Miguel Pestana de Vasconcelos

Publicado: 31 de julho de 2020

Análise Legislativa
CÍVEL


O regime da moratória dos contratos bancários decorrente do Dec.-Lei n.º 10-J/2020, com as alterações decorrentes da Lei n.º 8/2020, de 10/4, do Dec.-Lei n.º 26/2020, de 16/6, e da Lei n.º 27-A/2020, de 24/7



1. Introdução

I. A pandemia constitui um facto de todo imprevisto e, pelo menos até ao início do ano, imprevisível, que exigiu, por razões de saúde pública, a tomada de um conjunto fortes medidas restritivas durante o período de estado de emergência (declarado através do Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março, regulamentado pelo Decreto n.º 2 -A/2020, de 20 de março), com sérias consequências económicas. Não só sobre as famílias, mas também sobre as empresas.[1]
O legislador, seguindo exemplo do que tem sucedido por toda a Europa, publicou um amplo conjunto de diplomas integrados numa, assim denominada, legislação de emergência, com vista a minorar os seus efeitos sobre múltiplos aspetos da vida económico e social.
Uma delas, de grande relevo prático, consistiu na criação de um regime específico de moratória (art. 4.º do Dec.-Lei n.º 10-J/2020, de 26/3), que se aplica essencialmente aos contratos de crédito bancários com vigência até 30 de setembro de 2020 (art. 12.º do Dec.-Lei n.º 10-J/2020, de 26 de março). Tem-se em vista proteger, por um lado, as famílias, em matéria de crédito à habitação própria permanente, e, por outro, as empresas, que se debatem com sérios problemas de liquidez, decorrentes da redução, e, em certos casos, mesmo cessação temporária, da sua atividade económica[2].
Este diploma[3] veio depois a ser regulamentado, quanto aos deveres de informação a observar pelas instituições no âmbito das operações abrangidas pelas medidas aí previstas, pelo Aviso do Banco de Portugal n.º 2/2020, de 28/4. A medida, acrescente-se, tem já um grande relevo: recorrendo aos números do Banco de Portugal[4], 36% das empresas já beneficiou ou planeia beneficiar da moratória.

II. Consiste regime muito complexo, mas gera diversas dúvidas - o que em grande parte, mas não só, se explica pela urgência com que foi elaborado -, quanto a seu âmbito de aplicação, em termos objetivos, ou seja, quanto aos créditos, de articulação com os regimes gerais de direito bancário, no âmbito da insolvência e recuperação, assim como no da responsabilidade bancária. Todos eles serão aqui abordados.

III. Referimo-nos à moratória pública. Não há, claro, qualquer obstáculo a que as partes acordem moratórias em termos diferentes dos aqui previstos ou para operações que não preencham os requisitos deste diploma. São denominadas moratórias privadas[5] e incluem-se, também, no âmbito de aplicação do Aviso do Banco de Portugal n.º 2/2020, de 28/4 e das orientações da Autoridade Bancária Europeia - ABE[6] (que abrangem ambas as modalidades).[7]

IV. O artigo está estruturado da seguinte forma:  começaremos pela delimitação do âmbito de aplicação, tanto em termos subjetivos, relativos aos beneficiários e as suas contrapartes, como objetivos, os contratos que as ligam, para depois nos deteremos no regime em si. Na medida do possível, iremos seguir a estrutura do diploma.
De seguida, faremos incidir a análise sobre o quadro geral em que se podem resolver um conjunto de problemas relativos a contratos de crédito celebrados com instituições de crédito, sociedades financeiras ou outros entes do sistema financeiro, para aqueles casos em que o regime da moratória em si, ou não seja suficiente, ou as partes não tenham recorrido a ela, ou não possam mesmo fazê-lo.


2. As alterações. Conspecto geral

I. Este regime foi já objeto de três alterações (duas no espaço de um mês), decorrentes da Lei n.º 8/2020, de 10/4, pelo Dec.-Lei n.º 26/2020, de 16/6, e pela Lei n.º 27-A/2020, de 24/7 - muitas delas foram sugeridas logo na primeira versão deste texto, que foi publicado na revista de Direito comercial.
Destacávamos algumas delas que irão ser depois tratadas ao longo do texto.

II. Em primeiro lugar, a extensão da sua vigência até 31 de março de 2020.
Em segundo lugar, o alargamento do âmbito subjetivo quanto às pessoas singulares, que podem não ter residência em Portugal, com a inclusão entre os beneficiários de pessoas em cujo agregado familiar se integre um membro que se encontre num conjunto de situações de especial dificuldade previstas nas diversas alíneas do art. 2.º, n.º 2.
Situações essas, ampliadas, diga-se. De facto, de entre outros aspeto, passou a incluir-se um novo fator de elegibilidade associado à quebra comprovada de rendimento global do agregado de pelo menos 20%, com vista a tutelar os beneficiários de crédito que não se enquadrem nas outras situações previstas na lei [art. 2.º, n.º 2, al. e), introduzida pelo Dec.-Lei n.º 26/2020, de 16/6].
Em terceiro lugar o alargamento do âmbito objetivo, para as pessoas singulares com a inclusão de outros contratos de crédito que abarcam agora todo o crédito hipotecário e algum crédito ao consumo para educação.
Em quarto lugar, a inclusão no seu quadro de contratos que não são de crédito, como sucede, com o denominado leasing operacional, de especial relevo para algumas empresas.
Em quinto lugar, medida que reputamos da maior importância (e foi introduzida pela Lei n.º 27-A/2020, de 24/7), permitir-se agora o acesso à moratória de beneficiários - empresas, IPSS e pessoas singulares - que tenham a sua situação tributária e à segurança social não inteiramente regularizada, nomeadamente que tenham dívidas até os 5.000 euros. É fundamental, porque se essas pessoas ficassem privadas do recurso à moratória, estariam logo condenadas à insolvência.


3. O âmbito subjetivo

3.1. As entidades beneficiárias

I. A disciplina aplica-se a empresas, instituições particulares de solidariedade social (IPSS) e certas pessoas singulares (as “entidades beneficiárias” - art. 2.º, n.º 5).
Quanto às primeiras, exige-se que tenham sede e exerçam a sua atividade económica em Portugal [art. 2.º, n.º 1, al. a)] e sejam classificadas como microempresas, pequenas ou médias empresas de acordo com Recomendação 2003/361/CE da Comissão Europeia, de 6 de maio de 2003 [art. 2.º, n.º 1, al. b)]. Apesar desta aparente limitação, a lei estende no n.º 3 o universo das empresas abrangidas, excluindo só as do setor financeiro, que data de publicação do Dec.-Lei n.º 26/2020, de 16/6, preencham as condições referidas nas alíneas a), c) e d) do n.º 1 do art. 2.º[8]

