação verdadeiramente excepcional e inimaginável há bem pouco tempo, com um elevadíssimo risco de contágio, e reiterando que são variáveis inconciliáveis o normal funcionamento dos tribunais e o “recolhimento domiciliário” e a restrição de “contactos sociais”, não temos como não aceitar a opção de reduzir a actividade processual (nos tribunais e noutras jurisdições) ao mínimo indispensável, isto é, aos casos em que certas questões ou matérias não podem deixar de ser apreciadas, com a tomada de medidas urgentes.

Todos temos a noção de que uma opção desta natureza implicará custos elevadíssimos para os cidadãos e para as empresas, os quais, não há como negá-lo, vêem o seu direito de acesso aos tribunais condicionado e restringido, custos esses que serão, por certo, patrimoniais, mas também de outra natureza, não menos relevante, tantas e tantas vezes. E também devemos ter presente que, num quadro assim, a advocacia é uma das actividades mais afectadas, não só porque a capacidade de trabalho dos advogados está largamente reduzida (até pelo encerramento de grande parte dos escritórios), mas também porque isso se repercute directamente nos respectivos rendimentos, ou não houvesse um nexo directo entre a actividade do foro e os honorários da advocacia.

Seja como for, estas consequências têm de ser suportadas por todos, como condição de vencermos o grande desafio que enfrentamos neste momento singular: a defesa da vida e da saúde dos nossos concidadãos.

O que é aconselhável e se espera é que, neste momento tão delicado, os profissionais do foro sejam capazes de interpretar e aplicar esta Lei da forma mais equilibrada e consensual possível. Seria, de resto, lastimável que, apesar de tudo, ainda houvesse disposição para interpretações ou atitudes extremadas, radicais, fundamentalistas, arbitrárias ou egoístas, enfim, comportamentos que não são próprios de profissionais do foro com sentido de responsabilidade e com sentido de missão.
 
 
[1] Estado de emergência cuja declaração foi renovada pelo Decreto do Presidente da República nº 17-A/2020, de 2 de Abril.
[2] Isto é tão mais significativo quanto, na véspera, o mesmo Conselho Superior tinha recusado adoptar tal medida.
[3] Já para não referir a potencial inconstitucionalidade orgânica do DL nº 10-A/2020, de 13 de Março, na medida em que o Governo legislou sobre matéria da competência relativa da Assembleia da República, nos termos do art. 165º, nº 1, al. b) da Constituição da República.
[4] Preceito similar ao art. 22º do Decreto nº 2-A/2020, de 20 de Março, que procedeu à execução do estado de emergência inicialmente declarado pelo Presidente da República em 18 de Março.
[5] Doravante, será usada simplesmente a expressão Lei para referir a Lei nº 1-A/2020, na redacção introduzida pelo Lei nº 4-A/2020, salvo quando houver necessidade de diferenciar os dois diplomas.
[6] Como estabelece o nº 1 do art. 7º-A, a suspensão de prazos prevista no nº 1 do art. 7º não se aplica ao contencioso pré-contratual previsto no CPTA.
[7] Apesar da sua formulação abrangente (“quaisquer actos” são, naturalmente, “todos” os actos), este preceito cuida de salientar que não se realizam vendas, não há lugar ao concurso de credores, não há entregas judiciais de imóveis, nem diligências de penhora e seus actos preparatórios.  
[8]  O nº 2 do art. 7º-A estabelece que a suspensão dos prazos prevista na al. c) do nº 9 do art. 7º não é aplicável aos prazos relativos a procedimentos de contratação pública, designadamente os constantes do Código dos Contratos Públicos.
[9] Note-se que o nº 12 do art. 7º é expresso ao afastar a suspensão de prazos relativos à prática de actos realizados exclusivamente por via electrónica no âmbito das atribuições do Instituto Nacional da Propriedade Industrial, IP.
[10] A formulação desta al. a) do nº 7º é um tanto equívoca. Os actos processuais são escritos ou são orais. Os actos orais podem ser praticados presencialmente ou por meios de comunicação à distância. O preceito só pode estar a referir-se aos actos orais, pois não faz sentido colocar a questão (dos meios de comunicação à distância) acerca de actos escritos.
[11] Quem diz o juiz, diz a entidade titular do processo ou perante a qual este corre termos.
[12] Se podem sê-lo em períodos de férias ou quando os tribunais estão encerrados, é evidente que também o podem ser num quadro de “mera” suspensão de prazos.
[13] Assim será, por exemplo, sempre que a tal acto haja de seguir-se um acto da contraparte, cujo prazo está suspenso.
[14] O que se diz para os juízes vale, adaptadamente, para os magistrados do Ministério Público, na condução, por exemplo, dos inquéritos e quanto aos actos que hajam de praticar por escrito. Coisa diferente ocorrerá quando o Ministério Público intervém em processo numa situação “similar” à das partes, caso em que a suspensão de prazos lhe aproveita igualmente.
[15] Neste sentido, cf. a orientação nº 06/CD/2020, de 23/3/2020, do Instituto dos Registos e Notariado.
[16] O dito art. 53º, nº 1, que versa sobre turnos, estabelece que o serviço urgente a que alude o nº 2 do art. 36º da Lei nº 62/2013, de 23 de Agosto (“Lei de organização e funcionamentos dos tribunais judiciais”), se refere ao previsto no Código de Processo Penal, na lei de cooperação judiciária internacional em matéria penal, na lei de saúde mental, na lei de protecção de crianças e jovens em perigo e no regime jurídico de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território nacional, que deva ser executado aos sábados, nos feriados que recaiam em segunda-feira e no segundo dia feriado, em caso de feriados consecutivos.
[17] Esta al. c) do nº 8 do art. 7º do Lei corresponde ao que, na versão inicial da Lei, se encontrava no nº 9 do mesmo art. 7º, sob a alusão genérica de “direitos fundamentais”.
[18] Seria, de resto, intolerável que algum progenitor pudesse aproveitar-se da situação epidemiológica para perverter tudo quanto deve ser observado em sede de responsabilidades parentais. Veja-se que a al. j) do nº 1 do art. 5º Decreto nº 2-B/2020, de 2 de Abril, diploma que regulamenta a prorrogação do estado de emergência decretada em 2 de Abril, ressalva do dever geral de “recolhimento domiciliário” as deslocações por razões familiares imperativas, indicando como aí enquadrável o cumprimento de partilha de responsabilidades parentais, conforme determinada por acordo dos progenitores ou por decisão judicial (já assim sucedia com o, agora revogado, Decreto nº 2-A/2020, de 20 de Março, por referência à declaração do estado de emergência de 18 de Março).   
[19] Os termos tão abrangentes e incisivos em que os nºs 3 e 4 do art. 7º da Lei se expressam parecem apontar para uma aplicação irrestrita da suspensão aí definida, o que equivale a deixar fora de equação o disposto no art. 321º do CC, que tem índole casuística e, aliás, respeita somente à prescrição.
[20] Será de ressalvar o caso do procedimento especial de despejo, na medida em que o nº 5 do art. 15º-S do NRAU (Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro) tem uma formulação que, se não lhe confere natureza especial, o submete, pelo menos, a um regime similar, com o que isso significa em termos de não suspensão de prazos.
[21] É patente que o legislador tinha formas mais simples de tratar esta questão.
[22] Actos realizados exclusivamente por via electrónica no âmbito das atribuições do Instituto Nacional da Propriedade Industrial, IP.

Paulo Pimenta 
 
* Advogado, Professor Universitário, Presidente do Conselho Regional do Porto da Ordem dos Advogados