II. As pessoas singulares, tenham ou não residência em Portugal[9], estão abrangidas, se o contrato for de crédito nos termos agora definidos no art. 3.º, n.º 2, com a redação que lhe foi dada pelo Dec.-Lei n.º 26/2020, de 16/6 (e que alargou o seu âmbito face à versão inicial do diploma) e preencham as condições referidas nas alíneas c) e d) do n.º 1.
Para tal é ainda necessário que elas estejam ou (por força do alargamento do âmbito de aplicação do regime decorrente do pelo Dec.-Lei n.º 26/2020, de 16/6) façam parte de um agregado familiar em que, pelo menos, um dos seus membros esteja, numa das seguintes situações: situação de isolamento profilático ou de doença, conforme estabelecido no Dec-Lei n.º 10-A/2020, de 13/3, na sua redação atual [art. 2.º, n.º 2, al. a)]; prestação de assistência a filhos ou netos, conforme estabelecido no Dec.-Lei n.º 10-A/2020, de 13/3, na sua redação atual [art. 2.º, n.º 2, al. b)]; redução do período normal de trabalho ou suspensão do contrato de trabalho, em virtude de crise empresarial art. 2.º, n.º 2, al. c); situação de desemprego registado no Instituto do Emprego e Formação Profissional, I. P.; art. 2.º, n.º 2, al. d); trabalhadores elegíveis para o apoio extraordinário à redução da atividade económica de trabalhador independente, nos termos do artigo 26.º do Dec.-Lei n.º 10-A/2020, de 13/3, na sua redação atual [art. 2.º, n.º 2, al. e)]; trabalhadores de entidades cujo estabelecimento ou atividade tenha sido objeto de encerramento determinado durante o período de estado de emergência ou durante a situação de calamidade por imposição legal ou administrativa [art. 2.º, n.º 2, al. f)]; ou quebra temporária de rendimentos de, pelo menos, 20% do rendimento global do respetivo agregado familiar em consequência da pandemia da doença COVID -19 [art. 2.º, n.º 2, al. g)][10].

III.  O regime é depois alargado aos empresários em nome individual, às instituições particulares de solidariedade social, associações sem fins lucrativos e as demais entidades da economia social (exceto aquelas que reúnam os requisitos previstos no artigo 136.º do Código das Associações Mutualistas, aprovado em anexo ao Dec.-Lei n.º 59/2018, de 2 de agosto), que, à data de publicação do Dec.-Lei n.º 26/2020, de 16/6, preencham as condições supra referidas nas alíneas c) e d) do n.º 1 e tenham domicílio ou sede em Portugal [art. 2.º, n.º 2, al. b)].


3.2. As condições

I. A lei impõe um conjunto de condições de acesso ao regime da moratória que comuns a todas as entidades beneficiárias [as constantes das als. c) e d) do art. 2.º, n.º 1, art. 2.º, n.º 2, als. a) e b)].
Em primeiro lugar, é necessário que não estejam a 18 de março de 2020 em mora ou incumprimento de prestações pecuniárias há mais de 90 dias junto da instituição concedentes de crédito[11] (mas não junto de outros entes, que não estes), ou, estando, não cumpram o critério de materialidade previsto no Aviso do Banco de Portugal n.º 2/2019 e no Regulamento (UE) 2018/1845 do Banco Central Europeu, de 21 de novembro de 2018 [art. 2.º, n.º 1, al. c)].
O critério utilizado para a caracterização dos créditos é o mesmo que se recorre para a qualificação dos créditos como créditos não produtivos, ou seja, emergentes de non performing loans (NPL), critério esse fixado por razões de natureza regulatória.

II. Deste modo, são requisitos cumulativos o limite temporal dos 90 dias de incumprimento e do caráter significativo da obrigação, sendo este delimitado, por sua vez, por dois limiares quantitativos. Temos assim uma parte absoluta, 100 € ou 500 € conforme se trate de carteira de retalho ou não; e outra variável, que traduz a “relação entre o montante da obrigação de crédito vencida e o montante total de todas as posições em risco patrimoniais sobre esse devedor da instituição de crédito, da respetiva empresa-mãe ou de qualquer uma das suas filiais (excluindo as posições em risco sobre ações), que é igual a 1%. (art. 3.º, n.º 2 do Regulamento (UE) 2018/1845 do Banco Central Europeu, de 21 de novembro de 2018[12] e art. 4.º e 5.º do Aviso do Banco de Portugal n.º 2/2019).
A lei limitava os créditos em incumprimento àqueles de que fossem titulares as instituições em geral. Por isso, qualquer crédito face a qualquer das instituições, desde que revestisse as características apontadas, impediria o recurso a esta figura. Assim, p. ex., se A estivesse em dívida face ao banco A, mas não perante o banco B, parece que não poderia recorrer à moratória face a ambos os bancos e não só ao primeiro.
Defendemos na primeira edição deste texto[13], que, apesar do aparente alcance da letra da lei, essa conclusão não era correta. Com efeito, o regime deveria ser articulado com aquele dos créditos em incumprimento para os quais a lei remete. Ora, só estamos perante créditos em incumprimento se eles integrarem o património dessa “instituição de crédito, da respetiva empresa-mãe ou de qualquer uma das suas filiais” (art. 3.º do Regulamento (UE) 2018/1845 do Banco Central Europeu, de 21 de novembro de 2018 e Aviso do Banco de Portugal n.º 2/2019). 
A lei veio a ser alterada justamente pelo Dec.-Lei n.º 26/2020 para tornar claro aquilo que havíamos defendido - no que fez bem, porque uma matéria desta natureza exige uma elevada segurança jurídica. Note-se que ao limitar ao incumprimento perante a instituição, a lei aparentemente recorre - agora - a um critério mais restritivo do que o que decorreria do regime dos créditos em incumprimento.

III. Constitui requisito adicional as entidades beneficiárias não se encontrarem (18 de março de 2020) em “situação de insolvência, ou suspensão ou cessão de pagamentos” ou “estejam já em execução por qualquer uma das instituições” [art. 2.º, n.º 1, al. c)]. O último caso não gera dificuldades: tendo-se iniciado a execução, não está abrangido. Os outros dois não são óbvios.
A cessação[14] de pagamentos é um dos factos índices da insolvência (“suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas” - art. 20.º, n.º 1 al. a) CIRE), mas não significa que o sujeito esteja efetivamente insolvente.
A lei não diz se estamos perante um caso de cessação ou suspensão da generalidade dos pagamentos ou se de todos os pagamentos. Cremos que a interpretação deste requisito deve fazer-se em articulação com o caso mais próximo que é, como se disse, o art. 20.º, n.º 1, al. a) CIRE.
Basta que o devedor estivesse em incumprimento de maior parte das suas obrigações vencidas, em particular as que pelo seu relevo demonstrem a sua incapacidade de cumprir.
Nessa medida, é um requisito redundante relativamente à insolvência em si, uma vez que esta significa, numa das suas modalidades, que o sujeito está impossibilitado de cumprir as obrigações vencidas (que não precisam de ser todas). Só em casos limitados uma situação com estas caraterísticas não consistirá efetivamente numa situação de insolvência, na sua primeira modalidade.

IV. Resta saber se a lei quer abranger na insolvência, também, a sua segunda modalidade, aplicável às pessoas coletivas e os patrimónios autónomos por cujas dívidas nenhuma pessoa singular responda pessoal e ilimitadamente, por forma direta ou indireta, que consiste, como se sabe, na situação de manifesto excesso do passivo sobre o ativo, apurados de acordo com as normas contabilísticas aplicáveis (art. 3.º, n.º 2 CIRE). Numa primeira leitura, ambas estariam abrangidas.
Não cremos, porém, que assim seja.
O critério do excesso manifesto é inseguro e difícil de concretizar em termos gerais. Depende sempre de um conjunto de outros fatores relativos, p. ex., ao setor de atividade, à evolução da situação financeira, à causa do desequilíbrio. A isto acresce a faculdade que o devedor tem de demostrar de acordo com os critérios do art. 3.º, n.º 3. als. a) a c) CIRE, que o seu ativo é superior ao ativo.
Dado o caráter da medida, a aferição desta situação de insolvência é impossível num curto período de tempo. Por isso, se a empresa continua a cumprir a generalidade das suas obrigações, ela deve poder aceder à moratória, independentemente da relação ativo/passivo.

V. A lei exigia, por fim, cumulativamente que os beneficiários tivessem a situação regularizada junto da Autoridade Tributária e Aduaneira e da Segurança Social, na aceção, respetivamente, do Código de Procedimento e de Processo Tributário e do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, não relevando até ao dia 30 de abril de 2020, para este efeito, as dívidas constituídas no mês de março de 2020 [art. 2.º, n.º 1, al. d)].
Criticámos esta solução[15]. Na verdade, o Estado não está a conceder um benefício face a si próprio, mas a criar um regime específico do qual decorrem alterações a contratos em vigor perante entes financeiros, como forma a de reação a um facto imprevisível e de força maior que conduziu a uma fortíssima dificuldade de cumprimento das obrigações vencidas ou de acesso a linhas de crédito. Com vista, diga-se, a evitar já uma onda de insolvências generalizadas.
Se assim é, então bastava a um sujeito, seja empresa seja um simples consumidor, ter uma dívida tributária para lhe ver negado o acesso à moratória, conduzindo-o, também com enorme probabilidade, à insolvência, até pelo efeito de cadeia dos incumprimentos. Frustrando dessa forma por completa finalidade da medida e levando então, de forma segura, ao incumprimento definitivo das referidas dívidas tributárias.

VI. O legislador, tarde - mas mais vale tarde do que nunca -, veio flexibilizar este regime através da Lei n.º 27-A/2020, de 24/7 (art. 10.º) nos seguintes termos [art. 2.º, n.º 1, al. d), na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 27-A/2020, de 24/7]: para poderem recorrer à moratória, o beneficiários necessitam de ter perante a Autoridade Tributária e Aduaneira e a segurança social a situação regularizada na aceção, respetivamente, do Código de Procedimento e de Processo Tributário e do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, não relevando até ao dia 30 de abril de 2020, para este efeito, as dívidas constituídas no mês de março de 2020 termos [art. 2.º, n.º 1, al. d), i)].
Porém, agora, em alternativa, quando tal não suceda, passam a ter acesso à moratória se se verificar um dos seguintes casos: terem uma situação irregular cuja dívida seja um montante inferior a 5000 (euro) [art. 2.º, n.º 1, al. d), ii)]; ou tenham em curso processo negocial de regularização do incumprimento [art. 2.º, n.º 1, al. d), iii)]; ou, ainda, por fim realizem pedido de regularização da situação até 30 de setembro de 2020 [art. 2.º, n.º 1, al. d), iv)].


3.3. Os concedentes de crédito

I. Em termos subjetivos, as contrapartes dos beneficiários têm necessariamente que ser instituições de crédito, sociedades financeiras de crédito, sociedades de investimento, sociedades de locação financeira, sociedades de factoring e sociedades de garantia mútua, bem como por sucursais de instituições de crédito e de instituições financeiras a operar em Portugal (art. 3.º, n.º 1).
O que bem se compreende, porque, como veremos de seguida, o que se pretende regular são determinados contratos - as operações de crédito - entre os beneficiários e, essencialmente, a banca. As relações, mesmo de crédito, ente outros sujeitos, como, p. ex., o crédito comercial traduzido na concessão de um prazo para pagamento, muito comum na prática mercantil, estão excluídos.


4. O âmbito objetivo

I. O diploma aplica-se a determinadas “operações de crédito” celebradas entres os sujeitos supra referidos (art. 3.º, n.º 1)[16], que não define. Resulta do disposto no número seguinte que se trata de crédito em sentido muito amplo, em sentido económico, abrangendo, mútuos, aberturas de crédito, antecipações bancárias, desconto, locação financeira, cessão financeira (factoring) e uma panóplia de outros contratos mistos que conjuguem elementos desses negócios.
Não se trata necessariamente de um único contrato. Estão igualmente abrangidos os conjuntos contratuais, com configurações diferentes ente si, comuns nas operações de financiamento mais complexas, pelos quais se vise esse resultado.
Incluem-se também formas indiretas de concessão de crédito, como a prestação de garantias por parte de uma instituição de crédito, ou outra, para o seu beneficiário obter um financiamento de uma outra entidade.

II. A Lei n.º 27-A/2020, de 24/7 (art. 10.º), introduziu um aditamento ao art. 3.º, n.º 1, passando a incluir expressamente os “contratos de locação financeira ou operacional”.
A primeira menção é tão surpreendente como desnecessária. A locação financeira é um dos principais contratos de crédito, pelo que estava evidentemente incluída na noção amplíssima de operação de crédito a que norma recorre.
O mesmo não se passa no segundo caso. A locação operacional não é em si um contrato de crédito, mas na generalidade dos casos um contrato misto de aluguer e prestação de serviços (em particular, a substituição dos materiais desgastados, revisão dos equipamentos, e seu upgrade, muito relevante quando se tratar de software) a que as empresas recorrem para evitar terem de adquirir o equipamento necessário ao desenvolvimento da sua atividade[17]. Por isso, a alteração é, neste ponto, relevante, indo a lei para além das operações de crédito em si.

III. As pessoas singulares só beneficiavam do regime da moratória quando o contrato fosse de crédito para habitação própria permanente [art. 2.º, n.º 2, al. a) da versão inicial do diploma]. O Dec.-Lei n.º 26/2020, de 16/6, alargou consideravelmente os contratos que, quando celebrados por pessoas singulares se incluem no âmbito de aplicação diploma. Assim, passou a abranger todos os contratos de crédito hipotecário, independentemente do fim, e a locação financeira de imóveis destinados à habitação [art. 3.º, n.º 2, al. a)]. Por outro lado, inclui-se o crédito aos consumidores (nos termos do Dec.-Lei n.º 133/2009, de 2/6), para educação, incluindo para formação académica e profissional [art. 3.º, n.º 2, al. b)].

IV. Excluídos estão determinados tipos de créditos, que a lei enumera no art. 3.º, n.º 2: crédito ou financiamento para aquisição de valores mobiliários ou aquisição de posições noutros instrumentos financeiros, quer sejam garantidas ou não por esses instrumentos [art. 3.º, n.º 3, al. a)]; crédito concedido a beneficiários de regimes, subvenções ou benefícios, designadamente fiscais, para fixação de sede ou residência em Portugal, incluindo para atividade de investimento, com exceção dos cidadãos abrangidos pelo Programa Regressar [art. 3.º, n.º 3, al. b)]; crédito concedido a empresas para utilização individual através de cartões de crédito dos membros dos órgãos de administração, de fiscalização, trabalhadores ou demais colaboradores [art. 3.º, n.º 3, al. c)].


5. O conteúdo da moratória (art. 4.º)

I. A moratória traduz-se em três medidas, só uma delas (a prorrogação do prazo),  podendo ser (mas já não, se o beneficiário anda não estiver em incumprimento) uma moratória, em sentido estrito[18].[19]
Assim, ela inclui a proibição de revogação (5.1.), a extensão do prazo (5.2.) e a suspensão das obrigações de capital e de juros (5.3.).[20]

Vejamos cada uma delas.


5.1. A proibição de revogação

I. Determina-se a proibição de revogação, total ou parcial, de linhas de crédito contratadas e empréstimos concedidos, nos montantes contratados, durante o período em que vigorar a medida.
Estamos essencialmente perante aberturas de créditos e empréstimos. As primeiras podem assumir formas diferentes, mas que tem em comum o direito do creditado de utilizar os montantes do plafond, em regra com uma cláusula de conta corrente, que permite repor o valor da quanta disponibilizada com as restituições que sejam realizadas.
Os contratos de abertura de crédito[21] podem, como se sabe, ser celebrados por tempo determinado ou por tempo indeterminado[22]. No primeiro caso, estão em regra previstas cláusulas de prorrogação automática; no segundo, podem ser feitos cessar a qualquer momento através de denúncia, com observância de pré-aviso.
Qualquer dos casos está abrangido por esta disposição: nem o saldo pode ser reduzido, nem os contratos (celebrados por tempo indeterminado) poderão ser denunciados ou feitos cessar por oposição à prorrogação.
Se o contrato for celebrado a termo sem uma cláusula de prorrogação automática, aplica-se a disposição seguinte e o prazo estende-se durante o período de tempo de vigência da medida.
Uma das modalidades de abertura de crédito consiste no direito movimentar o saldo quando este tenha valor negativo até ao valor acordado. Para isso, é necessário que tenha havido acordo nesse sentido. Não se confunde com simples permissão, a avaliar caso a caso pelo banco, de utilização do saldo. Mesmo que tenha sido concedida no passado, o banco não está, em regra, obrigado a concedê-la no futuro. Tendo em conta, porém, a relação contratual bancária duradoura entre as partes haverá que apurar se o caso concreto não preencherá os requisitos, apertados, do abuso do direito.

II. A lei refere-se depois a empréstimos. Estes contratos em regra tem um prazo que será a favor de ambas as partes, como presume o art. 1147.º, ou a favor do devedor, que pode pagar antes do decurso do prazo, embora eventualmente com penalizações.
A lei parece referir-se a uma das modalidades de concessão de crédito: aquela em que o prazo é a favor do credor que pode exigir a restituição da quantia, no todo ou em parte, mediante a interpelação do outro contraente. Não sendo tecnicamente mútuos, são contratos próximos[23]. Neste caso, o credor não pode exercer essa faculdade nesse período de tempo.

III. Pode ainda tratar-se de empréstimos ou aberturas de crédito, relativamente aos quais se tenha verificado um facto negocialmente previsto que permita o exercido antecipado do direito à restituição da quantia correspondente ao capital, por alteração da sua situação financeira ou por incumprimento desse contrato, ou de um outro contrato celebrado entre o devedor e esse credor ou entre o devedor e um terceiro (cláusulas de cross default)[24].
O mesmo sucede para os casos em que o devedor não tenha cumprido o dever de prestar garantias adicionais com fundamento na desvalorização, que pode ser muito acentuada, do valor da garantia inicial, nomeadamente quando exista uma relação de proporcionalidade entre a obrigação garantida e o valor desta (que é típico na antecipação bancária[25]), sempre que não estejamos face aos casos previstos no art. 4.º, n.º 4 (ver, infra, n.º 4.4.).


5.2. A extensão do prazo dos contratos de crédito

I. A lei estabelece a extensão do prazo dos contratos de crédito (no sentido amplo que começamos por apontar) cujo pagamento de capital se vença decorrido o prazo negocial por um período igual ao da vigência da medida (e não somente até ao fim da vigência da medida), mantendo-se os seus termos.
O contrato é o mesmo, o prazo é que se alarga. Assim, os juros correspondentes à disponibilização do prazo adicional serão devidos. Contudo, se se vencerem dentro do período em vigor devem capitalizados à taxa em vigor a essa data [art. 4.º, n.º 3, al. c)].
As garantias de qualquer natureza, acessórias ou autónomas, pessoais, reais ou decorrentes do recurso à titularidade do direito como garantia, prestadas pelo devedor ou por terceiro (nomeadamente, empresas de seguro), qualquer que seja o seu objeto, estendem-se igualmente pelo referido período. A solução é a mesma para os contratos que cessassem no espaço de tempo da medida.


5.3. A suspensão de pagamentos

I. A última medida é diz respeito à suspensão de um conjunto de pagamentos de obrigações diversas emergentes dos contratos de crédito durante o período de vigência da medida. Com efeito, naqueles contratos que prevejam o pagamento do capital, ou outras prestações pecuniárias, em diversas prestações com vencimento escalonado ao longo tempo que durar a medida, ou a prestações compósitas, constituídas por uma parte de capital e outra de juros, comissões e outros encargos, o seu pagamento suspende-se até à cessação da medida.
Estas últimas são prestações financeiras, como as rendas da locação financeira (e só a esta modalidade de rendas - rendas financeiras - se pode referir a lei, e não a outras, como é claro), ou as prestações dos mútuos decorrentes de créditos à habitação, em regra com vencimentos mensais.

II. Haverá que distinguir a parte da restituição do capital e aquela correspondente aos juros. Em qualquer hipótese, o prazo contratual estende-se por um período idêntico ao da suspensão. O que implica, quanto às restituições de capital, que elas não têm que ser realizadas no período de duração da medida, porque o serão mais tarde.
No que toca aos juros, eles não deixam de se constituir calculados pela taxa acordada sobre o montante do capital em dívida (que podem variar, sempre que tomem por base um indexante), mas não são pagos neste espaço temporal. Com efeito, o seu valor, tal como sucede quanto à medida anterior, será capitalizado se se vencerem durante esse período à taxa em vigor [art. 4.º, n.º 3, al. c)].
Regime idêntico é o das comissões, nomeadamente de gestão do empréstimo. Não são devidas, mas podem ser acrescentadas ao capital, uma vez que correspondem a um serviço prestado neste período de tempo. Como referimos no número anterior, o contrato mantém-se com as alterações referidas.
Dada a sua ligação ao crédito, que tutelam, o prazo das garantias acompanha o desses direitos: elas alargam-se temporalmente nos termos referidos, quer sejam prestadas pelo devedor, quer por terceiros, qualquer que seja a sua natureza. Diga-se, por último, que os beneficiários podem solicitar que somente o pagamento do capital, ou de parte deste, seja suspenso (art. 4.º, n.º 2).


5.4. Incumprimento contratual, vencimento antecipado e ineficácia ou cessação das garantias

I. Tanto relativamente aos casos de extensão do prazo como da suspensão de pagamentos, a lei procura afastar qualquer possibilidade da produção de efeitos que possam obstar a essas prorrogações e suspensões, algumas delas sendo um simples reforço do anteriormente estatuído.

II. Com essa finalidade, dispõe-se expressamente que a extensão dos prazos por força da lei não dá origem a um incumprimento contratual [art. 4.º, n.º 3, al. b)]. Os casos previstos seriam aqueles, raros, em que as cláusulas contratuais equiparem um evento desta natureza ao incumprimento do contrato. Fora destas situações muito específicas, a existência de lei sobre a matéria afastaria qualquer responsabilidade contratual
O mesmo raciocínio vale para as cláusulas de vencimento antecipado, ou seja, aquelas em se atribua este efeito a um evento desta natureza, isto é, a extensão, por força da lei dos prazos de pagamento de capital, rendas, juros, comissões e demais encargos [art. 4.º, n.º 3, al. b)].

III. Estando as garantias ligadas, tanto à concessão de crédito, como à manutenção do crédito concedido, a lei, como se viu, estende o seu prazo de forma simétrica ao do contrato de crédito.
Pode dar-se o caso, porém, de existirem cláusulas contratuais que façam cessar as garantias quando prestadas pelo devedor ou por terceiro, qualquer que seja a sua natureza, a este tipo de circunstâncias, isto é, a uma intervenção legislativa que estenda os prazos contratuais ou, até, em geral, a um evento desta natureza definido de forma mais ampla nos contratos mais complexos. Daí, a lei ter impedido qualquer ineficácia ou cessação das garantias nesta hipótese, especificando algumas modalidades como os seguros, as fianças ou avales [art. 4.º, n.º 3, al. d)].

IV. Caso diferente é o do direito do credor de exigir de imediato garantias adicionais, sempre que se desvalorize o valor da garantia, como sucederá em muitas destas situações, em especial se existir uma relação contratual de proporcionalidade entre o valor da garantia e o montante em dívida, que é típico da antecipação bancária. 
A solução legal foi a de estender os prazos também para estas obrigações, se a garantia for constituída por “colaterais financeiros” (art. 4.º, n.º 4). A disposição não define o que sejam “colaterais financeiros” (recorrendo aliás, de forma completamente imprecisa, a um termo que existe com outro significado na língua portuguesa, mas que resulta de um suposto neologismo decorrente do termo inglês collateral, e que tem o significado de garantia sobre móveis), sendo por isso necessariamente remetidos para o regime dos contratos de garantia financeira, decorrente do Dec.-Lei n.º 105/2004, de 8/5.
Nos termos desse diploma podem ser objeto dessas garantias: “numerário” [que consiste em determinados créditos pecuniários - art. 5.º n.º 1 alínea a) do Dec.-Lei n.º 105/2004, de 8/5], “instrumentos financeiros” [art. 5.º n.º 1 alínea b) do Dec.-Lei n.º 105/2004, de 8/5] ou “créditos sobre terceiros” [art. 5.º n.º 1 alínea c) do Dec.-Lei n.º 105/2004, de 8/5][26]. Quando assim for, verificando-se um evento que permita ao credor exigir uma garantia adicional (top up collateral), ele só o poderá exercer esse direito decorrido o prazo pelo qual os créditos foram estendidos.
O mesmo sucede com as cláusulas de stop losses (art. 4.º, n.º 4): o credor só pode exercer o direito, que adquire, depois decorrido esse período de tempo.
Sublinhe-se: os direitos em qualquer dos casos são adquiridos, só lhes é fixado um prazo para o seu exercício.

V. Ainda relativamente às garantias (designadamente de seguros, de fianças e/ou de avales), a sua  prorrogação não carece de qualquer outra formalidade, parecer, autorização ou ato prévio de qualquer outra entidade previstos noutro diploma legal e são plenamente eficazes e oponíveis a terceiros, devendo o respetivo registo, quando necessário, ser promovido pelas instituições, com base no disposto no presente decreto -lei, sem necessidade de apresentação de qualquer outro documento e com dispensa de trato sucessivo  (art. 4.º, n.º 6).

VI. Por fim, no que diz respeito a empréstimos concedidos com base em financiamento, total ou parcial, “incluindo sob a forma de bonificação”[27], ou garantias de entidades terceiras sediadas em Portugal, as medidas previstas no art. 4.º, n.º 1, aplicam-se de forma automática, sem autorização prévia dessas entidades, nas mesmas condições previstas no negócio jurídico inicial. (art. 4.º, n.º 5).


6. A insolvência e recuperação do devedor

I. Nos termos do art. 6.º, “em caso de declaração de insolvência ou submissão a Processo Especial de Revitalização ou Regime Extrajudicial de Recuperação de Empresas da entidade beneficiária, as instituições podem exercer todas as ações inerentes aos seus direitos, nos termos da legislação aplicável”. Esta norma cuja epígrafe se refere à “tutela de direitos de crédito, carece de ser devidamente interpretada, distinguindo-se os casos, bem distintos, da insolvência, por um lado, e do PER e o RERE, por outro.
 
II. Se o devedor for declarado insolvente neste período de tempo, as suas obrigações vencem-se (art. 91.º, n.º 1 CIRE), com eventual redução (nos termos do art. 91.º, ns. 2 a 5 CIRE) e conversão (art. 96.º CIRE), podendo (e devendo, em regra, se os quiserem fazer valer) os credores reclamar os seus créditos. Os efeitos deste regime de moratória não se aplicam nesses casos. Não há qualquer prorrogação dos prazos das obrigações vencidas, a extensão de linhas de crédito, etc.

III. Situação diversa é a da apresentação de um PER[28] ou de um RERE[29], dos quais não decorre qualquer vencimento antecipado das obrigações, nem os contratos de onde elas emergem são, em princípio, atingidos. (art. 6.º, n.º 1).
Esta norma não significa que não se aplique aqui a disciplina da moratória. O que pretende salvaguardar é o exercício dos direitos que do regime de qualquer destas figuras cabem aos credores (daí a epígrafe da norma se referir à “tutela de direitos de crédito”), como seja a reclamação de créditos (com as alterações decorrentes da moratória, se o devedor a ela recorrer), a participação nas negociações e votação (art. 17.º-D, n.º 2, n.º 7, art. 17.º-F, n.º 5 CIRE).
Uma interpretação que pretendesse afastar deste âmbito os efeitos da moratória levaria à produção do resultado que ela justamente pretende evitar, agravado mesmo pela já débil situação patrimonial do devedor.


7. As condições de acesso

I. A lei regula as condições de acesso no art. 5.º. De forma sumária: para o efeito é necessário que as entidades beneficiárias remetam, por meio físico ou por meio eletrónico, à instituição mutuante uma declaração de adesão à aplicação da moratória. A declaração é acompanhada da documentação comprovativa da regularidade da respetiva situação tributária e contributiva, da existência de processo negocial de regularização do incumprimento ou do requerimento do pedido de regularização, nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 2.º.[30]  
Ela deverá ser, no caso das pessoas singulares e dos empresários em nome individual, assinada pelo mutuário e, no caso das empresas e das instituições particulares de solidariedade social, bem como das associações sem fins lucrativos e demais entidades da economia social, assinada pelos seus representantes legais. (art. 5.º, ns. 1 e 2).
As instituições aplicam as medidas de proteção previstas no art. 4.º no prazo máximo de cinco dias úteis após a receção da declaração e dos documentos referidos, com efeitos à data da entrega da declaração, salvo se a entidade beneficiária não preencher as condições estabelecidas no artigo 2.º, caso em que a devem informar desse facto no prazo máximo de três dias úteis, mediante o envio de comunicação através do mesmo meio que foi utilizado por ela utilizado para remeter a declaração. (art. 5.º ns. 3 e 4).

II. As entidades beneficiárias que tenham aderido às medidas previstas no artigo 4.º, mas que não pretendam beneficiar da prorrogação dos seus efeitos após 30 de setembro de 2020, comunicam às instituições esse facto até dia 20 de setembro de 2020 (art. 5.º-A, n.º 1)[31].
Se não o fizerem, os efeitos das medidas previstas no artigo 4.º são automaticamente prorrogados, nas condições previstas na lei até 31 de março de 2021 (art. 5.º-A, n.º 2).[32]

III. Anote-se, por último, que acesso à moratória pode ser requerido (art. 14.º), por força do alargamento do prazo decorrente da Lei n.º 27-A/2020, de 24/7 (art. 10.º), até 30 de setembro de 2020.


8. Fiscalização e regime sancionatório e responsabilidade

I. A responsabilidade pela supervisão e fiscalização do regime de acesso à moratória cabe ao Banco de Portugal (art. 8.º, n.º 1). Se os concedentes de crédito não cumprirem os deveres decorrentes desta disciplina decorrente do Dec.-Lei n.º 10-J/2020, de 26/3, ou da a regulamentação adotada pelo Banco de Portugal para a sua execução, praticam uma contraordenação punível nos termos do art. 210.º do RGICSF, sendo aplicável ao apuramento da respetiva responsabilidade contraordenacional o regime substantivo e processual aí previsto.

II. O conteúdo dos contratos de crédito é modificado por força da lei, logo que o beneficiário, preenchendo os requisitos da moratória, apresenta a declaração (a “declaração de adesão à aplicação da moratória”) nos termos previsto no art. 6.º, ns. 1 e 2. Essa declaração tem efeito potestativo[33] de alteração do contrato. Caso o concedente de crédito a recuse sem ter fundamento, ela - a alteração do contrato - não deixa de se verificar. 
Por isso, se o concedente de crédito não cumprir o contrato nos novos termos que o conformam, incumpre culposamente as suas obrigações, o que poderá ter feitos bastante graves, em especial no que diz respeito ao corte do crédito. Responde desta forma pelos danos daí decorrentes. Mas, também, se o beneficiário for considerado em incumprimento, por se acionarem, dessa forma, cláusulas de cross default.
As consequências do incumprimento podem ser especialmente graves nesta conjuntura, com a consequência - muito provável -, em qualquer dos casos, da insolvência do beneficiário.

III. Se as entidades beneficiárias acederem às medidas de apoio previstas não preencherem os respetivos requisitos, elas, bem como as pessoas que subscreverem a documentação requerida para esses efeitos, são responsáveis pelos danos que venham a ocorrer pelas falsas declarações, assim como pelos custos incorridos com a aplicação das referidas medidas excecionais “sem prejuízo de outro tipo de responsabilidade gerada pela conduta, nomeadamente criminal.” (art. 7.º).


9.  Deveres de prestação de informação

I. A Lei n.º 8/2020, de 10/4, aditou o art. 6.º-A, que impõe aos concedentes de crédito amplos deveres de informação. Deste modo, eles ficam obrigados divulgar e publicitar as medidas da moratória, incluindo os termos e datas-limite de acesso, nas suas páginas de Internet e através dos contactos habituais com os seus clientes, bem como dar conhecimento integral delas previamente à celebração de “qualquer contrato de crédito” sempre que o cliente seja uma entidade beneficiária (art. 6.º-A, ns. 1 e 2).
A lei atribui ao Banco de Portugal competência para regulamentar os moldes em que a prestação de informação deve ser efetivada (art. 6.º-A, n.º 3), o que veio a suceder pelo Aviso Banco de Portugal n.º 2/2020, de 28/4.
Ao incumprimento destas disposições aplica-se o art. 8.º, n.º 2 (art. 6.º-A, n.º 4).


10. Prazo de vigência

I. O prazo de vigência da moratória foi prorrogado[34] até 31 de março de 2021 (art. 14.º)[35]. As entidades beneficiárias que tenham já aderido à moratória ficam automaticamente abrangidas pelo período adicional do diploma, exceto quando comuniquem a sua oposição até ao dia 20 de setembro de 2020, podendo o acesso, como se disse, por força da Lei n.º 27-A/2020, de 24/7, ser requerido até 30 de setembro de 2020 (art. 5.º-A, n.º 1).[36]


11. O regime geral de decorrente da lei civil e comercial

I. O primeiro ponto a sublinhar é que este, assim como outros regimes criados, o foram no seio de uma legislação de emergência, produzida num curtíssimo período de tempo e sem resultar necessariamente de uma ponderação aprofundada das suas consequências em termos de regimes gerais.
Mais, creio, que esta legislação deve ser vista como o que efetivamente é: um conjunto de medidas avulsas destinadas as salvaguardar aspetos fulcrais da vida económica, limitando, tanto quanto possível, situações sociais dramáticas e uma cadeia de insolvências por força da dificuldade extrema ou mesmo impossibilidade (económica, no sentido de ausência completa de liquidez da empresa) de serem cumpridas certas obrigações pecuniárias neste período de tempo.  Mas não há qualquer intenção, nem do ponto de vista do elemento subjetivos da interpretação, nem da rationes das medidas de afastar os meios gerais de reação que decorrem da lei civil e, em particular, da lei comercial.
Assim, cremos, p. ex., que o regime específico das rendas tem que se articular com o contrato de arredamento, civil e comercial, decorrente do Código Civil, e não limita, nem pode limitar - repete-se, não é esse o sentido da norma -, os meios de defesa do inquilino daí decorrentes[37].

II. No que diretamente nos interessa, este regime não afasta, devendo antes articular-se, com o que resulta dos diversos - e são muitos, com estruturas diferentes entre si - contratos bancários de crédito. Tanto aqueles que preenchem os requisitos da sua aplicação, como os que não o façam. Aqui tem especial relevo os sujeitos que não possam aceder à moratória, por não terem a situação tributária regularizada.
É esse aspeto que se irá, de seguida, embora de forma limitada desenvolver. Para o efeito, iremos passar em revista os diferentes mecanismos decorrentes da lei, ou do acordo das partes que provoquem efeitos no conteúdo dos contratos.

III. Desde logo, tem sempre que se partir de cada contrato e da sua interpretação e, se possível e necessária, a sua integração[38]. O que implica analisar a regulação decorrente da vontade das partes aí contida, tendo sempre presente o equilíbrio interno de justiça, a “equação económica”[39] em que assenta.
Quando o negócio em si não ofereça resposta, dever-se-á recorrer às regras de cada um dos tipos contratuais em jogo, e, caso não exista regra específica, aos preceitos gerais decorrentes do cumprimento e não cumprimento do contrato, em particular aqueles decorrentes do sinalagma funcional (art. 428.º, art. 793.º, 795.º CC[40]). Haverá que ter igualmente em conta nas obrigações finalizadas a disciplina da frustração do fim da prestação.
Deve ter-se presente, também, se estamos perante contratos civis ou comerciais, com prestações instantâneas ou duradouras. Quando aos contratos que tenham por objeto prestações duradouras, entendo, como já temos defendido[41], na linha de Pinto Monteiro,[42] que o contrato de agência contempla um conjunto de disposições relativas à cessação do contrato que consagram regras gerais aplicáveis à generalidade dos contratos duradouros, com particular relevo para os contratos comerciais (dentro dos quais se incluem os bancários). Estas disposições dão resposta a diversas questões que nesta sede surgem.

IV. Resta o regime da alteração superveniente das circunstâncias[43]. Face a uma alteração anormal superveniente das circunstâncias emergente quer da pandemia em si, quer das medidas adotadas para a contar, em especial a proibição do exercício de certos tipos de atividades, a lei criou um regime que introduziu um conjunto de alterações contratuais para os ajustar a essa nova realidade jurídica e material. Ao proceder assim, no âmbito da legislação de emergência, a lei deu corpo a essas modificações e acautelou a segurança jurídica.

V. Mas não afasta o regime geral. Por isso, em particular - mas não só - para aqueles casos em que as condições de aplicação desta disciplina não estejam preenchidas e em que não se se possa retirar a solução do conjunto de regras integrantes de diferentes institutos, que referimos, as partes podem valer-se do instituto da alteração das circunstâncias. Tudo a avaliar, note-se, caso a caso, contrato a contrato.
O que significa que haverá contratos que preenchem os requisitos da moratória relativamente aos quais seja possível aplicar este instituto, indo-se, em termos de modificação, para além do regime aqui previsto, e outros que não os preencham, mas não obstante se possa, ainda assim, aplicar esta disciplina. Ora, nessa hipótese será possível recorrer à modificação do contrato, já não no que toca à primeira medida, mas em grande parte às que decorrem da segunda e terceira, isto é, a prorrogação dos prazos e a suspensão do cumprimento das obrigações.
 
[1] Este artigo consiste num - muito amplo - desenvolvimento de uma conferência que proferi sobre o tema no Conselho Regional do Porto da Ordem dos Advogados a 7 de maio de 2020. Foi depois publicado Revista de Direito Comercial, 2020 (www.revistadedireitocomercial), pp. 1107-1034. No texto que se apresenta foram adicionalmente analisadas as diversas - e muito significativas - alterações decorrentes da Lei n.º 8/2020, de 10/4, do Dec.-Lei n.º 26/2020, de 16/6, e da Lei n.º 27-A/2020, de 24/7.
[2] Veja-se que, p. ex., segundo números do Banco de Portugal, 39% das empresas reportaram uma redução superior a 50% do volume de negócios na semana de 27 de abril a 1 de maio. Cfr. Inquérito Rápido e Excecional às Empresas - COVID-19 in: www.bportugal.pt/sites/default/files/anexos/documentos-relacionados/iree_20200505.pdf.
[3] Sobre ele, ver ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Aspetos bancários da crise COVID-19, Revista de direito financeiro e dos mercados de capitais, vol. 2 (2020), n.º 7, pp. 115, ss.
[4] Cfr. Inquérito Rápido e Excecional às Empresas - COVID-19, cit., p. 12
[5] Por contraposição às moratórias legais, que preenchem os requisitos do Dec.-Lei n.º 10-J/2020, de 26/3.
[6] As orientações da Autoridade Bancária Europeia (Guidelines on legislative and non-legislative moratoria on loan repayments applied in the light of the COVID-19 crisis – in: https://eba.europa.eu/regulation-and-policy/credit-risk/guidelines-legislative-and-non-legislative-moratoria-loan-repayments-applied-light covid-19-crisis) relativas a moratórias públicas e privadas aplicáveis a operações de crédito no contexto pandemia estabelecem os termos e condições que essas moratórias devem cumprir para que a sua aplicação não conduza à qualificação dos créditos como em incumprimento (default) ou em restruturação (forborne), nos termos e para os efeitos do disposto no Regulamento (UE) n.º 575/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013 e das Orientações da  relativas, designadamente, à aplicação da definição de incumprimento nos termos do artigo 178.º do referido regulamento.
[7] A Associação Portuguesa de Bancos promoveu a elaboração de um Protocolo interbancário, em cujos anexos se encontram definidas as condições gerais de duas moratórias privadas. Cfr. www.apb.pt/cliente_bancario/covid-19_medidas_de_apoio/moratorias_privadas.
[8] Nos termos do art. 2.º, n.º 4, pertencem ao sistema financeiro: “os bancos, outras instituições de crédito, sociedades financeiras, instituições de pagamento, instituições de moeda eletrónica, intermediários financeiros, empresas de investimento, organismos de investimento coletivo, fundos de pensões, fundos de titularização, respetivas sociedades gestoras, sociedades de titularização, empresas de seguros e resseguros e organismos públicos que administram a dívida pública a nível nacional, com estatuto equiparado, nos termos da lei, ao das instituições de crédito”.
[9] Este alargamento resulta da alteração introduzida pelo Dec.-Lei n.º 26/2020, de 16/6. Na versão inicial do diploma só as pessoas com residência em Portugal podiam beneficiar - verificados os outros requisitos - da moratória. O que excluía, desde logo, os emigrantes.
[10] A Lei n.º 8/2020, de 10/4 (que aditou o art. 13.º-A), introduziu duas normas interpretativas desta disposição. Deste modo, ela deve ser interpretada “no sentido de abranger os beneficiários da Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores que tenham a respetiva situação contributiva regularizada ou em processo de regularização através de um plano prestacional acordado com a Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores, assim como no sentido de “abranger também os regimes de crédito bonificado para habitação própria permanente”, que preencha as condições elegibilidade do Capítulo (art. 13.º-A com a redação que lhe foi dada pelo Dec.-Lei n.º 26/2020, de 16/6).
[11] Ver, infra, 3.2.
[12] Para os efeitos do artigo 178.º, n.º 2, alínea d), do Regulamento (UE) n.º 575/2013.
[13] Contratos de crédito bancário e Covid 19. O regime da moratória decorrente do Dec.-Lei n.º 10-J/2020, Revista de Direito Comercial, cit., p. 1114.
[14] A lei na versão original dizia cessão, quando queria dizer cessação, como dissemos na primeira edição deste texto (Contratos de crédito bancário e Covid 19. O regime da moratória decorrente do Dec.-Lei n.º 10-J/2020, Revista de Direito Comercial, cit., p. 1114). Fez agora a correção através do Dec.-Lei n.º 26/2020, de 16/6.
[15] Contratos de crédito bancário e Covid 19. O regime da moratória decorrente do Dec.-Lei n.º 10-J/2020, Revista de Direito Comercial, cit., p. 1116.
[16] Nos termos do disposto no art. 13.º-A, n.º 3 (aditado pelo Dec.-Lei n.º 26/2020, de 16/6), esta norma deve ser deve ser interpretado no sentido de abranger qualquer forma de crédito bonificado, incluindo para habitação própria permanente, que preencha as condições de elegibilidade.
[17] Ver, sobre ele, M. PESTANA DE VASCONCELOS, Direito bancário, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2019, p. 288.
[18] Sobre ela, I. GALVÃO TELLES, Direito das obrigações, Coimbra Editora, Coimbra, 1997, pp. 309-310.
[19] Sublinhando este aspeto, referindo-se por isso a uma moratória “lato sensu”, A. MENEZES CORDEIRO, Aspetos bancários da crise COVID-19, cit., p. 133.
[20] Nos termos do disposto no art. 13.º-A, n.º 3 (aditado pelo Dec.-Lei n.º 26/2020, de 16/6), a aplicação das medidas não dá origem a qualquer penalização, nomeadamente agravamento de encargos, redução de bonificação ou outras penalizações que estejam associadas ao crédito bonificado, incluindo designadamente as resultantes do aumento do prazo do crédito. Por outro lado, durante o prazo de vigência da lei, a exigibilidade de todas as prestações pecuniárias associadas aos créditos que beneficiem das medidas de moratória, incluindo todas aquelas que possam estar em mora na data de adesão à moratória pela entidade beneficiária, deixando assim de ser aplicáveis juros de mora e outras penalidades contratuais (art. 13.º-A, n.º 4 - aditado pelo Dec.-Lei n.º 26/2020, de 16/6).
[21] Sobre elas, ver A. MENEZES CORDEIRO, Direito bancário (com a colaboração de A. Barreto Menezes Cordeiro), 6.ª ed., Almedina, Coimbra, 2016, pp. 963, ss..
[22] Ver, desenvolvidamente, sobre estas figuras, M. PESTANA DE VASCONCELOS, Direito bancário, cit., pp. 216, ss..
[23] Ver, sobre eles, e sua admissibilidade, M. PESTANA DE VASCONCELOS, Direito bancário, cit., pp. 169, ss..
[24] Ver, sobre elas, M. PESTANA DE VASCONCELOS, Direito das garantias, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2019, pp. 693, ss.
[25] Ver, sobre este contrato, M. PESTANA DE VASCONCELOS, Direito bancário, cit., pp. 211, ss..
[26] Ver M. PESTANA DE VASCONCELOS, Direito das garantias, cit., pp. 323, ss.
[27] Aditamento introduzido pelo Dec.-Lei n.º 26/2020, de 16/6.
[28] Sobre ele, ver M. PESTANA DE VASCONCELOS, Recuperação de empresas: o Processo Especial de Revitalização, Almedina, Coimbra, 2017.
[29] Sobre ele, ver CATARINA SERRA, Regime Extrajudicial de Recuperação de Empresas – Análise (e) Crítica, Almedina, Coimbra, 2018. 
[30] Redação decorrente da Lei n.º 27-A/2020, de 24/7.
[31] Aditado pelo Dec.-Lei n.º 26/2020, de 16/6.
[32] Aditado pelo Dec.-Lei n.º 26/2020, de 16/6.
[33] Sublinhado este ponto, A. MENEZES CORDEIRO, Aspetos bancários da crise COVID-19, cit., p. 136.
[34] Inicialmente vigorava só até 30 de setembro de 2020.
[35] Lei n.º 27-A/2020, de 24/7.
[36] Nos termos do art. 5.º do Dec.-Lei n.º 26/2020, de 16/6, ficam sujeitas ao disposto no Dec.-Lei n.º 10-J/2020, de 26/3, na redação introduzida pelo Dec.-Lei n.º 26/2020, de 16/6, as operações que preencham as condições de elegibilidade nele previstas e que tenham beneficiado de alguma moratória perante as instituições entre a data da entrada em vigor do Decreto -Lei n.º10 -J/2020, de 26/3, e a data da entrada em vigor do Dec.-Lei n.º 26/2020, de 16/6 (art. 5.º, n.º 1 do Dec.-Lei n.º 26/2020, de 16/6).
[37] Defendemos esta solução em PESTANA DE VASCONCELOS, Legislação de emergência e contratos. O regime excecional dos contratos de arrendamento e bancários, Revista do Ministério Público, Número Especial COVID-19 : 2020, pp. 259, ss.
[38] Para ela, e, em particular a delimitação das verdadeiras lacunas negociais, ver A. MENEZES CORDEIRO, Tratado de direito civil, II, parte geral, negócio jurídico (com a colaboração de A. Barreto Menezes Cordeiro), 4.ª ed., Almedina, Coimbra, 2014, pp. 767, ss..
[39] PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, Teoria geral do direito civil, 8.ª ed., Almedina, Coimbra, 2017, p. 495.
[40] Ver JORGE RIBEIRO DE FARIA, Direito das obrigações, vol. I, Almedina, Coimbra, 1990, pp. 230, ss..
[41] M. PESTANA DE VASCONCELOS, Dos contratos de cessão financeira (factoring), Studia iuridica, BFD, Coimbra Editora, Coimbra, 1998, pp. 232, ss.; idem, Direito bancário, cit., pp. 231, ss..
[42] ANTÓNIO PINTO MONTEIRO, Contratos de distribuição comercial, Almedina, Coimbra, 2002, p. 129. Também, A. MENEZES CORDEIRO, Da cessão financeira (factoring), Lex, Lisboa, 1994, p. 234 (para o factoring).
[43] Sobre ele, desenvolvidamente, ver MARIANA FONTES DA COSTA, Da alteração superveniente de circunstâncias, Almedina, Coimbra, 2017.

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* Miguel Pestana de Vasconcelos
Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade do Porto. Jurisconsulto. Árbitro.